domingo, 29 de julho de 2012

Micropólis: Por uma São Paulo Menor

Há uma São Paulo - nem aquém, tampouco além do horizonte - que existe resistindo à dureza do concreto armado, ao inefável tom cinza do asfalto, aos automóveis que insistem em monopolizar o movimento desmovimentando tudo, ao higienismo, ao autoritarismo, ao elitismo e à falta de gratidão ou de generosidade. Ela não é grande, nem se quer grande: é o que há de minoritário na metrpólis, o fascínio que desperta é o do esplendor de si e do paradoxo no qual consiste. É uma micropólis.

E essa micropólis passa pelo samba de Adoniran, pela multidão festiva que desce e sobe as ladeiras da Rua Augusta, pelas festas proibidas da FFLCH, pelos CA's anarquistas da PUC, pelos sebos empoeirados do centro, pelos bêbados em meio ao tumulto das Viradas, os estudantes que lotam os botecos da Vila Madalena, pelos índios que habitam resistindo de Norte à Sul da cidade (do Pico do Jaraguá até Paralheiros), dos novos italianos que são os nigerianos, os chineses, os bolivianos - como foram os nordestinos há pouco...


São Paulo não é isso, nem vai se tornar, ela devém micropolitana. E pouco importa se a especulação imobiliária (muito provavelmente) nunca nos deixará habitar lá - só para construir empreendimentos de luxo que tendem a virar elefantes brancos -, se vão um dia fechar este blog louco, se o trem vai quebrar no meio do caminho ou se eu vou ser atropelado em calçadas-adorno feitas (apenas) para se cumprir a Lei - e para enriquecer as empreiteiras - do que para os pedestres...os pedestres... 

Ela se faz nos encontros carregados de cupidez dos jovens amantes trôpegos - pela vida, pelo álcool, pelas exasperações e dúvidas - que cruzam como nômades uma urbe tão exposta quanta intocada: e se não será o povo puro ao qual pertencerá o porvir e a filosofia, também é certo que é no que há de mais ofensivo, assustador e estranho que brota o belo e o sublime na pólis.


Se é possível que em toda metropóle haja uma micropóle pelo desdobramento de suas engrenagens infernais, em São Paulo, pela força eterna das mesmas, é onde isso se faz mais distante e mais próximo. Ignorar essa potência apenas pelo paradoxo em que isso consiste, é esquecer a própria filosofia - e também apagar a memória das lutas de tantas favelas do moinho a resistir ao fogo ou tribos guaranis à inanição, de tantos amores e esvanecimentos. É esquecer o que há de minoritário aqui e o que há de majoritário em qualquer lugar. Se Paulo concebeu um estado de exceção verdadeiro, e ele era o amor, eis a nossa morada.

                                                                              X
 
Para Isabella, que sabe como poucos alguéns tirar da própria fragilidade sua força, no encanto do seu canto, pela doçura da companhia, a generorisidade e o ânimo desbravador nestas férias.




sábado, 28 de julho de 2012

A Polêmica de Tarso Genro, Estado de Exceção e Democracia

O Poder não está nu, mas sua roupa é imaginária
Recentemente, o governador gaúcho Tarso Genro, em sua coluna na Carta Maior, colocou-se frontalmente contra a ideia de que vivemos em um estado de exceção permanente, fez uma apologia ao Estado de Direito - e sua vigência no Brasil de hoje -, criticou o mote de que a "ditadura venceu" e  defendeu as conquistas do governo Lula. Pois bem, há muito a dizer sobre o artigo em questão e, mais ainda, a respeito do debate gerado. Mas há uma série de questões de fundo e é uma conversa tão importante quanto complexa. Honestamente, eu não subscrevo integralmente a fala de Tarso, embora concorde bastante com algumas assertivas, mas vamos por partes nessa confusão toda.

A questão prévia dessa conversa é que o artigo de Genro consiste em uma réplica ao conteúdo da reportagem de Bia Barbosa, publicada na mesma Carta Maior, que traz declarações do filósofo uspiano Paulo Arantes e de alguns intelectuais alinhados ao seu pensamento: eles defendem que houve um corte no golpe de 1964 em relação ao qual o regime atual é apenas uma continuidade - ou, se muito, um desdobramento do mesmo evento fundador. Trata-se de uma leitura que parte de uma apropriação bastante peculiar de Giorgio Agamben


Viveríamos, pois, dentro da mesma ordem de 1964, caracterizada pela transição consentida pelos militares, o que seria comprovado pela manutenção da Lei de Anistia. Arantes fala em Estado Oligárquico de Direito, o que é curioso, se lembrarmos que a noção mais notável da obra de Agamben é a tese de que existe uma contiguidade entre regra e exceção. 

Não, não é que isso nasça de um fato histórico exclusivo em relação a um "Estado de Direito": não importa se estamos falando de antes de 1964 ou depois de 1985, regra e exceção sempre coabitaram do mesmo modo, portanto, Agamben não fala na possibilidade, em circunstâncias históricas específicas, de existir a exceção de forma concomitante a um Estado de Direito, mas que essa é a sua regra geral, pelo menos de forma latente, logo, eventos como golpe militar apenas são manifestações disso, mas não seu surgimento.

Esse mesmo engano se vê em colocações como a de, por exemplo, Edson Teles: a Constituição de 1988 teria instituído um estado de exceção permanente no Brasil - como se pudesse ter sido instituído um Estado de Direito verdadeiro (e que isso pudesse antagonizar com o estado de exceção). A ideia é acompanhada pelo jornalista José Arbex Jr, que recorrendo ao exemplo das mortes causadas pela violência policial no Brasil de hoje, defende essa continuidade da ditadura por dentro da democracia brasileira - não é bem isso, se pensarmos, inclusive, que a violência contra negros e pobres remonta há muito mais tempo do que isso...
 
Se dentro da filosofia agambeniana a questão está mal colocada, saindo dela, tudo fica um tanto pior. A afirmação de que, no apagar das luzes, a ditadura venceu é ilusória. Ela demanda uma premissa falsa que é, precisamente, a de que o Poder é realmente aquilo que ele se pretende, que ele faz parecer, isto é, onipresente, onisciente e onipotente...é como se o rei da fábula de Andersen, aquele desfila nu sob a prerrogativa de que veste uma roupa que só os inteligentes veem, fosse criticado pela opulência dos seus trajes.

O fato é que o Poder é parasitário e perverso, ele nada produz, a ideia fantasiosa de que a ditadura cedeu espaço porque cumpriu seu papel, atingiu seus grandes objetivos, é antes de mais nada superestimar o regime, além de apagar a memória das lutas que o dobrou. Crer nessa capacidade de organização e nessa vontade de ter se desfeito é supor um Poder produtivo, em certa medida bondoso, uma ratificação às avessas da lógica da outorga varguista, na qual as cessões de anéis eram vendidas como boa vontade para reagir à efetividade das lutas reivindicatórias.


