terça-feira, 27 de novembro de 2012

Filhotes da Ditadura: A Seleção, Marin e a morte de Herzog

Vladmir Herzog
Muito se fala e muito se diz sobre a queda do treinador da Seleção, sobre quem o sucederá e sobre a crise no nosso futebol às vésperas da Copa que sediaremos. Pouco se escuta, mesmo que seja de ouvir dizer, qualquer coisa sobre causas de tanta degradação que, certamente, superam o óbvio da mercantilização do futebol e, sobretudo, da Seleção Brasileira, rifada entre interesses comerciais e políticos da própria CBF, da TV Globo e dos empresários dos jogadores e do próprio treinador da Seleção: existe algo de político, um fator importantíssimo que remete ao fato de como a política nacional penetra o futebol e vice-versa.

Vamos lá. Hoje, diante da prisão do vice-presidente da CBF, Marco Polo Del Nero, o jornalista Juca Kfouri lembrou do passado obscuro do dirigente e suas ligações íntimas com a Ditadura Militar. Há coisas piores: o atual presidente da CBF, José Maria Marin, nos seus tempos de parlamentar apoiador da Ditadura Militar, foi um dos responsáveis por denunciar o departamento de jornalismo da TV Cultura por promover a "presença comunizante no vídeo" (no dizer de seu correligionário, Wadih Helu) -- dessa denúncia resultou um processo de investigação pela polícia do regime que terminou com a morte de ninguém mais, ninguém menos do que o jornalista Vladmir Herzog.

Em outras palavras, o nosso futebol está nas mãos de uma rede de televisão que sustentou a Ditadura, e de dirigentes que foram burocratas da Ditadura. A erosão do nosso futebol, via capitalismo 2.0 e redução do nobre esporte bretão à lama dos holofotes e do marketing é apenas parte de um processo que não começou agora. Os mesmos dirigentes que enquadraram o futebol ao esquema do capitalismo estatalista comandado por militares são aqueles que o colocaram na rota da mercantilização, do craque for export e para o inferno goebbeliano da máquina de publicidade do capital. 

É um processo que se interpenetra ao Estado, o projeto silencioso do chamado "entulho autoritário" que os democratas, meio positivistões, achavam que ia ser "superado" com o andamento de eleições e debates livres. Em outras palavras, precisamente no momento. Nada de novo sob o Sol. Pouco importa a Arena histórica, que está em vias de ser refundada, mas o arenismo que subsistiu em caráter viral pelas instâncias variadas do Estado e de seus tentáculos. A recaptura do futebol, um esporte de elite devorado pelo povão, mas agora ameaçado pelo grande capital é parte disso. 

O momento, portanto, é paradoxal: se nunca antes estivemos tão bem, nunca antes o poder esteve por aí tão forte a nos espreitar. Os megaeventos poderiam ser uma oportunidade única esportiva e urbanística para o país, mas podem ser, perfeitamente, um desastre -- como tendem a ser --, sobretudo se a gestão burocrática do esporte perder mais oportunidades ainda de inverter a hierarquia do "esporte de ponta" em relação ao "esporte de base" -- como o PT conseguiu fazer em várias outras áreas.  Nada leva a crer que venceremos a Copa de 2014, mas a verdadeira derrota é o atoleiro do que fica, tanto no sentido institucional quanto pela completa erosão do comum futebolístico. O adversário não é Marin, como não era Ricardo Teixeira, mas o processo que os colocou e os sustenta no poder.




terça-feira, 20 de novembro de 2012

O Inconsciente Negro e as Minorias

O Brasil é um país cuja cultura é em grande parte negra, mas ele lida mal com isso. Assim como em boa parte das coletividades humanas nascidas da expansão do homem europeu pelo mundo, já sob o paradigma da "civilização", aqui também existe uma herança nativa, ou escrava, pré-civilizacional, que se mantém viva e oculta em pleno atrito mudo com a "normalidade do modelo": não é diferente nos países hispânicos e nos Estados Unidos também em relação aos seus índios e negros, na Rússia em relação aos povos orientais, na China em relação aos povos mongólicos.

O negro, vejam só, é ontologicamente minoria, pois ele só o é devido ao mau encontro com o colonizador europeu em África: negro é negro em comparação a um padrão de maioria chamado "branco". Em África, antes do imperialismo, os negros simplesmente eram a multiplicidade de etnias na qual se constituíam, a despeito de qualquer binarismo branco-negro. Há dois pontos aí: antes do homem europeu, os negros não eram negros (e nem precisavam ser); quem precisa que eles sejam negros eram os europeus (com o intuito de se afirmarem brancos) e, ao mesmo tempo, sob o rótulo de negro existe uma multiplicidade de etnias e culturas diferentes -- ninguém pergunta a um brasileiro branco se ele é descendente de brancos, mas sim se ele é descendente de portugueses, italianos, alemães, árabes, espanhóis, holandeses, poloneses etc; com o negro não: ele é descendente de escravos, de um negro, pouco importa de qual e de onde em África.   

