quarta-feira, 9 de março de 2011

Uma Esquerda para o Aqui-Agora

Retrato de um Sans-Culotte - Boilly
Pois, afinal de contas, não existe Amanhã. Sim, este post é uma pequena provocação ao nosso querido Murilo Corrêa, mais precisamente em relação ao seu Uma Esquerda para Depois de Amanhã- cujo tema, por certo, será recorrente nos anos Dilma. Sim, os anos Lula embaralharam a tradicional disposição dos espectros políticos no Brasil: Se por um lado, ele pôs em prática a maior política de inclusão da história deste país, por outro, ele o fez debaixo de uma retórica que, desde 2002, puxava o debate para o centro - e, cedo ou tarde, puxaria a prática também. A candidatura Dilma foi a expressão clara desse processo, bastava olhar para a própria espinha dorsal de sua própria campanha: Apresentar-se como a administradora do projeto de transformações iniciado em 2003, não como uma proposta assumidamente política da continuidade - embora deixasse no ar certa essência de politicidade, algo completamente ausente nas campanhas tucanas há muito tempo.

Nesse sentido, a reflexão de Murilo sobre a importância dos movimentos de Gilberto Kassab é perfeitamente válida: Como diabos pode ser sequer cogitado que o direitista prefeito paulistano irá criar "um novo partido de esquerda"? Ou mesmo, acrescentamos, como poderia estar se discutindo a ida de Kassab para o PSB, um partido histórico de esquerda brasileira? Cá da nossa parte, entendemos isso como um processo complexo, que envolve desde as peculiaridades brasileiras - a caminhada para o centro provocada pelo Lulismo, algo deflagrado agora, mas que nunca deixou de ser horizonte próximo de um país onde o cordialismo sempre imperou -, mas também da marcha de um fenômeno global, no qual a democracia representativa produz um descolamento das forças políticas organizadas do próprio solo social do qual são originárias - e no grande mundo da política, longe dos olhares e gritos plebeus, o Consenso se torna uma saída cômoda. Existe também, claro, a própria problemática da esquerda mundial.

Sem fazer um resgate histórico do que se passa, a redução da política nacional a esse caldo consensual pode ser até mesmo tomada como algo bom. O grande ponto é: Por que esquerda? Ou melhor, por que, algum dia, falou-se em esquerda? Como retomam Deleuze e Guattari no Anti-Édipo ao falarem sobre Plekhanov - o patriarca do marxismo russo -, a própria luta de classes é criação da Escola Histórica Francesa como forma de exaltar o papel da classe burguesa na Revolução. Isso que se chama de direitismo, portanto,  nasce do intento hegemônico burguês, uma forma de fazer uma particularidade da Revolução (a participação burguesa no processo de derrubada da aristrocracia) tornar-se seu universal (a participação burguesa, da maioria, do homem branco proprietário de terras e fábricas, ser a causa do processo, a despeito da atuação dos sans-culottes, mulheres e outras minorias). A esquerda não nasceu como o outro lado da moeda da direita, mas sim como a busca pelo reconhecimento de uma pluralidade alijada em prol de uma particularidade, cujo fim é a garantia da vida para todos.

Todas as vezes nas quais a esquerda colocou-se - seja pela afirmação ou pela negação - como o mero outro lado da moeda em relação à direita, algo de ruim aconteceu. A afirmação do binarismo produz o antagonismo paranoico, capaz unicamente de fazer a esquerda produzir uma saída semelhante ao que confrontamos, só que às avessas - e a União Soviética, o leviatã caiado de vermelho, foi um belo exemplo disso. Quando esse binarismo é reconhecido porém negado, reduz-se à política ao Consenso, uma anestesia geral no debate que veda indeterminadamente o questionamento da vida social - capitula-se, portanto, ao império do Normal. Não seria errado dizer que no momento atual, o PT aproxima-se perigosamente de se converter total e completamente à religião do Consenso, ao passo que a única força relevante assumidamente de esquerda, o PSOL, apenas afirma tal antagonismo binarista pela negação. Em outras palavras, sim, existe um esgotamento da esquerda no nosso país, pois a própria intelligentsia canhestra não consegue se livrar de categorias essencialmente binaristas.

A saída é descobrir o Novo - e o Novo só se descobre no Aqui-Agora, posto que o Ontem já não é mais e o Amanhã jamais é; vou mais longe, é necessário o reconhecimento do caráter multitudinário da Vida e o confronto aos objetos parciais e aos reducionismos. Hoje, mais do que nunca, a atuação livre no solo social abandonado pelas forças políticas - quase que isoladas na torre de cristal do Planalto - é central. Esse debate, reitero, só está começando.