Se existe, por exemplo, uma CLT hoje, foi porque preexistiu à sua edição um movimento sindical ativo que massacrou a golpes de martelo o capital durante o começo do século 20º, ela não foi ato de vontade ou de benemerência do Poder, embora ele tenha precisado fazer parecer isso, como Vargas o fez. Dizer que a CLT é uma catástrofe e que não resolveu a exploração do trabalho pelo capital, ou que foi um plano perfeito da ditadura é, em outras palavras, esquecer os ganhos, a causa dos ganhos e criar um mitologema que não serve a quem vergou o Estado.

E não confundamos a captura que consiste adequar em termos jurídicos-estatais grande parte das demandas trabalhistas, com o fato disso não ser um vetor favorável, causado pela força do movimento sobre o poder, um excesso, uma abundância de demandas que sufoca sua capacidade de negar - afinal de contas, presumo que se de um ponto de vista de esquerda a CLT é insuficiente à luz da questão social, ninguém, ao menos nesse canto, defende sua abolição para um retorno da normatização das relações laborais pelo direito privado, como era até ali e nivelava empregados a patrões.


O Poder, com efeito, não constitui nada. Não é que o único Poder real seja apenas e tão somente o de veto, mas que a realidade do Poder é dizer não podemos - ou que não devemos para fazer parecer que é impossível -, tornando impotente o sujeito ao cindi-lo de sua capacidade de ação, uma parte arremessada para o futuro ou para o passado, a outra parte paralisada. Para que poder, senão para dizer não? As demandas que o Soberano autoriza não surgiram dele, são da multidão, pertencem à vida, ele o faz para dizer que sua mediação autorizativa é necessária, o que é diferente do veto, a suspensão da política pela recusa - o que só pode estar dentro de uma relação de poder.

O fato é que os ditadores-generais perderam a luta histórica e foram derrotados pelo movimento democrático. Tanto que os problemas da transição se devem, justamente, à torpeza daqueles que capturaram representativamente o clamor multitudinário das ruas. A Lei de Anistia, a propósito, serviu para anistiar apenas e tão somente quem não pegou em armas, ela nunca anistiou qualquer guerrilheiro - e a interpretação judicial perversa que amplia aos torturadores as benesses daquele texto legal, é uma admissão tácita de que a ditadura cometeu crimes: coisa que de uma simples leitura do texto do dispositivo se depreende, isto é, se é um crime que não podemos acusar a ditadura, é de ter se autoperdoado, pois ela jamais reconheceu, durante sua vigência, seus crimes.

Se os defensores extemporâneos da Ditadura no judiciário precisaram disso, é porque foram vergados e obrigados a recorrer a esse ardil. Se eles conseguiram manter sua interpretação, é porque precisaram de muitos ex-campeões da esquerda, liberal ou comunista, que hoje integram o governo, aderissem à lógica do Poder - fazendo às vezes das multidões que derrubaram a ditadura, e cuja potência eles capturaram. Curiosamente, esses ex-combatentes acabaram, embora do jeito e no sentido errado, não encampando o punitivismo que muitos veem como purgante para o nosso passado militar.

Em termos práticos, o impacto dessa visão é a hesitação de lutar pelo temor da captura, ou de derrota, ou a uma perspectiva de esquerda que mistura o niilismo com a história dos grandes nomes (e homens). Adotar a imobilidade como saída é ignorar que a imobilidade já está por aí, servindo ao Poder. Eu ratifico a outorga e digo que foi o Estado criou mesmo, e apago de uma vez a memória da luta de milhões de trabalhadores além de, por outras vias, repitir que o soberano está vestido com algo mais do que imagens.

Tarso Genro, contudo, se equivoca quando faz um elogio ao Estado de Direito - ou, em termos gerais, veja exceção e regra como opostos. Embora sua posição, em termos gerais não seja diferente dos seus críticos, pois eles cultivam, ainda, uma fé mínima nessa mesma instituição quando negam a existência de um Estado de Direito no Brasil - como se a existência de um Estado de Direito verdadeiro pudesse mudar tudo. Pior ainda, mesmo por um viés agambeniano, é certo que o Brasil é um Estado de Direito, só que o Estado de Direito implica na existência de uma exceção latente - e isso não tem nada a ver, necessariamente, com a Ditadura Militar. 

Elas por elas, este blog concorda com Bruno Cava e prefere mais Benjamin no que toca ao mérito dessa conversa, sobretudo quando o mestre alemão diz, em sua famosa e repetida Tese VIII sobre o Conceito de História, que precisamos de construir um verdadeiro estado de exceção que dê conta do estado de exceção fascista (por interpretação extensiva nossa, embora essa não tenha sido a denotação exata dada Benjamin, sua conotação nos permite ampliar ao fascismo histórico ou não).

Também, há de se considerar que quando Tarso entra nesse debate respondendo as horas certas quando se perguntou qual o dia da semana, pelo menos ele não deixa de dar uma dentro ao criticar uma doxa tipica ao governo Lula, quando a indigência teórica da oposição retratava o então mandatário como se fosse um líder fascista, um "soberano schmittiano". Pura bobagem. Mas foi essa tese que, por exemplo, Gilmar Mendes tentou utilizar para fazer valer, ironicamente, uma medida de exceção que poderia resultar na extradição do perseguido político Cesare Battisti para a Itália - e Tarso sabe disso muito bem, tanto que foi das figuras da República que mais se empenharam para evitar esse desastre.

Mas o que importa na fala evidente que ele tem razão em dizer que se hoje não temos uma ditadura, ou que hoje experimentamos conquistas sociais, é porque houve algo no Brasil que fez isso acontecer e não foi o Poder que concedeu nada por si. O problema dessa segunda visão, está tanto menos em entender que só uma revolução daria jeito nos problemas brasileiros como Tarso pontua, e mais no fato dela própria ver em tudo uma tragédia sem fim, na qual a beleza da resistência acaba apagada, o que é o mesmo que esterilizar as sementes de uma transformação. 

De repente, o Pinheirinho vira uma derrota, as favelas tornam-se exemplos de que o campo de concentração ainda é um paradigma e quetais. Por isso, eu não posso concordar com gente que eu respeito muito e tenho um profundo carinho, como Idelber Avelar. Há o que se criticar na fala de Tarso, várias coisas, mas não que ela seja uma fala conservadora, embora não seja plena de potência pelos limites óbvios do republicanismo que ele abraçou - ao contrário da curiosa apropriação de Agamben que ele rebateu, aí sim, acidentalmente reacionária.





segunda-feira, 23 de julho de 2012

Revisitando a Primavera Árabe

Monet - Lavacourt d'Inverno (daqui)
Há um ano e meio, a Primavera Árabe florescia durante o inverno do hemisfério norte, contudo, em um cruel paradoxo histórico, ela chegou ao seu inverno ainda na última primavera. Mas no inverno,  mesmo em um tão longo e rigoroso, há vida, sempre houve e haverá.

A irrupção na Tunísia da revolta que se espalhou pelo mundo árabe, do Magreb à península arábica, encontrou sua culminância no Egito: de repente, a Praça Tharir se tornou o centro nevrálgico de um mundo árabe que se levantava, catalisando uma segunda onda que se espraiou pelo mundo - da Espanha dos indignados que lotaram a Puerta del Sol até os inúmeros occupy pelos Estados Unidos e pelo mundo (Brasil, inclusive).

