quinta-feira, 15 de março de 2018

A Execução de Marielle: Os Idos de Março e o Brasil




Cena II, Ato I de Julio Cesar de William Shakespeare

Este artigo estava sendo gestado durante o Carnaval, à espera das movimentações eleitorais, mas ele acabou postergado, tantas e tantas vezes diante dos fatos que se atropelavam: o último, a execução fria, brutal e abjeta da vereadora carioca pelo PSOL Marielle Franco -- mulher, negra, favelada e defensora dos direitos humanos -- em pleno centro do Rio, contudo, me obriga a reedita-lo mais uma vez e, finalmente, a publica-lo.  Foram quatro tiros na cabeça, além dos tiros que alvejaram e também mataram o motorista.

Se até o Carnaval o que se esperava era o andamento da funesta reforma previdenciária e a resposta de Luciano Huck se iria aceitar sua indicação como candidato presidencial do "centro" -- o nome que a direita liberal traducional se deu --, o fato é que as coisas se aceleram mais uma vez, dessa vez em uma velocidade e sentido perigosíssimos. 

Sem votos para aprovar a reforma da previdência, Temer, de maneira autocrática e inconstitucional, decidiu por uma intervenção federal no Rio, o que impediria a própria reforma -- uma vez que emendas à Constituição são proibidas durante a vigência de intervenções -- embora tivesse causas obscuras.

A intervenção, comandada pelas forças armadas e sem implicar na remoção do governador, feita sem consultar os conselhos da República e de Defesa, já anunciada de pronto é mais do que uma jabuticaba constitucional, mas sim uma medida de exceção legítima: estado de sítio não declarado e disfarçado na embalagem de uma mera intervenção federal, a medida nem foi a sonhada e necessária intervenção para corrigir o grave estado de coisas no Rio, e ainda atua de maneira mascarada como a reintrodução do elemento militar na vida política nacional para fazer o que não lhe compete.

Sim, passamos 21 anos de ditadura militar, e isso foi recentíssimo, no qual não apenas violações aos direitos humanos aconteceram, como a desigualidade social ainda por cima piorou enquanto as forças armadas funcionaram como um partido político único, se confundindo com a burocracia de Estado. Que não se venha dizer que vivíamos tempos mais tranquilos, pois foi justamente no regime militar que as grandes cidades foram desorganizadas, junto com a já precária estrutura socioeconômica nacional, gerando o terreno propício para a escalada de violência que se viu depois.

Voltemos a Marielle: negra, mulher, favelada. Um tipo de pessoa que, a duras penas, só poderia ter ascendido ao parlamento da segunda maior cidade do país durante a nossa tentativa democrática. A mesma experiência que Temer está disposto a cessar pela caneta e pelas armas. A violência que vitimou Marielle é semelhante àquela que ele cansou de denunciou na comunidade de onde veio, a mesma que assola os rincões do país, no campo e nas florestas, mas que não chegava como violência política nos grandes centros. 

Essa violência ter chegado aos grandes centros, contra representantes políticos eleitos e com atuação oposta a tais violações, significa que ninguém está a salvo, que não só os desamparados estão na mira como seus defensores são, igualmente, matáveis. Algo parecido aconteceu na Ditadura Militar quando o deputado Rubens Paiva, opositor do regime, foi morto em 1971, sete anos depois do golpe e três depois de seu endurecimento, em um movimento de calar qualquer dissidência institucional. 

Até agora, o processo ilegítimo de impeachment, bem como o (ab)uso dos tribunais como forma de tirar políticos indesejáveis do jogo parecia ser o máximo a que chegávamos, embora grampos ilegais e a participação da polícia federal no jogo, bem como a violência policial contra manifestações populares, já insinuassem o pior. Pois bem, cruzamos essa linha e, possivelmente, cruzamos o Rubicão -- como se diz do célebre episódio no qual Julio Cesar atravessou o referido rio italiano com trajes militares, algo proibido em respeito à natureza civil da república romana, para dar um golpe de Estado.