9 comentários:

  1. Muito interessante o texto, em especial na questão do antagonismo binarista.

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  2. Obrigado, Moysés, eu creio que a questão do binarismo seja central - e não apenas na política, embora ela seja o foco aqui, mas também nas mais variadas instâncias da nossa vida. Esse é o tema central de Mil Platôs, outra obra-prima dos mestres Deleuze e Guattari: O binarismo reduz a realidade a um caminho enviesado no qual a multiplicidade é sumariamente negada. Isso, na prática, é o desenho de todo sistema de opressão organizado.

    abraço

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  3. Salve, Hugo,

    A esquerda vive.

    Mas você não vai decodificá-la em Kassab, num partido em específico, nos governos vigentes, nos discursos pomposos da academia ou de púlpito, que são feitos para... ser aplaudidos. Essa esquerda abstraída da materialidade das lutas, insensível às máquinas e circuitos do capitalismo, esquerda histórica ou historicismo expurgada da memória militante, das fagulhas fora do contínuo e dos esquemas.

    Mas a esquerda vive! em Tahrir, em Túnis, em Madison, no carnaval de rua com suas máscaras de Ana de Hollanda e Tiririca, no trabalho imanente de uma multidão que produz e afirma novos direitos. A esquerda afirmou a cópia livre, afirmou a liberdade da rede, afirmou o Wikileaks, a Wikipédia, o Wordpress, o copyleft.

    Pálida e fantasmagórica Esquerda, essa que vive de cacos de discursos, teleologias, identidades, profecias, cosmovisões apocalípticas, metafísica velha. Essa que se rotula Esquerda como forma de dizer quem é e o que pretende, ou como espírito de rebanho, ou como ressentimento ao inimigo, identificar-se pelo que nega (moral de escravos).

    Pouco importa o que é ser de esquerda. Sequer o que é esquerda interessa. O que importa é COMO devir esquerda.

    COMO recomeçar a esquerda?, desestabilizar as narrativas da esquerda?, irromper as identidades da esquerda, hibridizar, propagar, multiplicar?

    COMO articular os saberes minoritários?, COMO proliferar os afetos ativos?, COMO constituir e partilhar novos mundos, onde se afirmam direitos que não existiam?

    O que precisa ser dito que nunca o foi, COMO dizê-lo?, e como fazê-lo sempre um pouquinho diferente, para que o movimento se faça numa dinâmica expansiva e multitudinária.

    Não sou de esquerda, a esquerda que acontece em mim, como o que me faz perceber diferente, sentir diferente, todos juntos e separados, multiplicados em legião.

    It´s alive: evento-Lula (e não o governo), Tahrir, Madison, cultura livre, Dilma é muitos!, tudo isso ajuda a devir esquerda, a aprender a recomeçar, cada dia de novo, outra vez, diferente.

    Um abraço.

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  4. muito bom o texto, lembro que o Zizek em uma entrevista no ano passado dizia algo parecido. dizia q ele tinha medo do que vinha acontecendo qdo a "esquerda" que surgia por oposição aos novos governos da a.latinha, por constituírem-se exatamente por oposições, vinham de tendências nacionalistas e religiosas. dizia ele: precisamos saber inventar um nova esquerda que não seja por oposição, mas por criação...

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  5. Evoé, mestre Bruno! Sem mais comentários!

    abração

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  6. Anarcorpo, Sim, é isso. É preciso fugir desses oposicionismos, desse anti-tudo, dessa negatividade. É preciso fazer com a política o mesmo que Deleuze propôs para a Filosofia: Uma atividade de criação. Uma esquerda que não cria, que não articula as partes com o todo e se põe a ser apenas uma parte em relação à direita é uma falsa direita, um produto estéril e doentio a vagar como um zumbi.

    abraços

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  7. Hugo,
    Mesmo pensando na esquerda como um espectro plural, onde convivem gente de todo o tipo, em geral falta conjugar sutileza crítica com convicção. Boa parte da esquerda recusa a sutileza tanto na avaliação da conjuntura como na ação e outra boa parte parece não saber exatamente o que defende e se deixa levar para um debate dentro de termos impostos agressivamente pela direita.
    O PT, apostando no desenvolvimentismo pura e simplesmente, baseado no slogan "subir para consumir", está dando um tiro no próprio pé. A classe média consumista é cronicamente de direita: conformista/indiferente quando a economia vai bem e amedrontada/furiosa, quase fascista, quando a economia vai mal.
    Não seria genial se as pessoas aprendessem a corrigir o curso dos seus navios antes deles baterem no iceberg e começarem a afundar?

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  8. Assustadoramente pertinente o post e os comentários. Ainda mais se lembrarmos que a "esquerda" ganhou essas eleições no binarismo, e a bem lembrada promoção de Dilma enquanto "gerente": algo que sempre soou bastante tucano.

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  9. Cara, você é foda!
    Meu Deus. Adorei esse blog.
    Adubo meus neurônios por aqui sempre que posso!
    Meus parabéns!
    Indico para todos os meus amigos, professores, familiares!
    Meu, me inspira. Me inspira.
    Abraços!

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