Hoje, o que temos? No Egito, a Irmandade Muçulmana capturou (eleitoralmente) a Revolução que não fez - nem faria e jamais fará -, enquanto na Líbia, o Ocidente se aproveitou da balbúrdia geral para estimular uma revolta à la Pancho Villa para derrubar seu pouco confiável Kadafi - justiçado barbaramente pelos rebeldes -, já na Tunísia, ainda que de forma mais moderada, os islâmicos estão no poder e, por fim, o regime baatista da família al Assad está prestes a tombar na Síria, enquanto uma guerra civil sangrenta faz o país arder.

Não, este não é um post sobre a sorte triste das revoluções, mas sobre a realidade histórica e as limitações reais - não objetivas ou subjetivas, reais - das lutas materiais bem como um chamado à urgência da boa estratégia política - coisa que Maquiavel, ao seu tempo, soube captar de forma tão singela e sublime. Lá (tal como cá) temos tensões de força e vetores, o que não faz com que a experiência vista ano passado seja inválida, nem que, por isso, deixemos de enxergar que estar a haver uma reação relativamente efetiva.

Sem sombra de dúvida, não podemos deixar de agir pelo medo da captura ou do fracasso, mas isso não quer dizer que possamos agir sem concebê-los - na alegria da imanência. E foi a Primavera Árabe que deflagrou, em termos práticos, a única experiência política de multitudinária que, durante esta crise mundial, consigo realmente preocupar e perturbar o Poder - ainda que, não nos esqueçamos, Wikileaks, e suas revelações sobre a Tunísia, teve um papel fundamental para disparar seu estopim.

No que toca à experiência subsequente dos occupy, como nos ensina o mestre David Harvey: as metrópoles - ao contrário do que todo o pedantismo dos catastrofistas não cansa de exclamar de forma cansada - são o locus da potência revolucionária contemporânea. A luta segue e os desdobramentos da Síria e, curiosamente, da política interna israelense, são cruciais no que toca ao Oriente Médio, bem como o decorrer da crise na periferia da Europa, sobretudo na Grécia e na Espanha. E onde há resistência não há derrota.

sábado, 21 de julho de 2012

Greve nas Federais: A (Im)Potência do Não e o Corporativismo


Praça Cinza (Klee): para além do preto e do branco (daqui)
As universidades federais estão paralisadas devido à greve massiva do seu corpo docente pelo país, marcando o fim da lua-de-mel entre professores e o governo petista - mas essa questão, para variar, está para além dos maniqueísmos habituais. O resumo da arenga é o seguinte: os professores reivindicam salários melhores sob o argumento que a carreira magisterial nas federais, embora exija anos de estudo e titulação acadêmica considerável, remunera abaixo de outros postos no funcionalismo público federal que demandam, inclusive, níveis de graduação inferiores, enquanto o Governo alega a impossibilidade objetiva de atender à demanda em virtude, sobretudo, da emergência econômica causada pela crise mundial.

É óbvio que, mesmo ganhando menos do que burocratas e aspones em geral, os professores das universidades federais ganham muito mais do que um trabalhador médio brasileiro - e que, por favor, não há santos nem vítimas nessa história, uma vez que a greve tem lá seu caráter corporativista, coisa que se percebe ao se constatar que é reivindicado ganhar tão bem quanto os burocratas ou os aspones da República, mas não problematizar social e politicamente a existência desse tipo de parasitagem (o que abre margem para nivelar todos os funcionários públicos no mesmo baixo nível como fazem os privatistas).

O governo petista por sua vez, tem trabalhado para ampliar a verba do MEC - que durante o governo petista, aumentou de forma relevante, com foco, inclusive, na educação superior -, mas tópicos como o plano de carreira estão travados no Congresso. Não, não é fácil furar certos bloqueios no Congresso, mas também há de se dizer que a articulação do governo não está tão empenhado nisso quando deveria - e é provável que o MEC, ao contrário da equipe econômica ou a Casa Civil (ou seja lá quem lhe faça às vezes hoje) esteja mais mobilizado por isso, que afinal de contas é um grande problema para si.

Também não há empenho por parte do governo em forçar algo porque a tendência da política econômica, em meio à crise mundial, é clara (e a crise nas federais não pode ser descolada disso): aquecer a economia menos por investimentos públicos - em um plano nacional de banda larga ou nas universidades federais - e mais por cortes e isenções tributárias. 

A crise, é verdade, impõe limitações econômicas, mas há limites políticos impostos pelas opções assumidas e, sobretudo, pelo método dilmista de fazer política e seu gosto por aquilo que é considerado na mítica da opinião pública como sua firmeza em resistir a pressões - na verdade, uma tendência paranoica frente a demandas multitudinárias, o que a faz ser, em termos práticos, mais lacaniana que os lacanianos na arte de dizer não (e aí vê-se que o NÃO PODE! e a recusa detêm uma natureza tão mais conservadora do que alguns intelectuais gostam de admitir).

Dilma tem seu grande plano para desviar o Brasil da crise mundial, mas ele está no mundo das ideias e não da prática, portanto, diante da sua contextualização histórica, evidenciado pela tensão real das lutas materiais, sua ação é uma reação, um arco-reflexo em certa medida histérico, mas também paranoico. Se parte da esquerda que cultiva a hipótese da alternativa radical ao posto admite a validade, ou cultiva lá sua devoção, à recusa e à negação como elemento de luta, é curioso notar que o maior exemplo de reprodução prática dessa concepção está no governo ao qual eles, não raro, se opõem. Pensem nisso.

Estrategicamente, o movimento de professores não quebrou a lua-de-mel com o governo à toa: com o lançamento da candidatura do ex-ministro da educação, Fernando Haddad, a prefeito de São Paulo, esperou-se uma posição negocial frágil do governo frente à questão - e, quem sabe, uma posição da mídia tradicional um tanto mais simpática à causa, por questões colaterais, eminentemente eleitorais e partidárias. 

Houve um erro de cálculo aí, porque se subestimou a forma e a intensidade da suspensão por negação da ação política que governo atual, diante de pressões frontais, poderia operar. Também foi desconsiderado o empenho pessoal morno de Dilma com o quadro eleitoral em São Paulo. Por fim, esqueceram que a mídia poderia fazer uma opção política e não eleitoral-partidária diante do quadro das greves, isto é, de repente este se tornou um bom momento para voltar a se defender a privatização do sistema educacional e (a acentuação do) desmonte do serviço público - além de ser um flanco para se fazer um movimento tático, (neo)liberal, contra as reivindicações remuneratórias para que, em vez delas, haja espaço para mais cortes tributários.

