quinta-feira, 26 de maio de 2011

Por uma Era de (Verdadeiro) Cinismo: Espanha e a Democracia Real

Puerta del Sol em Madrid lotada de manifestantes do Democracia Real Já
O mundo vive uma crise gravíssima. Se após a Segunda Guerra Mundial modelos políticos surgiam aos montes como saídas para realizar o sonho de uma humanidade livre, igualitária e feliz, o cenário atual é aterrador: o "socialismo" - que mobilizou um sem número de intelectuais pelo mundo - desabou, se auto-implodiu deixando um mar de escombros e poeira no Leste Europeu - salvo a China que readaptou o seu sistema para cumprir uma função na economia global capitalista e assim manter o sistema, mas terminou por ser um estranho cruzamento de capitalismo selvagem com socialismo burocrático -; por outro lado, a crença no liberalismo à la americana parece ter desabado de maneira inequívoca, seja pela desmoralização definitiva do país com suas atitudes desde Bush ou pela própria crise do modelo, seja em um sentido político ou propriamente econômico como vemos atualmente - bem como as fracassadas tentativas de reprodução do modelo americano em qualquer parte do mundo -; por fim, a própria social-democracia europeia do pós-guerra, a utopia de domar o Capitalismo e usar sua força incomensurável de produzir riqueza para servir à vida, também se desgastou e foi corroído na medida em que o leviatã soviético desapareceu - e com ele o temor da elite capitalista em ser derrubada por alguma Revolução, o que os autorizou a pôr as coisas de novo no lugar...

Antístenes, discípulo de Socrátes e fundador da Escola cínica
Uma juventude sem esperança se amontoa pelo mundo, passiva e descrente em assumir postura crítica frente à desdita cotidiana. Não raro, intelectuais de porte dizem que vivemos uma "era de cinismo" - nada mais falso, pelo menos à luz do que foi o movimento cínico na Heláde do século 4º a.C.; os cínicos, ao contrário do equivocado termo pejorativo contemporâneo com o qual estão associados, se afirmavam na Pólis como um poderoso movimento de crítica, lançando violentos ataques às convenções morais dos seus contemporâneos por meio de inserções chocantes no espaço público. Portanto, não há nada mais anti-cínico do que o modo de vida atual, onde frente à implosão das grandiloquentes narrativas pós-platônicas, a postura é justamente de acatar acriticamente o mesmismo reinante, abraçar o modo de vida dado e  se retirar do espaço público. Precisamos de um retorno ao cinismo tal como nos tempos de Antístenes e Diógenes. Um retorno a uma vertente nascida do socratismo e que, curiosamente, seguiu o caminho oposto da linhagem dominante, a saber, o próprio platonismo reinante, que se impôs como a linha tradicional do pensamento do Ocidente. 

O evento que ora se passa na Espanha, no qual o sistema político do país - uma construção astuciosa do Poder para mudar tudo sem mudar nada na imediata queda do Franquismo - é posto em xeque, trata-se, a exemplo do Revolução Árabe, do que pode ser um novo meio de atuação, um devir cínico na medida em que se constitui crítico, surpreendente e multitudinário. Não poderia ser mais equivocado o temor de que o movimento colocaria a "direita no poder" como se o ("direitista") PP e o ("esquerdista") PSOE não fizessem exatamente o mesmo jogo há anos, protagonizando uma polaridade conservadora que, para além da imagem dos debates duros no parlamento, não fez outra coisa senão conduzir a Espanha mais e mais para um projeto europeu obtuso - que transformou o país em uma colônia de consumo, destinado a um endividamento crônico, que, uma vez que o eixo franco-germânico se viu ameaçado pela Crise Mundial, acabou por ser rifado, obrigado a cortar salários e aceitar arrochos para pagar as dívidas de um crédito que até ontem lhe era dado incondicionalmente. Isso sem falar na própria opressão às minorias étnicas - como os bascos -, coisa que os "esquerdistas" do PSOE sempre conviveram muito bem.

Da mesma forma que o argumento da via única é falso - nada mais tolo do que a redução de todas as possibilidades políticas a um caminho necessário ditado, quem sabe, por um racional superior desconhecido que só se comunica com os sábios -, o maniqueísmo que se insurge contra ele é igualmente perigoso, pois a alternativa que ele busca ser - esse "ou" capcioso - traz em seu interior, no fim das contas, um autorizativo moral que pode justificar muita coisa em nome da Causa, na medida em que não exclui a lógica do caminho único, apenas se apresenta como o caminho correto, o qual poderia fazer qualquer coisa contra seus adversários, o que exclui também toda e qualquer outra possibilidade de insurgência e, uma vez no poder, toda e qualquer outra possibilidade de fazer política - a nossa moral e a deles. Se tanto a direita quanto a esquerda parlamentar da Espanha estão presos na armadilha da via única, também não será um falso alternativismo que servirá lá - ou em qualquer lugar do nosso tempo -; é necessário mais do que isso, uma nova esquerda, uma esquerda para o aqui-agora, precisa sair do mundo do moralismo-maniqueísta e entrar no reino das possibilidades (e da Liberdade); Puerta del Sol é alentadora nesse sentido assim como as experiências no Mundo Árabe. É isso que precisamos cá no Brasil.


4 comentários:

  1. Lendo seu texto e pensando nos acontecimentos diários eu reflito: a velha Política morreu faz tempos, é uma múmia que cultuamos.

    ResponderExcluir
  2. Hugo, via uma amiga pude postar os eventos da juventude e do povo: um sonho - belo, consistente e revolucionário... germe que não morrerá... Abraços comternura,
    jorge bichuetti
    www.jorgebichuetti.blogspot.com

    ResponderExcluir
  3. Dandi: Na Europa, ela morreu com as experiências da esquerda no poder - seja a revolucionária ou reformista -, aqui, depois de Lula. Essas experiências trouxeram à tona coisas que já eram questionadas teoricamente, sobretudo, pela literatura anarquista. Hoje, precisamos de uma nova cultura política e não mais de um "governo de esquerda" ou coisa que o valha.

    E esperemos que não morra, Jorge.

    abraços

    ResponderExcluir
  4. Belíssima construção de uma crítica à máquina de moer carne na qual a nossa geração se vê empurrada a cair.

    ResponderExcluir