quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

A Rede de Marina e o Brasil na Pós-Modernidade

Marina Silva lançou seu partido no último sábado, dia 16. Eis a Rede. A agremiação, a exemplo do que já fez o PFL ao mudar o nome para DEM, abre mão do termo "partido". Além de se desvencilhar do incômodo termo, ela buscará se distanciar da sua forma: ela também já nasce com a proposta de ser um "movimento" e não um partido. Seja como for, a Rede está sujeita à legislação partidária e precisará angariar 500 mil assinaturas até Setembro para poder disputar as eleições gerais de 2014.

O partido-movimento de Marina é uma resposta ao estado de coisas da nossa política -- os desgastes internos nas agremiações tradicionais causados pela burocratização crescente -- enquanto, ao mesmo tempo, compartilha do espírito da nossa época. Não é justo dizer que o Rede é um novo PSD -- a legenda recém-criada por Gilberto Kassab, o controverso ex-prefeito paulistano --, mas sim que os dois, ponderadas suas diferenças, são expressões destes tempos pós-modernos da política brasileira. 

Os dois partidos são cordiais, colaborativos, "abertos", personalistas, além de se colocarem pós direita e  esquerda; pós-rancor e pós-confronto. Ninguém duvida que Marina chefia a Rede e que Kassab comanda o PSD. E ambos, sublinhe-se, pretendem coisas diferentes para a política brasileira. Talvez Marina sonhe em acontecer como Lula, enquanto Kassab certamente prefira o papel de um Sarney. 

O evento Marina possui uma dimensão maior e mais paradoxal ainda: isso implica, por um lado, em um chamado para se fazer política comunitária e de base, enquanto, por outro, há poucas dúvidas de que uma vez regularizada sua nova organização, Marina será sua incontestável candidata presidencial. Não existe nada de muito novo nisso. E com certos desgastes de Dilma, um cenário difícil na economia e a crise tucana, ela é forte candidata.

No guarda-chuva de Marina, e seus quase 20 milhões de votos conquistados em 2010, vem uma série de ativistas -- de meio-ambiente e de mídia-livre, sobretudo -- além de políticos ligados ao PT, à esquerda do PSDB e do PV e à direita do PSOL. Heloísa Helena, que de liderança aclamada do PSOL tornou-se persona non grata naquela legenda, estava lá para aclamar Marina -- e não custa lembrar que a queda de Heloísa no seu ex-partido deveu-se, vejam só, ao fato dela tentar forçar um apoio daquela legenda para Marina ainda em 2009.

Marina fala em uma "crise civilizatória" como mote para seu novo movimento. Na insustentabilidade do "modelo" em curso para lidar com problemas políticos, ambientais e sociais. De fato, há crise, mas a crise é o próprio processo civilizatório. Sempre foi. A Rede traz tudo isso: não há lado, não há uma luta comum, mas sim uma posição universal que paira sobre tudo (e todos). Esquerda e direita seriam apenas dois pólos antagônicos, simétricos iguais enquanto opostos. Os últimos 16 anos e a história das lutas sociais neste período são a linha evolutiva da história de uma "estabilidade abstrata".

O discurso moral é uma parte particularmente ruim. O inimigo abstrato é a corrupção e os maus costumes; nada de verbas de fabricantes de bebidas, menos por qualquer anticapitalismo e mais pelo álcool...Nada de movimento ou processo constituinte, mas sim a anestesia do éter. Mais Savonarola e menos Maquiavel. Isso tudo entre, sem ser contra, o neoliberalismo tucano e o neodesenvolvimentismo de Dilma -- mas não de todo o PT e de todos os petistas. Uma negatividade que une o que há de moralista na classe média ao conservadorismo plebeu.