Outro ponto, é que no Brasil, a distância da ampla maioria dos acadêmicos da vida quotidiana da sociedade é tão gritante que angariar apoio junto às pessoas é quase impossível - ao contrário do Chile, por exemplo. Ainda mais com um acadêmico ganhando (bem) mais do que qualquer brasileiro. Até porque a multidão, que sempre foi mais judiciosa do que o Príncipe, defende que, diante do quadro de disparidade das remunerações em meio ao funcionalismo público federal, os burocratas e os aspones ganhem menos ou nada, não que se brigue para se equiparar a eles.

Dilma poderia dirimir essa crise facilmente a golpe de espada da pior forma. E os professores podem terminar tão ou mais humilhados do que os controladores de voo americanos foram por Reagan nos EUA dos anos 80, se além dos jornais, eles forem bombardeados por uma intervenção política direta do Palácio do Planalto que use da emergência da crise ou mesmo da emergência salarial histórica do Brasil - pela disparidade entre vencimentos. Mas é difícil para Dilma fazer isso, uma vez que isso seria confrontar diretamente uma base social histórica e relevante do PT. Se ela o fizer, no entanto, o movimento grevista sairá derrotado.

Ao que o quadro em questão alude não é o mesmo que (as aparentemente antagônicas) manchetes de jornais e discursos oficiais ou reivindicações dizem: não há vítimas nesse jogo, estamos falando da falência do Estado como forma de intervenção e relacionamento político efetivos, do perigo da volta forma Estado gigante e velada do (neo)liberalismo,  de governos que insistem no estatalismo - Dilma, muito mais do que Lula, o que demonstra uma certa debilidade e desgaste do longo governo petista, mas também das práticas de sua oposição conservadora - e de práticas grevistas corporativistas, desconectadas do contexto social como um todo - inclusive da ideia da universidade ilha, um dos frutos do elitismo e do solipsismo acadêmico. Nem governo, nem grevistas vão na direção correta, e o descompasso entre eles abre espaço para a reação conservadora que deseja, há muito, reverter as conquistas sociais que ela não conseguiu evitar no governo Lula.



quinta-feira, 19 de julho de 2012

Fausto de Sokurov: Maniqueísmo e a Grandeza da Nova Rússia

Exuberante e misterioso. Se fosse o caso de definir em duas palavras o Fausto de Alexandr Sokurov, depois de assisti-lo, seriam essas duas: exuberante e misterioso. Planos belíssimos, uma composição digna do melhor da pintura alemã do início do século XVII (ou das paisagens de Turner), uma trama delicada e cheia de armadilhas sutis, filmada no idioma de Goethe. É assim que o cineasta russo conclui sua tetralogia sobre o Poder, que inclui Moloch (sobre Hitler), Taurus (sobre Lenin) e o Sol (sobre Hiroíto). É claro, se a exuberância - da filmagem e das atuações - é autoevidente, o que nos resta, para variar, é o mistério. 

Fausto, para os incautos, é uma fábula germânica do século XV sobre o médico e astrólogo homônimo que vendeu sua alma para o diabo em troca de todo o conhecimento do mundo e do amor de sua adorada Margarida. A história terminou imortalizada na Literatura por nomes como Goethe e Mann (e, de certa forma, também por Mikhail Bulgakov), devindo comum pelo mundo. 

Pois bem, nas muitas versões da história, ela vai de uma fábula moral cristã moralista - e recalcada - até uma crítica do racionalismo e sua postura infantiloide frente ao desejo. O que há de concreto ali é a relação problemática do homem com sua, vamos dizer, vontade de potência, dentro de uma montagem permeada de simbolismos. Então, digamos que em termos gerais Sokurov fez uma escolha feliz ao optar por Fausto como a conclusão de sua tetralogia, independentemente de como a tenha conduzido.


Há quem reclame, no entanto, que o problema da história toda é o fato de Sokurov ter escolhido como fecho da sua tetralogia uma fábula, depois de ter tratado de personagens reais até aqui. Ledo engano. Certamente não é essa a questão. Ter pensado a história como a história dos grandes nomes e homens talvez, ter feito uma crítica do poder pelo viés da moral (a "reprodutibilidade do mal") certamente. É aí que sua apropriação de Fausto, de pronto, já se afigura temerária.
 
Sokurov, por sua vez, reconstrói a fábula de um modo bastante particular. Ele a reposiciona no século 19º e seu diabo é uma figura completamente grotesca, muito longe de possuir qualquer charme. Um diabo que não seduz, muito pelo contrário, repele e enoja a todos, mas que nem por isso deixa de ser invocado por atormentados de toda natureza como intermediador de sua relação problemática com o desejo: é como contrato, e por meio de uma dívida, que ele estabelece esse vínculo e o articula a partir dali. Mas o desejo, notem, resta sublimado pela validação de uma gramática moral.

E Fausto é uma figura inconstante. O perfeito homem racional em seus dilemas e tormentas internas, movido por forças interiores grandes demais para si. Ele não pode podendo, portanto, deseja poder desejar. E é um diabo grotesco quem pode lhe facilitar isso, a um alto custo, naturalmente: conhecer, ter a doce Margarida etc. Mas Sokurov gosta menos de tratar do desejo e prefere colocar a questão no preto e branco - ao contrário das tintas sofisticadas com as quais ele retrata sua película: é de um mal transcendental,  de sua reprodutibilidade e possibilidade de sua neutralização que ele prefere tratar aqui. O que não é diferente dos três outros filmes.


O mistério que permeia Fausto, e está em todas as outras partes da tetralogia, é justamente  uma questão sobre a natureza do mal e sua relação com a ação, e antes disso com a potência, humana. A maneira como ele é demonstrado se escondendo, dentro de um plano estético praticamente perfeito, é fascinante, mas isso cai logo ali adiante, quando olhamos para além da casca. Como o homem pode fazer coisas tão horríveis podendo fazer o bem? Porque ele deseja, e quando concebemos verdadeiramente o desejo - que perpassa a película inteira, sendo seu invisível evidente -, fatalmente somos remetido para além do bem e do mal. 


A questão da dívida, do diabo como agenciador da servidão, é afirmada ao modo medieval. O diabo é um usurário e sempre que a dívida é trata pelo prisma da usura temos menos uma arqueologia e uma crítica sua - e, por tabela, da culpa - e mais um ataque ao seu roubo pelos meros mortais: o homem medieval, cristão e bom, ao acusar os proto-banqueiros de usurários, atacava menos a ideia de dívida, e e a relação de sujeição que ela produz, e mais o fato da capacidade de endividar ter sido roubada pelos meros mortais, tirada do monopólio de deus. Os proto-banqueiros, grande parte deles judeus, eram odiados não pela dívida, mas por serem como um povo-Prometeu, claramente roubando e usando o fogo dos deuses - ou do Deus. Aqui é assim: se livrar do diabo não é superar a mediação para desejar, mas acabar com o mal que faz uma transgressão.


É claro que essa fábula filmográfica toda representa, também, uma alegoria política muito pouco ingênua, por mais que isso pareça esotérico. Quando o produtor Andrey Sigle disse que Fausto é "um grande projeto cultural russo e é muito importante para Putin" e que "ele o vê como um filme que pode introduzir a mentalidade russa dentro da cultura europeia, promovendo a integração entra ambas as culturas", existe algo bem maior do que mera política de boa vizinhança com o atual dono da Rússia que, afinal de contas, financiou o filme e possibilitou sua realização.