O mesmo ocorre com os loucos: só há louco pela razão de que há alguém que afirma publicamente seu modo de demência -- em busca de autorização --, se dizendo "normal" e afirmando que todas as outras demências são loucura -- o louco é alguém que ousa se comportar de forma diferente. Só há um pobre porque existe um "rico" a lhe oprimir: ser pobre é estar, necessariamente, oprimido de um modo que sua própria vida é roubada cotidianamente, mas ainda assim, se resiste -- o pobre é um resistente por natureza. Só há índio porque houve um colonizador a vir até aqui, reduzir uma miríade de etnias a "índio" (= homem colonizável), devir-índio é encontrar-se resistente a um processo de colonização (a começar pelo próprio corpo). Nem o negro precisa do branco, nem o louco do normal, tampouco o pobre carece do rico ou o índio faz questão do cara-pálida para Ser. Mas a recíproca não é verdadeira, justamente por isso as minorias são parasitadas pelas maiorias.

A luta não se constitui por essas identidades, mas a partir da potência que essas subjetividades, forjadas na resistência possuem. Daí, se depreende que há uma miríade de áfricas no negro, uma miríade de jeitos no louco, uma miríade de gentes comuns viventes no pobre, uma miríade de brasis (ou até mesmo uma multiplicidade que há antes e a despeito do Brasil) no índio. Assume-se o binarismo, a máscara discriminada, e de sua potência causa-se uma explosão: não é que falemos em potência do desejo, mas que o desejo é potência, é energia e ele mesmo é o único modo de mudar o que quer que seja. 

O racismo, por sua vez, não é real, pois não existe realmente raça entre os humanos, mas isso não impede que como ficção (em tom de farsa) ele produza o real da opressão e, por isso, não se possa utilizar medidas legais (igualmente ficcionais) para combater a discriminação racial. Também pouco importa mais e mais informações da Genética ou da História sobre a insanidade da discriminação, ninguém é racista por falta de informação, muito pelo contrário, mas por gozo perverso: mais do que informação, precisamos de comunicação, e a comunicação  está para além da própria Linguagem, habitando na relação afetiva e na potência de afetar; é preciso afetar, de qualquer modo, interferindo no desejo do racista.

O problema também não mora em ver Joaquim Barbosa como negro, ou Dilma como mulher, mas em não ver Gilmar Mendes como branco, uma vez ocupe a Presidência do STF, ou FHC como homem, uma vez Presidente da República. No entanto, tanto o presidente do Supremo quanto o da República foram, ambos, forjados e sustentados no imaginário sob o paradigma branco, normal, rico e quatrocentão (ou imigrante bem-sucedido): não é a ascensão das minorias ao cargo, por si só, que muda algo, mas a chegada da minoria enquanto minoria. A sociedade não mudará se for permitido aos negros enriquecerem ou ascenderem à chefia do Estado, mas se eles chegarem lá enquanto negros e subverterem a ordem -- hierárquica, opressora, mutuamente escravizante.   

Não somos todos negros, mas podemos devir negros. É, no entanto, o devir-negro do negro que pode fazer a diferença diante do incomum do racismo: não existem, realmente, negros e brancos, há, na verdade, brancos sobre negros; é preciso devir-negro para além da própria negritude, mas a partir dela.   




domingo, 18 de novembro de 2012

Pela Palestina

"Como os palestinos poderiam ser “parceiros legítimos” em conversações de paz, se não têm país? Mas como teriam país, se seu país lhes foi roubado? Os palestinos jamais tiveram escolha, além da rendição incondicional. Só lhes ofereceram a morte. No conflito Israel-Palestina, as ações dos israelenses são consideradas retaliação legítima (mesmo que seus ataques sejam desproporcionais); e as ações dos palestinos são, sem exceção, tratadas como crimes terroristas. Um palestino morto jamais interessa tanto, nem tem o mesmo impacto, que um israelense morto (...) O conflito Israel-Palestina é um modelo que determinará como o ocidente enfrentará, doravante, os problemas do terrorismo, também na Europa (...) Esse conflito é uma estranha espécie de chantagem, da qual o mundo jamais escapará, a menos que todos lutemos para que os palestinos sejam reconhecidos pelo que são: “parceiros genuínos” para conversações de paz. De fato, estão em guerra. Numa guerra que não escolheram".
(Gilles Deleuze, artigo publicado no Le Monde de 7 de Abril de 1978, tradução do inglês de Caia Fittipaldi -- retirado daqui)