A Rede não é, no entanto, estritamente nociva. Ela bagunça mais ainda o jogo político brasileiro, o que é bom; força os partidos existentes a serem melhores -- diante da presença de um atrator universal --, resolvendo melhor suas disputas internas. Ela também cria um espaço para parte da esquerda constituir projetos, são frestas, aberturas, espaços novos -- e, sobretudo, a Rede força a esquerda a elaborar um movimento real e alegre, livre de tantas paixões tristes.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

A Renúncia do Papa e a Crise do Catolicismo

Joseph Ratzinger, o Papa Bento 16, renunciou ao cargo na última segunda-feira, surpreendendo a opinião pública global. O cargo estará vago a partir de 28 de Fevereiro, sendo que em Março, os 119 cardeais aptos a votar devem eleger o novo papa, em votação secreta (conclave), na qual um nome precisará alcançar dois terços dos votos.  Sua renúncia, oficialmente em virtude da sua idade avançada, é a primeira em quase seiscentos anos, isto é, algo que não se vê desde o fim da Idade Média -- e não há como fazer ouvidos moucos para isso. Naturalmente, há muito mais em questão. Falar em uma exaustão conservadora não é equívoco. Trata-se de mais um capítulo da longa crise que se abate sobre o catolicismo romano desde o advento da modernidade e a decadência relativa dos grandes impérios católicos, algo acirrado desde o pós-guerra.

A escolha do então cardeal Ratzinger para papa há oito anos não foi nenhuma novidade. Ele foi durante anos o braço direito do falecido papa João Paulo 2º, sobretudo quando o antigo pontífice definhou fisicamente. E, juntos, João Paulo 2º e o Cardeal Ratzinger representaram a dupla face da reação aos ventos  reformistas do Concílio do Vaticano II e ao catolicismo social: enquanto o primeiro, carismático e político, era a face visível, Ratzinger, letrado e duro, era a face oculta -- a quem mais tarde caberia os dois papéis.

A João Paulo 2º cabia conquistar multidões, ser o rosto público simpático, enquanto para Ratzinger cabia o papel de tomar as medidas duras e dogmáticas para disciplinar a Igreja: e falamos de um projeto de apoio às reformas neoliberais, de inserção da Igreja no Globo baseada na diretriz Oeste x Leste (Capitalismo contra Socialismo) -- ignorando o Norte x Sul (a tensão entre países ricos e pobres) -- e uma visão sobre a pobreza assistencial e meramente caridosa. Dessa forma, os dois papados precisam ser vistos em perspectiva, dentro de um contexto no qual a Igreja larga o papel reformismo e coloca-se ao lado da reação financista dos anos 70:  era preciso construir um novo mundo que tivesse espaço para a Igreja e não mais adapta-la às mudanças trazidas pelas conquistas científicas e tecnológicas -- além dos efeitos da luta por democratização política.

A Igreja, assim, perdia o ímpeto reformista assumido desde os tempos da encíclica Rerum Novarum, datada dos finais do século 19º, quando ela se inseriu no contexto de disputa da chamada questão social para garantir a própria sobrevivência. Sobreviver, agora, implicaria na tarefa de moldar o mundo e não mais ser moldada por ele. E a globalização move-se à base de Internet e, também, se assenta sobre a organização que anteviu a organização internacionalista burocrática, qual seja, a própria Igreja. Nesse sentido, o Vaticano, sob João Paulo 2º e Ratzinger, mostrou um empenho seletivo com a democracia. Houve pouco empenho na crítica às ditaduras militares latino-americanas -- João Paulo 2º, por exemplo, visitou Pinochet em um dos pontos altos da ditadura chilena --, ao contrário do que se via no Leste Europeu. O problema, por certo, não era o autoritarismo. Bento 16 seguiu a mesma fórmula nos últimos anos.

A crise do catolicismo brasileiro é grave. A Igreja brasileira se viu atropelada por dois motivos principais no período: o primeiro era a natureza progressista da elite intelectual católica brasileira, o que pôs a Igreja brasileira em rota de colisão com o novo Vaticano, resultando na derrota da primeira e na ascensão de uma nova elite -- por força do novo arranjo católico pelo mundo e não das circunstâncias internas; o segundo, que a estratégia Leste x Oeste do Vaticano ignorou a luta política e social travada no Brasil, na qual setores moderados e progressistas da Igreja local se uniam contra a ditadura e a pobreza, uma vez que a prioridade deveria ser apenas e tão somente o anticomunismo e a construção da fé e do ritual em um sentido meramente abstrato.