Por que Putin diria e faria isso por um filme sobre uma lenda alemã, que embora russo é inteiramente falado na língua de Goethe, cujas referência visuais vêm da pintura oitocentista tedesca? Ainda mais levando em conta que se trata de uma tetralogia sobre o poder, coisa que poderia não ser do seu agrado. Pois bem, é bem verdade que Putin é germanófilo, mas ajuda saber que Sokurov é seu sincero apoiador. E Fausto não é uma obra europeia ou europeizante, ao contrário, ela é como Pedro, o Grande - que não só fundou a Rússia como também é objeto de culto por parte de Putin -, quando vivia escamoteado pela Europa, aprendendo de tudo um pouco sem que ninguém suspeitasse que se tratava de um russo, tampouco um czar.


Se Pedro era o mais russos entre os russos, Fausto é uma obra russa, mais do que qualquer uma outra. Uma obra russa que se faz europeia no modo devir-cavalo de Tróia do seu fundador. Mas como uma fábula sobre o Poder, visto pelo prisma do Mal, poderia servir a Putin? Sendo honesto, é preciso pontuar que não é possível comparar Putin com um Hitler ou um Hiroíto, mas tampouco é possível comparar nenhum dos três citados com Lenin, sopesados seus defeitos, e a incandescente ausência de Mussolini, por exemplo. Mas se a crítica é sobre o Poder, venhamos e convenhamos, que não seria o caso de ter Putin junto nem que fosse estrategicamente.


Ainda assim, tudo faz um enorme sentido. O projeto cultural para a Rússia que Putin, a duras penas, tenta pôr em prática, e que Sokurov remetendo vagamente a Tarkovsky - embora longe de sua virtù - ajuda a construir pelo cinema, não é incoerente ao criticar ao mesmo tempo Hitler, Hiroíto e Lenin, porque ele não é, em verdade, nem nazista, "asiático", (digamos, num sentido marxista) ou revolucionário. Mas se o faz os criticando justamente grandes figuras é porque esse projeto se ancora numa perspectiva histórica de grandes nomes e homens que fazem às vezes das multidões, na fé na estabilidade trazida pelo conservadorismo político e na moral.


Se Tarkovsky era inimigo do regime soviético, e reterritorializava sua arte na desterritorialização renascentista - tão livre frente às formas rígidas da Rússia -, Sokurov é aliado dos czares (esclarecidos) do seu tempo, trata-se de um homem oitocentista ou, com algum esforço, dezenovista. Fausto é uma obra enormíssima e magnânima, um arroubo estético que ilustra a grandiosidade de um projeto cultural muito maior, cujos impactos reais sobre a civilização russa ainda não sabemos dizer, mas certamente conseguimos supôr pela maneira como ele (não sabe como) agencia(r) o desejo.





domingo, 15 de julho de 2012

Para (Muito) Além do Desenvolvimentismo e da Catástrofe

A notícia de uma catástrofe
Não resta dúvida que estamos diante de uma crise ambiental. Nem que, antes disso, uma crise aguda na coexistência humana foi instalada pela instalação do capitalismo. A questão não é que há uma crise ambiental e social, mas há uma grande e permanente doença instalada que se manifesta de variadas formas, estourando na forma de crises. A aparente incomunicabilidade entre um ecologismo radical e um socialismo ortodoxo, no entanto, sempre escondeu a visão reduzida de ambos frente a esse estado de coisas. 


É essa polêmica que o sempre atento João Telésforo, no belíssimo post Do ambientalismo catastrofista a ecologia dos desejos,  acendeu. Basicamente, João passa por questões caras e polêmicas que gravitam em torno da questão ambiental: crítica ao desenvolvimentismo e ao catastrofismo, emergência ambiental, relação com a questão social etc. E foi nessa direção que Bruno Cava completou e avançou no incendiário É preciso consumir mais.

Pois bem, vamos começar do começo: ninguém tem dúvidas da gravíssima crise ambiental - muito menos o João, como ele expõe claramente -, mas eu arrisco em dizer que o posicionamento em relação ao paradigma da catástrofe - como prisma para a leitura dessa crise - consiste em uma divergência válida e importante. Porque isso embica nas propostas de alternativas para o modelo e qual a função do negativo nisso tudo. Por exemplo, políticas de decrescimento são uma saída?

Cá, a exemplo do João, concordamos que uma saída que proponha algo como "desejem menos!" está fadada ao fracasso - e friso: um fracasso semelhante ao que experimentou a economia planificada, justamente por propor isso, concordando com Bruno.  Eis aí a importância de uma ecologia dos desejos


Curiosamente ou não, ecologistas radicais e socialistas ortodoxos, apesar de divergirem entre si, se encontram precisamente aí, na pretensão idealista de busca a resolução pela resignação em nome de uma necessidade maior e transcendental, o que passa desde o "faça a sua parte!" (como o ingênuo fechar as torneiras enquanto se escova os dentes) até a adoção de políticas restritivas radicais, a partir das quais não se constrói uma alternativa nova de produção.

Uma dessas políticas restritivas é o descrescimentismo. Ela está inserida no mesmo binarismo que uma política crescimentista, mas apenas se reporta ao outro pólo de forma inversa. É continuar ratificar a mesma métrica e a mesma gramática do capital, de forma invertida, enquanto a linha de fuga para tanto está bem além de uma bifurcação expressa na forma crescimento-decrescimento, lucro-prejuízo ou proletarização-desemprego. Do mesmo modo que a experiência (neo)liberal dos últimos anos nos ensina que não há crescimento sem acentuação, de algum modo, da gestão estatal, também não há decrescimentismo fora da mesma lógica, só que ela precisaria organizar-se sintetizando tudo para produzir um desinvestimento massivo do desejo.

No que toca ao exemplo do proletarização-desemprego, é evidente que a conversão de variados setores da multidão - como índios, mendigos, quilombolas etc -  em uma massa de trabalhadores empregados não é saída - ao contrário do pretende, por exemplo, o marxismo uspiano -, mas supor que uma condição de desemprego massificado não seja um problema é, certamente, ingênuo: nela, aquelas subjetividades todas, já convertidas em massa proletária, estão apenas descartados pelo sistema. Eles estão inutilizados dentro de um sistema utilitarista, não libertos dele. 


E ainda que o exemplo acima seja de como não se escapa de um binarismo recorrendo à inversão de seu pólo, é preciso anotar que decrescimentismo também não está desvinculado de produção de desemprego, nem que desemprego não seja um catástrofe - por vezes desejada por socialistas ortodoxos dentro do contexto da crise mundial para, daí, as massas se conscientizarem à força da necessidade da revolução. A catástrofe, o limite do mundo (ou do sistema econômico) aparece como forma de pensar a partir da impotência e não da potência infinita (portanto, de alternativas sem fim). 