A referência a César tamanha ganha uma outra dimensão, na farsa da maldição de Março: como demonstra a célebre frase do Advinho na clássica peça de Shakespeare, é sempre precisar se acautelar com os Idos de Março, uma frase que vale a pena ser lembrada no Brasil, um lugar onde muita coisa ruim se gesta neste mês -- talvez porque a oligarquia tenha um particular gosto de maquinar entre o final do ano e durante o Carnaval. Vide o golpe militar, concluído em 1º de abril de 1964, mas maquinado ativamente durante todo o mês de março de 1964.

Sim, poderia ser um giro populista de Temer, mas isso parece improvável. Alguns dirão que Temer buscou uma desculpa para não levar a cabo a natimorta reforma da previdência, outros dirão que pode ter sido uma busca desesperada por popularidade, alguns defenderão que se trata de ambos. No entanto, isso é mais complexo: o que fez Temer ter medo, com o perdão do cacófato, nunca foi impopularidade, mas que a impopularidade pudesse ser mais do que um fato social, um fato político, o que nunca ocorreu por diversos fatores, inclusive por culpa da esquerda e sua estratégia eleitoral.

Os movimentos de Temer miram a governabilidade, e sua sobrevivência política e pessoal, não a legitimidade. A indignação social não lhe interessa, preocupa ou comove: se isso não tiver efeitos políticos é inofensivo. E por um jogo institucional, Temer tem conseguido manipular suas peças, enquanto as ruas estavam indecisas e dispersas. Pelo menos até hoje, quando largas manifestações tomaram o país em memória e homenagem a Marielle, sobretudo em São Paulo, onde isso se junto a uma massiva manifestação de professores e servidores municipais -- os quais foram duramente reprimidos ontem, quando da votação da pífia reforma previdenciária municipal.

As massas, por outro lado, não vão perdoar Temer ou o (P)MDB por conta dessa medida, talvez se choque que a militarização da segurança não produza tantos efeitos assim -- o México e a Colômbia são bons um exemplo disso, e é um fracasso --, mas seu desejo se explica: o Rio era mesmo o caso de uma intervenção federal, só que civil, democrática, com o afastamento do governador e a aplicação de um profundo plano de resgate financeiro e social, com a regularização do pagamento dos funcionários público e normalização do serviço público. Na falta de nenhuma intervenção, que a esquerda não concebeu ou faria, veio alguma intervenção, e entre nada e alguma coisa, a população embarcou.

Falando em México e Colômbia, por sinal, são modelos que a oligarquia brasileira deseja para o país: economicamente austeras, politicamente autoritárias e possuidoras de uma estranha relação entre crime organizado e Estado, basicamente quase toda dissidência política ou social é dizimada enquanto um jogo e contentes entre as frações da elite disputa o poder -- na Colômbia, o candidato de esquerda com chances de vencer quase foi executado num atentado, no México, a esquerda periga ganhar, embora uma série de crimes bárbaros continue a acontecer sob o comando de cartéis de tráfico como, por exemplo, o caso de 43 estudantes ativistas "desaparecidos", há pouco mais de três anos, em uma ação de cartéis junto com oligarquias políticas.

No Brasil, a fé que o processo eleitoral vá funcionar, contudo, ainda está em alta. Na melhor das hipóteses podemos estar no meio dos anos 1950, quando o JK ganhou e o Marechal Lott conseguiu garantir sua posse. Mas pode ser que não. A Nova República, apesar de sua mediocridade econômica, conseguiu fazer do Brasil um país mais estável do que a média das nações no mesmo patamar, agora aquele pacto parece que realmente acabou. A falta de estratégia entre os setores democráticos pode levar a um colapso, que vem em ondas, aos poucos.

Marielle, talvez não ironicamente relatora da Comissão Parlamentar sobre a Intervenção "federal" do Rio, é uma vítima de crime político estranhíssimo. Ate agora, a junta fisiológica que governa o Brasil prefere se apropriar do crime como se isso provasse a "necessidade da intervenção", mas há sem sombra de dúvida muito mais escondido por detrás disso. Realinhar os setores progressistas, superar divergências pueris, e ter clareza na ação são essenciais para os meses -- decisivos -- que nos aguardam. Vamos à luta.




Nenhum comentário:

Postar um comentário