O resultado é que passadas algumas décadas do processo, vê-se uma laicização enorme da população brasileira e, ao mesmo tempo, um crescimento enormíssimo das igrejas protestantes neopentecostais. O número de católicos caiu em termos absolutos e relativos junto à população. Muitos dos que ainda se declaram católicos não são praticantes, sobretudo no que diz respeito aos mais jovens. Não importa muito se a figura de João Paulo 2º era, em si, popular em contraste com a de Bento 16, mas nem isso impediu o severo enfraquecimento do catolicismo romano no Brasil -- o que ficou mais patente, no entanto, nos últimos oito anos. Se havia renovação e uma grande inserção da Igreja na sociedade nos anos 70 é fato que isso, nem de longe, se repete hoje.

Como fato político, a força evangélica, ainda que difusa, é tão forte quanto o catolicismo, ainda que o último controle instâncias importantes do poder, favorecido por uma estrutura estatal-burocrática -- item que lhe permite ações coordenadas. Mas a mesma estrutura burocrática que favorece a influência da Igreja junto ao Estado brasileiro é aquela que é, também, insuficientemente flexível para adequar o catolicismo à nova realidade social e urbana do Brasil. O perfil do católico praticante brasileiro neste início de século 21º possui uma idade avançada, é branco, da antiga classe média. Nada mais destoante da realidade pobre e emergente do Brasil dos anos Lula.

Na América Latina, apesar da maioria católica e de um clero muito mais conservador do que o brasileiro (mesmo o atual), ocorrem escolhas recorrentes de governos de esquerda, raramente apoiados pela Igreja. Aliás, um fato digno de preocupação é que golpes de Estado recentemente tentados (como o da Venezuela) ou consumados (Honduras e Paraguai) na região tiveram o apoio da hierarquia católica -- no caso de Honduras, mesmo o papável progressista Oscar Maradiaga apoiou o golpe local. Na Europa em crise, a posição da Igreja sobre as políticas de "austeridade", o eufemismo achado para explicar as políticas de recuperação financiada pelos trabalhadores e mais pobres, é péssima e não ajuda na "reevangelização" da Europa como propunha Bento 16.

Bento 16 certamente não desejava viver seus últimos dias como João Paulo 2º, física e mentalmente incapaz de lidar com suas atribuições, totalmente vulnerável no jogo de poder de sua sucessão. Ele precisava assumir as rédeas do processo e salvar alguma coisa dos rumos da Igreja nas últimas décadas. Não há ninguém em melhores condições do que aquele que renuncia alegando falta de condição. O que o aflige, tanto menos do que uma eventual (e remota) resposta reformista, é a atuação de grandes blocos de poder ultraconservadores no processo de sucessão: Opus Dei, Comunhão e Libertação, Legionários entre tantos outros. O resultado desse embate por causar rachas que agravariam a situação católica.

Existem questões internas prementes como a ordenação feminina, o fim do celibato -- no qual está inserido o problema da pedofilia -- e o diálogo ecumênico.  Externamente, estão postos os problemas da política em relação aos métodos anticoncepcionais, a sustentação financeira da Igreja -- e seus constantes problemas bancários do Banco Ambrosiano à situação atual --, a sua política para universidades católicas e o relacionamento da hierarquia católica com os homossexuais. Não há de se esperar nada revolucionário do próximo papa, mas sem respostas efetivas para tanto, o catolicismo estará perdido em um curto espaço de tempo. O futuro pontífice é uma incógnita, poderia ser desde um reformista carismático do terceiro mundo até um tradicional papa europeu.