Voltemos a crescimento-decrescimento. A produção está, em qualquer uma dessas hipóteses, traduzida em uma linguagem quantitavista. E qualquer uma delas, a produção precisa estar regulada por um esquema gestionário que obrigue produzir mais ou menos. O decrescimentismo, no entanto, é, reiteramos, uma inversão dentro da mesma racionalidade que é ratificada e sua aplicabilidade é ela mesma ilusória, servindo a outro fim na prática de sua aplicação - seja ele sua inaplicabilidade ou seu aparelhamento com outros fins.


Isso não quer dizer que não haja um problema de exaurimento dos recursos naturais, nem que estejamos consumindo demais, mas não é da resignação do consumo pessoal que iremos nos libertar do capital, inclusive porque, como lembram os mestres Deleuze e Guattari no próprio Anti-Édipo, que estejamos falando de grandezas  iguais quando tratamos de salários e lucros:


"Deveriam [os capitalistas e seus economistas] antes concluir que o teimam em esconder, a saber, que o dinheiro que entra no bolso assalariado não é o mesmo que se inscreve no balanço de uma empresa" (p. 271)

Quando se defende aumento de consumo, estamos falando de qual consumo e de como o exaurimento que isso produz no funcionamento do capitalismo abre enormes linhas de fugas. Por isso, por óbvio, o aumento do consumo por parte dos pobres no Brasil contemporâneo é positivo, uma vez que reorienta o próprio sentido da produção na direção das demandas sociais - que, naturalmente, está aberto a capturas, como qualquer forma de resistência.


O capitalista, no entanto, sempre está numa posição complexíssima: deseja os preços salariais menores possíveis (zero?) e, ao mesmo tempo, precisa de mercados consumidores (com qual riqueza social?). Isso explica desde os movimentos imperialistas - conquista de mercados consumidores - até as constantes crises no capital - a destruição dos próprios mercados consumidores para garantir a posse dos meios de produção ameaçada por trabalhadores financeiramente empoderados (e o surgimento de uma economia financeira, a nosso ver, tem mais a ver com a necessidade de acentuação de controle dos trabalhadores por meio da dívida que uma nova forma de ganhar dinheiro, embora também o seja).


Não é, por certo, o crescimento - ou se preferirem, o desenvolvimento - que alimenta a linha de fuga do empoderamento multitudinário, mas o empoderamento salarial dos trabalhadores e, inclusive, a remuneração não-laboral na forma de renda como no caso do bolsa família - seja lá a consequência que isso produza sobre o crescimento. O problema do desenvolvimentismo é justamente inverter essa direção, mesmo que seja para produzir vínculos e relações sociais e,  também, por ignorar estrategicamente a posição absolutamente insana do capitalista - pretendendo "racionalizar" o capitalista, lhe ensinando o que é capitalismo, quando na verdade se expõe à sua sanha de vingança.


O ambientalismo radical ao dizer "consumam menos" ou "decresçamos" torna-se politicamente impotente, exceto na condição de discurso útil para ajudar a justificar políticas de austeridade mais sofisticadas, os reajustes que capitalistas bancam, de tempos em tempos, para garantir sua propriedade agora, quem sabe legitimados pela necessidade salvar a terra - não pela constituição de novos circuitos produtivos sustentáveis (portanto, anti-capitalistas), mas sim pela desprodução (o decrescimento) dentro do próprio âmbito capitalista. A saída para isso, exige pensar a produção para muito além da linguagem do capital e seus movimentos de avanço contínuo (ou recuos estratégicos).


quinta-feira, 12 de julho de 2012

E o Palestra volta a Vencer

Como vocês sabem, futebol se tornou um assunto pouco recorrente por aqui. Inclusive, perdi a oportunidade de escrever algo sobre a última Libertadores e o título - invicto - do Corinthians. Isso em parte porque é duro acompanhar o esporte bretão sabendo que seu time só perde - e não perde de qualquer maneira, mas quase sempre da pior maneira - e também pelo desgaste de aguentar certas, por assim dizer, idiossincrasias do futebol brasileiro - como a sorte triste de ver, depois de anos torcendo para Ricardo Teixeira cair, José Maria Marin como presidente da CBF, ou por conta de um calendário esdrúxulo que faz as equipes que destacam na Libertadores e na Copa do Brasil serem automaticamente prejudicadas no Brasileirão. 

Ontem, eis que o nosso Palestra foi campeão. E foi um título nacional. E invicto. Quando parecia que nem Felipão daria mais jeito na decadência verde, algo aconteceu e um time que era torpe a toda prova, conseguiu superar adversários em melhor momento, mesmo jogando esfrangalhado: de Valdivia expulso no primeiro jogo, Barcos se recuperando de uma cirurgia, até as três contusões durante o jogo de ontem - a ponto de Luan precisar ficar em campo para completar os onze. Coisas do futebol. Um título que só poderia vir sob o comando de Felipão. 

Cá entre nós, foi uma final esteticamente detestável. Mas não futebolisticamente. E o mesmo pode se dizer de antes, na semi, quando Felipão travou o favorito Grêmio de Luxemburgo mexendo no esquema da equipe. Ver essas finais com tanta gente querida me despertou uma memória - e memória, convenhamos é afetiva - dos tempos de menino quando o Palestra ganhava, ou pelo menos disputava, tudo. 

Futebol não é exibição de toques plásticos e quetais, é emoção, é o imponderável e é até mesmo o grotesco. Nesse sentido, foi um grande título do Palmeiras, um gigante tornado dos mais emblemáticos - e improváveis, se pensarmos o século 20 - perdedores do futebol nacional na última década. No fim das contas, um time comandado por um veterano de 36 anos de idade - em melhor forma do que 90% dos garotos que você vê por aí -  chamado Marcos Assunção - e de um presidente quase acidental, eleito para ser a marionete que não foi, mas manteve a comissão técnica, o elenco, a construção da Arena e ainda trouxe de volta César Sampaio para organizar o futebol profissional.

 Valeu pela emoção, valeu Palestra.




domingo, 8 de julho de 2012

Devir Pólis: A Campanha Municipal Começa

A Metropolis de Lang
A campanha eleitoral municipal começou oficialmente há dois dias, ilustrando um dos maiores problemas brasileiros: a organização de seus municípios, a forma como a urbe é vivida, compartilhada e experimentada - e cidade brasileira que se preze como tal, admitamos, é uma zona interditada já na entrada, mas há quem queira desinterdita-la aí para transforma-la em arapuca; aprazível a uma primeira vista para capturar-nos na saída, como tantas cidades modelo pelo mundo. Ruim está, pior do que está, fica - às vezes até de maneiras mais perigosas do que hoje, quando tudo está bem na nossa frente, escancarado.

Sem civismos artificiais, as eleições municipais também possuem uma faceta importante, pois são as prefeituras que, no limite, executam as políticas públicas. Se um Prefeito manda extensivamente menos do que o Presidente ou os governadores, por outro lado, é ele, dentre todos os citados, quem detém o maior controle sobre uma territorialidade juridicamente qualificada e circunscrita, qual o seja, o município. O locus da política é a pólis, isto é, a cidade, no nosso caso, o município (o dispositivo jurídico mediante o qual a cidade se expressa no nosso meio e tempo).

