O modelo atual de imprensa remete ao início da idade contemporânea, onde a materialização dos ideais iluministas se deu por meio das revoluções americana e francesa. Disso, não decorreu apenas a nossa concepção moderna do que é "jornalismo", mas também o que tomamos por conceitos que nos são tão caros como "direito", "política" e "economia". Curiosamente, esses três últimos sofreram modificações consideráveis até o presente momento, enquanto o jornalismo manteve mais ou menos as mesmas linhas mestras dessa época.
Explico; as concepções primeiras do Direito, como as ideias de imparcialidade e objetividade, da exegese, da sacralização do sistema codificado, da primazia do Direito Privado - e a consequente atrofia do Direito Público - ou estão superados ou em vias de sê-lo. Na Economia, conceitos como a fé cega na livre iniciativa e a crença na infalibilidade do mercado já sofreram duros golpes em pleno século 19º - hoje, ideias como a "mão invisível do mercado soam tão críveis que mesmo os países que ainda se posicionam como defensores do liberalismo possuem bancos centrais. Na Política, idéias como voto censitário já são tomadas por ofensa, enquanto a representação das minorias é vista como necessidade, assim como políticas como de inclusão social ou de universalidade da saúde ou da educação são consensos.
No jornalismo não. Mesmo sendo um meio que preza muito por uma imagem de vanguarda, de modernoso e descolado, ele continua a reduzir sua atividade aos dogmas da imparcialidade e da objetividade - como se depois de Marx algo ainda pudesse se afirmar imparcial ou como se depois de Freud algo ainda pudesse ter a pretensão da não-subjetividade. Enfim, os jornalistas, tirando honrosas exceções, partem da premissa que seu produto é "puro" porque é livre de qualquer juízo de valor, posto que ele é apenas uma descrição fidedigna dos fatos, sem se pôr ao lado de nenhum dos lados. No entanto, isso se manifesta como uma óbvia tolice na medida em que o próprio ângulo escolhido para narrar os fatos é fruto de nossas razões e paixões - se fosse diferente, todas as reportagens seriam exatamente iguais, o que não é real.
A idéia de que o jornalista escreve de acordo com os seus valores não implica em sua desonestidade, ao contrário, quando todos nós tentando descrever algo, fazemos exatamente o mesmo, mas isso atenta para um Calcanhar de Aquiles que os jornalistas não gostam que seja observado: Sua obra não é infalível. A desonestidade só se manifesta nisso, quando, alguém, sob a prerrogativa de estar apenas narrando algo, esconde um texto opinativo no interior de uma descrição e se ampara nas muletas da imparcialidade e da objetividade - o que, convenhamos, não é majoritário nesse ofício; majoritário só mesmo a não admissão disso por parte de quem não o pratica, com medo de, ao admitir que um colega usou o texto jornalístico com fins unicamente pessoais, perca a sua própria credibilidade.
No campo das letras jurídicas, por exemplo, figuras que passam ao largo de serem esquerdistas como Carl Schmitt ou, especialmente, Miguel Reale trabalharam bastante com a questão da axiologia jurídica - não olvidando a famosa teoria tridimensional do Direito de Reale, onde os valores são os elementos de ligação entre norma e fato. Aplicando o mesmo raciocínio para o jornalismo, mesmo não podendo falar em "normas" - textos prescritivos -, mas sim em textos descritivos, sua união aos fatos se daria por meio de valores, o que rompe com a ideia de uma pretensa "pureza" do texto jornalístico - por sua vez, reduzir o texto jornalístico à descrição pura dos fatos, seria como se no Direito você fizesse um tour de volta à Escola da Exegese.
A crise atual do jornalismo, mais que uma mera crise física materializada pela superação dos meios que tradicionalmente serviram para a sua difusão, é uma crise de valores que se dá no momento em que os agentes da área insistem em manter a pretensão de infalibilidade de seu produto. O século 21 significará o fim da difusão de informação como nós a conhecemos. Hoje, mais do que nunca, impera a necessidade de um jornalismo menos pretensioso que admita a sua parcialidade e sua subjetividade; em suma, é necessário dizer um grande "tudo que sei, é que nada sei" para se desvencilhar desse peso insuportável e retomar a credibilidade na busca pela verdade - ou, quem sabe, retomar a busca pela própria verdade.
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