A crise católica, ressalte-se, está inserida no plano da crise do mundo que João Paulo 2º e Bento 16 ajudaram a construir. Nele, ironicamente, a Igreja se tornou um interessante instrumento político, mas não não conseguiu alcançar a importância cultural que desejava. Não foi sequer uma traição: o novo mundo -- neoliberal -- sequer achou espaço para si próprio nele e definha por conta própria, depois de sua gloriosa vitória. Não há nada mais moderno do que as técnicas de poder da Igreja e nada mais arcaico do que o Mercado, mas ambos se encontram na desdita. Nada mais curioso, aliás, que uma renúncia em pleno Carnaval, a festa que nasce da sátira ao luto público pela morte do imperador romano e na qual as leis estão suspensas para o deleite da carne.



domingo, 10 de fevereiro de 2013

O Longo Aniversário do PT

Prometeu Acorrentado -- Rubens
Hoje, o Partido dos Trabalhadores completa 33 anos. Depois de ter completado dez anos no comando do governo federal. Grosso modo, é recorrente a interpretação do PT enquanto uma polêmica em forma de partido. No entanto, ele é exatamente o inverso: um partido em forma de polêmica. Máquina de combate complexa, atravessada por mil dramas internos, nascida para a democratização da democracia, contra o economicismo e o vazio despolitizado. Fonte sem fim de debates e discussões. 

Há dois PT's. Um, antes do governo federal, outro depois. Uma mudança de forma de combate que não deixa de ser uma mudança no combate. Há quem diga que hoje se odeie mais o PT. Mas outros odiavam antes e agora o amam. Os setores da classe média que antes o aclamavam, hoje talvez não gostem mais dele. Por outro lado, os pobres, que antes refutavam o autointitulado partido dos trabalhadores, agora são sua leal base eleitoral. 

Abandonar os velhos dogmas e certos sectarismo permitiu ao PT realizar seu velho sonho, qual seja, comungar com a plebe, mas (talvez não) estranhamente, este movimento foi marcado pelo afastamento de setores de sustentação históricos: o realismo político afasta os que creem na revolução em abstrato, mas também há erros e distanciamentos bastante reais que afastaram, até justificadamente, aliados históricos -- a candidatura Haddad em São Paulo, em parte, é reconhecimento disso.

O PT jamais será perdoado por ter melado o sonho de Golbery (e, portando, nosso pesadelo): uma democracia consentida, controlada e obediente, com um jogo bipartidário e parlamentar no qual ficaríamos entre a direita e o centro. Foi o PT que trouxe para os holofotes debates dolorosos da realização da democracia. E apesar das mudanças todas, o PT conservou em seu interior um certo esforço socializante, o imperativo de que o começo de conversa na política é a melhoria da vida de quem menos tem.

É claro que poucos críticos seus, sobretudo à direita, irá admitir suas reais motivações. É melhor apelar para superstições e crendices populares como, por exemplo, dizer que se trata de um partido de corruptos -- como se ele não tivesse menos parlamentares cassados do que os rivais ou menos candidaturas barradas pelo Ficha Limpa. Ou talvez prefiram, de forma mais sofisticada, retrata-lo como um partido arcaico ao estilo dos velhos partidos soviéticos -- como se o gerencialismo do PSDB não lembrasse mais o modo de gestão socialista burocrático do que o contrário.

Também não é o caso de dizer que o PT seja um partido "moderno". É nada. Trata-se de um partido tão velho e arcaico que precisou se desobrigar de certos dogmas para poder continuar existindo -- primeiro, internamente (dele com ele próprio), depois, externamente (dele com a multidão). Eis por isso que ele se converteu em um fenômeno social, mais até do que político. O PT, é certo, tem mais relevância social do que política (não por sua política social, mas por sociabilidade política). É isso que explica o fato do partido resistir a um bombardeio midiático diário enquanto o PSDB não resistiria sem apoio da mídia.

Por outro lado, o PT não irá aceitar nunca não ser amado universalmente. Doía não ser admirado ou votado por trabalhadores antes, dói não ser aclamado por vastos setores da classe média hoje em dia. Os problemas reais do partido, a bem da verdade, giram em torno da burocratização interna. O aumento gradual de suas ligações com os órgãos esclerosados do Estado está na ordem do dia. 

A perda das posições combativas do partido não melhora sua posição, longe disso. Não faz diferença. Lula é tão atacado quanto Chávez ou Cristina Kirchner: ninguém odeia os dois últimos por sua verve, ou mesmo por seus defeitos, mas por suas políticas. O 1% de favorecidos não perdoa quem trabalha para os 99%. Lembremos, Allende era quase um lord inglês, mas nem por isso deixou de ser vítima de um golpe sangrento.