Dentro de uma perspectiva que adote a luta social no contexto do espaço urbano, as relações  éticas de habitação e resistência, como paradigma é possível escolher dois enfoques válidos: o primeiro deles é aquele que parte da análise das peças do jogo político - ainda que não se iluda com a aclamação eleitoral, mas que conceba os efeitos reais de seu exercício -, tendo em vista a gradual nacionalização dos pleitos municipais; o outro é o que olha a partir das demandas reais, de problemas que podem ser específicos de determinados lugares, mas que costumam ser fruto da lógica de administração universal. 

Podemos e vamos usar os dois enfoques, conforme for, ao longo desta campanha. Primeiro, que sem entrar frontalmente no mérito do nosso sistema político - ou mesmo da nossa forma de pensar a política -, é fato que dentro de seu jeito de funcionar padrão, há um esgotamento programático como nunca antes visto. E se nunca se pensou tão pouco a cidade, nunca se nacionalizou tanto uma campanha municipal: os acordos e desacordos entre os partidos são pensados e pesados em uma lógica estritamente nacional. 

Por isso, não se espante com a aliança entre PT e Maluf em São Paulo - ou o que levou José Serra a surgir como candidato tucano em São Paulo - , o apoio - agora público - do PT ao ex-tucano Eduardo Paes no Rio, ou desconfie do que realmente levou ao rompimento do PT com Aécio Neves em Belo Horizonte. É 2014 em curso, seja nos nomes envolvidos, e é a política federal em curso, como sugerem as chantagens dos "partidos da base".

Vamos nos ater sim a tais questões bem como outras, socioeconômicas, como as questões de moradia e políticas higienistas pró-remoções - do Pinheirinho à Vila Autódromo e pelo país adentro - não porque elas constituem o centro do problema, mas sim porque elas são como fios da meada: ajudam a entender o processo em curso e a transforma-lo, embora o novelo seja mais complexo. Por isso talvez assumamos a tarefa de dizer que tal ou qual candidatura possa ser considerada, enquanto outras não.

Não é pensar a cidade em termos de produção - enquanto ordenação de qualidades e quantidades -, mas sim de um devir pólis, uma experiência intensiva de visita ao habitat ele mesmo da política, da vida em coletivo, se esgueirando e deslizando pela captura e pelo controle - que fazem, por exemplo, a pólis restar reduzida a termo jurídico na forma de município, perfeitamente adestrada. Queremos uma cidade livre, onde possamos transitar  como nômades sem rumo -  e liberdade é caminho, alegre e potente, e não fim.


sexta-feira, 6 de julho de 2012

América Latina: Sai o Paraguai, entra a Venezuela, México muda.

O cenário latino-americano agita-se como há tempos não acontecia. O golpe branco no Paraguai, que derrubou Fernando Lugo da Presidência, produziu efeitos pesados - diretos e colaterais - sobre a ordem sul-americana, tanto pela suspensão do país da Unasul e do Mercosul - no caso último, por meio do mesmo protocolo cuja assinatura serviu de pretexto para os golpistas - quanto por isso ter aberto a possibilidade da Venezuela ter ingressado no bloco - o que se confirmou nesta semana, mas não tinha acontecido até hoje pela ação do parlamento paraguaio, cuja agenda, ocidentalista e pró-americana, bloqueava a entrada da República Bolivariana. Mais ao norte, o México viu a contagem e a recontagem dos votos de sua eleição presidencial, com a vitória do conservador Peña Neto do PRI, depois de doze anos de governo do liberal PAN.

A curiosa permuta entre Paraguai suspenso e a Venezuela, patrocinada sobretudo pelo Brasil, é mostra de insatisfação do Brasil contra os congressistas do vizinho, que depois de anos bloqueando movimentos de expansão do Mercosul - que é amarrado de forma bastante rígida, exigindo unanimidade entre os Estados-membro para muitas espécies de decisão -, agora resolveram partir para a ofensiva contra o processo de integração, destituindo Lugo de forma inconstitucional sobretudo pela sua atuação pró-Mercosul. Para Hugo Chávez, que é novamente candidato à Presidência da Venezuela depois de ter se recuperado de um câncer, trata-se de uma vitória importante, porque facilita mais ainda o acesso do país à produção alimentícia de Brasil e Argentina - tendo em vista, ainda, que a economia venezuelana é plenamente complementar a do Mercosul, além de ser uma das principais do continente.

A suspensão do Paraguai do Mercosul, inclusive, abre espaço para mais transformações no bloco, com a possibilidade de uma aproximação maior do bloco da China, coisa que também não aconteceu porque o país vizinho não reconhece a China Popular, mas sim apenas Taiwan, o que impedia negociações do bloco com Pequim. O ponto é que com uma suspensão de algo em torno de um ano do Paraguai, as movimentações em torno de uma aproximação com a China podem ter um ritmo frenético, o que pode aumentar certas diferenças que Brasil e Argentina possuem sobre como lidar com o gigante vermelho do ponto de vista do comércio internacional. 

No mais, os líderes golpistas paraguaios parecem estar dispostos a aumentar a tensão contra a Unasul e o Mercosul, o que pode tornar a suspensão do país em ambas as organizações - por unanimidade, diga-se - em um processo sem volta. O isolamento internacional do governo de facto é, por enquanto, enorme, e nem mesmo Washington o reconheceu - estranhamente ou não, os únicos países a legitimarem o golpe foram a Espanha, a Alemanha e o Vaticano; trata-se de um eixo pouco usual de ratificação a golpes, embora a Espanha, sempre que governada pela direita, tenda a apoiar golpes na América hispânica, mas quanto a Merkel, trata-se de uma decisão surpreendente e estranha (um desagravo ao Brasil?).

Fernando Lugo, por sua vez, resolveu ir para a ofensiva contra e agora entrou com recurso na suprema corte paraguaia contra o golpe, manobra que não deve surtir efeito em si, mas é necessária como meio para levar a questão à Corte Interamericana de Direitos Humanos - onde ele tem grandes chances de piorar mais ainda a situação dos golpistas.

O México, por sua vez, assistiu há quase uma semana o seu processo eleitoral. O país permanece distanciado do resto da América Latina e superdependente dos Estados Unidos e a eleição de Enrique Peña Neto (PRI) não há de mudar substancialmente isso, embora marque um corte importante, uma vez que rompe o ciclo de doze anos de reformismo liberal do PAN e um retorno à tradição da política mexicana. Foi a saída que os mexicanos produziram depois da falência do país por meio da aplicação da agenda do PAN, que não é incomum ao que, por exemplo, a direita brasileira propõe: resolução da questão das drogas ao estilo guerra às drogas, ultra-liberalização da economia e  aproximação visceral com os Estados Unidos.