É impossível prever o futuro pela simples razão que ele não existe, nem existirá. Mas a manutenção do PT na política, pelo menos como agente relevante, demanda o encontro com o a classe sem nome que ele autorizou a desejar e saiu por aí desando, o encontro com o comum -- o elemento diferencial e definidor da não-fascistização de uma multidão anônima, qualquer uma delas -- e o enfrentamento da burocratização com a qual ele próprio passou a travar contato ou, até mesmo, a reproduzir, por desatenção ou engano. Goste-se ou não do PT, ele é um ator importante sem o qual esta batalha imensa passa a ser morro acima.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

O Crack, A Metrópole, O Deixar Morrer

Pino Daeni -- Desalento
Internação compulsória de viciados em crack -- que começa no Rio e é copiada em São Paulo -- está na ordem do dia. Questão delicadíssima por sinal. Trata-se de algo que está no cerne da nossa sociedade, no âmago do funcionamento de nossas metrópoles. Uma ferida tão exposta que resta ocultada a cada esquina. É sobre invisibilidade e invisibilização que estamos falando, vontade de morrer, mas também um jogo de omissões bem pontuadas, afinal.

Deixar fazer, deixar passar e deixar ir, eis o singelo lema que iria animar o movimento liberal até hoje. Mas há uma outra parte deste dizer, talvez a mais importante dele, que resta oculta: deixar morrer. O liberalismo de verdade não mata, deixa morrer -- e se você morreu, é responsabilidade sua por ter morrido na contramão atrapalhando o tráfego. 

Os crackeiros carregam um pouco disso: pobres diabos famintos que perambulam pelas ruas, largados à própria sorte, consumindo uma substância que lhes dá, por um instante, um prazer que nunca sentiram (nem sentirão) em uma vida inteira de desgraças. Hoje, eles são protagonistas deste interessante debate, mas sua existência secreta e, ao mesmo tempo, óbvia é chave. 

Pois bem, o vício do crack é algo relativamente novo no Brasil, uma processo que se instalou entre as classes mais precarizadas das áreas urbanas, sobretudo dos anos 90 para cá. O crackeiro, em metrópoles como São Paulo, não é, ou era, alguém simplesmente sem valor, ao contrário, via de regra ele cumpre uma função importante junto à especulação imobiliária: são largados em áreas cujo interesse momentâneo do "mercado imobiliário" é deixar prédios inteiros vazios, a espera de preços melhores. 

A existência do crackeiro é permitida tacitamente pelas forças policiais, o que torna tais áreas inabitáveis, as tirando dos olhos da boa sociedade até (e se) os interesses mudarem, fato do qual resulta a sua retirada -- manu militari se for preciso, como aconteceu na São Paulo de Kassab; o capitalismo não trabalha a partir diretriz de produção para o consumo real, mas sim de produção para consumo em abstrato e com a negociação de expectativas, o que resulta em excedentes vazios ou inutilizados.  

O crack também se trata de uma boa medida, no sentido perverso da gestão da vida, para se livrar de um contingente populacional -- eliminando mesmo ou reduzindo sua durabilidade --, caso ele se torne incômodo. Sua disseminação é deixada solta por aí e populações inteiras morrem, são deixadas para morrer. Evidentemente, o crack não é causa, mas consequência, antes dele há toda a miséria afetiva, econômica e social por detrás das camadas mais pobres da metrópole.

A atual política de internar compulsoriamente viciados em crack -- o que corresponde a maioria dos usuários -- é a típica políticas de bondade que esconde muita coisa. Que nos explica como um sistema supostamente calcado na permissividade precisa, para responder às suas demandas, se contradizer. Ninguém deseja curar o crackeiro, é preciso apenas tira-lo da vista, higienizar as ruas e tocar as coisas nos termos necessários. Ninguém, sejamos francos, está preocupado em curar as chagas sociais que causam isso.

O crackeiro é conduzido a uma cura impossível -- uma vez que a dificílima cura para seu vício depende da vontade do viciado. Ele está deixado para morrer longe dos nossos olhos.  E passa a adquirir nova importância econômica, como objeto internável, coisa que certamente não é gratuita e envolve uma economia médica -- afinal de contas, alguém há de ganhar com isso. Argumentar pela  resolução das causas é prontamente desqualificado em nosso meio. E até lá, o que faremos? Dirão alguns. No entanto, a questão verdadeira é: e como as coisas conseguiram chegar até aqui?

Destruição e criação (de um ser humano, inclusive), embora frequentemente pareados na forma de um binarismo, são elementos de natureza diversa: é muito, muito, mais fácil destruir setores inteiros a ponto deles consumirem crack a fazer o contrário. Os confinamentos de viciados estão para a cura desse vício como as sangrias medievais estão para a cura de qualquer mal. A cura para tanto é psicológica mas é social, sem a última, a hemorragia não terá fim.

Atualização das 16:50: segue aqui um belo texto de Lucas Portela sobre a presente questão e a política de confinamento em geral.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

A Criminalização da Política na Democracia Brasileira

Dezenas de estudantes da USP foram indiciados pela ocupação da reitoria daquela universidade. Sinal do nosso tempo. É forçoso crer, pelo propósito empregado, que estudantes cometam algum crime ao realizarem um protesto político dessa natureza. No entanto, o sistema estatal precisa absorver a desobediência civil na forma de ato criminoso para solver a contestação que lhe extrapola -- e o direito penal é solvente universal nesse sentido. Por ele, a narrativa da rebelião é recontada, uma vez se tratar da última linha de defesa da ordem. A criminalização da política, portanto, está na ordem do dia.

Sim, o Brasil é uma democracia e o regime militar foi derrotado. O que não quer dizer que o autoritarismo não possa continuar operando, disputando terreno com a própria luta constituinte de direitos. Seja nas pequenas arbitrariedades quotidianas -- como a má vontade de uma cartorária de vara criminal que pode custar a liberdade de alguém -- ou mesmo nas instância mais altas e visíveis do Estado -- como em decisões casuístas do STF que, na prática, buscam suspender dispositivos constitucionais vigentes. Digamos assim, a luta continua, embora em outra roupagem. 

Como bem observou Gilson Caroni, a gloriosa aliança entre a mídia e a toga marca o tom do golpismo, uma vez que a política precisa ser esvaziada. Sem mais juntas militares, agora é a hora e a vez dos tribunais supremos mediarem a democracia. Uma mudança tão óbvia que chega a ser caricatural: é como cambia a história da farsa política coma a passagem do capitalismo industrial para o cognitivo. É preciso construir uma doce doutrina de dominação e na falta de conseguir isso por meio de eleições, que seja pela elevação do STF à instância total. Em grau menor, também vemos o ministério público assumir uma função policialesca contra os movimentos sociais como no primeiro exemplo.

Isso se vê, por exemplo, na narrativa das recentes eleições dos peemedebistas Renan Calheiros e Henrique Alves para o comando das duas Casas do Congresso. Há pouca crítica programática política dos aliados parlamentares do governo, só moral de ocasião e a insistência em, sobretudo no que diz respeito a Alves, fazer criticas pelo viés da "desobediência ao STF" -- em virtude das declarações do deputado de que é a a mesa diretora que declara a perda do mandato, não o STF (como o próprio tribunal concluiu, ampliando sua própria competência para além do texto da Constituição). Nada pode arranhar a figura divina do STF.

Em parte, o governo petista, responsável pela constituição de direitos que ficaram estancados desde a redemocratização, arruma a cama para aqueles que podem ser, e já estão sendo, seus algozes. Bancar emendas constitucionais que possibilitaram o STF chegar a esse ponto é um exemplo disso. Nesse sentido, ele repete uma prática que custou caro à social-democracia alemã. As conquistas democratizantes dos últimos anos na área social e econômica precisam vir acompanhadas de uma democratização política, sem a qual tais avanços podem cair por terra. A burocratização da sociedade brasileira é uma linha de força que está posta. É preciso democratizar a democracia.