Embora longe da Presidência há doze anos, o PRI dá as cartas no Congresso local há um bom tempo, possuiu larga maioria na Câmara dos Deputados e foi um importante bloco no Senado durante o governo Calderón (PAN), com uma atuação que passa pela sistemática manutenção do status quo mexicano - isto é, sempre resistente a reformas mais profundas no sistema mexicano, sejam mais à direita ou à esquerda, o que nada mais é a tônica com a qual o partido governou o México por sete décadas, exceto talvez pela guinada ultra-liberal que ele deu no final dos anos 80 no governo Salinas de Gortari, mas que depois reverteu, voltando apenas ao fisiologismo centrista habitual.


A campanha de Peña Neto, bancada por velhos oligarcas desalojados do poder, é um fenômeno de propaganda semelhante ao que elegeu Piñera no Chile, não só na forma como no possível desfecho: o novo presidente mexicano é uma figura fraca e torpe, cujo carisma pessoal dificilmente será suficiente para mudar o fato que é pouco preparado para as demandas que se impõem. Naturalmente, os problemas mexicanos atuais são muito mais graves do que de qualquer outro país importante da América Latina, o que torna tudo pior. 


Novamente, a exemplo de 2006 - quando uma enorme sombra de fraude pairou sobre o processo eleitoral e lhe prejudicou -, a esquerda mexicana obteve uma votação maciça, com López Obrador do PRD obtendo 31% dos votos contra 38% de Peña Neto (no México, não há segundo turno nas eleições majoritárias), mas mesmo a grande capacidade de mobilização e a potência do discurso de transformação não conseguiram furar a barreira eleitoral e suas armadilhas - isso mesmo levando em consideração, inclusive, o tamanho do movimento #YoSoy132, uma verdadeira primavera mexicana, que embora apartidário, confrontou abertamente a velha política mexicana e, talvez por isso, também a figura pessoal de Peña Neto.                                                                                   


Peña Neto começa esgotado sem ter largado, enquanto os movimentos de reivindicação ganham força, mas é preciso acirrar a estratégia e furar o fortíssimo bloqueio imposto por uma das mais resilientes oligarquias do continente.


Elas por elas, a crise mexicana não tem data para terminar, enquanto a aliança de governos de esquerda que fizeram a América do Sul optar pela outra via da bifurcação saiu fortalecida do episódio paraguaio, mas ainda há muita água para rolar e inúmeros problemas para resolver e outros tanto aumentando. A ver.




domingo, 1 de julho de 2012

A "Classe C", Católicos & Evangélicos, O Novo Brasil

Os recentes dados sobre as transformações sociais no Brasil pós-Lula continuam a sair, sempre acompanhados de certa atenção e gravidade por parte da intelectualidade brasileira e global. A denominada Classe C perturba, seja nos impactos meramente econômicos, culturais ou políticos que sua ascensão resulta ou pode resultar. Quando você for pensar em "Classe C", "Nova Classe Média" ou, como preferimos, Consumitariado, esqueça simplificações. Se você consegue ver na Classe C apenas tecnobrega, novelas ou extremistas evangélicos, sua perspicácia é a mesma de quem só vê arcos e flechas, cocares e "atraso" quando pensa em índios.

Um dado interessante acerca desse fenômeno são as transformações no credo dos brasileiros. A tendência histórica de decadência do catolicismo e crescimento do neopentecostalismo, sobretudo do último quarto do Século 20º para cá, prossegue, só que agora de forma acelerada. Como nos lembra o próprio Rudá Ricci, de quem tomamos a liberdade de linkar o post, saídas fáceis como dizer que o crescimento do neopentecostalismo no Brasil remete necessariamente à consolidação do Capitalismo, ou mesmo de seu redesenho por conta da correção de forças sob Lula, é simplório - inclusive por uma cartografia da realocação dos credos no Brasil.

Uma dessas constatações, sobretudo em relação aos neopentecostais, é que as regiões que experimentaram um considerável aumento do crescimento econômico em Lula remetem a áreas pouco evangélicas como o Nordeste e Minas Gerais. Outro ponto a se notar, é que se o avanço do neopentecostalismo tem muito a ver com a nova realidade urbana brasileira - coisa que o catolicismo não soube se adaptar - por outro lado, as novas fronteiras agrícolas, abertas em caráter hiperagressivo pelo agronegócio, são marcadas pela penetração de um neopentecostalismo 2.0, com implicações políticas  conservadoras e reativas às transformações atuais. O que não o evento Lulo-Dilmista nada tenha a ver com os evangélicos.

Em outras palavras, não é que o Capitalismo leve ao neopentecostalismo, ou que o neopentecostalismo nade na mesma direção do evento produtor da ascensão da Classe C ou coincida com ele, é mais complexo do que isso - inclusive porque o Brasil é um país cada vez mais laico, feito de "católicos não-praticantes", que só não estão mais bem organizados politicamente porque partes relevantes da esquerda insistem em uma retórica de ateístas contra teístas, quando o que poderia ser pautado (e o que interessa, afinal) é a laicidade e o anti-clericalismo.

Há algo que perpassa o fenômeno do Lulismo - e sua continuação descontinuada em Dilma -  é a crise do catolicismo tradicional. Não à toa, Lula é filho da Teologia da Libertação e é a partir das comunidades eclesiais de base e das pastorais que o novo-sindicalismo e o PT ascendem. Mas a Igreja reage a esse catolicismo renovado e prefere se trancafiar em bases conservadoras, incapazes de compreender o Brasil do final do século 20º - um misto de hecatombe urbana com a desagregação social do capitalismo 2.0 que as igrejas neopentecostais, flexíveis e ramificáveis soube bem se aproveitar.  

A aliança que conduziu Lula à Presidência, no já distante 2002, dava pistas do que poderia ser o resultado final do seu governo. Porque o PT, majoritário entre os setores organizados da sociedade, percebeu que esses setores, em vista do tamanho da sociedade brasileira, era insuficiente, portanto, era preciso abraçar o povão, os pobres - na sua linguagem, na sua estética, em seus desejos. Para um partido de esquerda, no qual o marxismo tradicional ocupava um papel importante, isso sempre produziu uma certa crise, uma inquietude senão de personalidade, ao menos de como agir.

A guinada da Igreja ao conservadorismo - e seu consequente recuo depois do avanço do Vaticano II - leva o PT, um movimento fortemente católico - aliás, o maior movimento político vinculado de algum modo ao catolicismo a surgir no Brasil - a ser jogado na berlinda e precisar se agenciar com setores evangélicos para chegar, e se manter, no poder. O que é tão paradoxal quanto as lideranças evangélicas precisarem de um força de esquerda no governo para ascenderem, embora a ascensão dos pobres, mais dos quais seus fiéis, se por um lado representa mais ganhos para seus negócios, por outro lado, é uma ameaça vindoura, pois eventuais laços de solidariedade e segurança social estimulam a laicidade.

A questão é que o Consumitariado não é conservador, mas querem - porque precisam - que ele seja. Ele é o precariado - o bolsão da  classe média empobrecida e dos pobres errantes - autorizado a desejar e com meios para satisfazê-lo; sua explosão é polifônica e multicolor, justamente pela sua potência, sua errância e sua propensão a ser quase inominável - e inordenável, por tabela. A armadilha da economia da dívida é um caminho para tanto.