O artigo em questão tem mais de 34 anos, no entanto, ele se mantém incrivelmente atual, o que afirma seu tom profético: e a profecia, em verdade, nada tem a ver com a transcendência, mas com a capacidade de descrever os movimentos reais e, portanto, suas tendências. Pouco mudou naquela região: aquele estágio do massacre sofrido pelos palestinos determinou, de fato, o modo que o Ocidente enfrenta o "terrorismo". Nestes momentos de crise, nos quais a problemática contínua da questão Israel-Palestina vem à tona, é natural que os trechos deste artigo rodem a rede, o que deixa tudo claro: não, nunca foi um conflito, sempre foi Israel sobre e contra a Palestina.

A forma como se estrutura a atual contenda entre israelenses e palestinos não é mesmo conflitual: agora, a exemplo da violência de três anos atrás, trata-se de um massacre. A Palestina não detém força aérea, marinha de guerra ou tropas regulares. Gaza é praticamente um gueto. Israel tem o que de mais moderno existe no mundo em termos bélicos. A proeminência do complexo bélico-industrial israelense é tamanha que consome os recursos do próprio país. O saldo de mortos palestinos é uma evidência clara: o bebê de onze meses morto recentemente em um ataque da força aérea de Israel a Gaza é prova cabal. 

Desta vez, outro item também não é diferente: a indiferença da cobertura midiática ocidental é proporcional a indiferença israelense pela vida dos palestinos. Mas a Palestina é resistência. Para além da catástrofe e do romantismo: se o "índio" era, para muito além da Índia real, a definição genérica para "homem colonizável" dos europeus, "palestino" é muito mais do que uma nacionalidade ou uma etnia, mas uma subjetividade decorrente da resistência à colonização incessante da máquina ocidental -- e sua fantástica desconsideração em relação ao outro. Não é que somos todos palestinos, mas devimos palestinos quando resistimos a esse processo de avanço incivilizado da civilização.

Sem dúvida, este é o paradoxo israelense: Israel é o avanço e o auge da civilização no Oriente Médio e, portanto, é seu antagonista, pois eleva as contradições daquela noção romana -- que mais tarde engrossou o caldo do que seria a cultura ocidental e, em último caso, a cultura global -- ao extremo. Ser civilizado é ser oposto a selvagem, é estar para lá do acaso da vida natural, ou em ligação com a natureza, para habitar tecnologicamente e, portanto, estar sujeito a uma Lei.

Israel é o auge da tecnologia porque, dentre outras coisas, se estrutura em torno de uma língua morta recriada tecnologicamente, por ambientes tecnologicamente viabilizados pelo melhor que a tecnologicamente pode oferecer e, também, por tudo o que há de mais moderno em tecnologias sociais, políticas e informacionais -- mas o corte principal está entre o eu e o outro, a maneira como a tecnologia aparta por ser incapaz de criar critérios para distinguir o molar do molecular (como diria o próprio Deleuze), o que pertence ao mundo dos grandes números, das multidões reduzidas a estatísticas, ao mundo das singularidades, de nós mesmos enquanto humanos.

O rompimento pretenso que a civilização sempre promoveu do homem em relação à natureza -- que jamais resta superada mas estará sempre bem ali, atualíssima -- é inviável, seja das relações do homem com o homem ou dele próprio com o ecossistema (o que se tornou tragicamente claro nos últimos anos). A civilização, como os próprios Estados nação que ela forjou, é inimiga de si própria por não reconhecer a alteridade: é sempre nós (civilizados) e os outros (selvagens), mas enquanto os últimos se bastam a si próprios, os civilizados vivem às custas deles. O selvagem simplesmente é, livre e sem rótulos, ele só passa a ser selvagem por obra e graça da civilização.


Justamente por ser tão civilizado é que Israel é ele mesmo inimigo da civilização, uma vez que sua estratégia sempre girou em torno da destruição das instituições alheias, financiamento de grupos religiosos para minar grupos árabes laicos (como no caso do Hamas, financiado para enfraquecer a laica Fatah) e pela destruição física da civilização ou bolsões civilizacionais dos seus adversários (como o caso do Líbano). 

O paradoxo de Israel é o paradoxo da civilização ele mesmo, de sua insustentável leveza que o faz tender contra si mesmo a se devorar. Israel engendra seus inimigos, não é que ele crie inimigos selvagens, mas que ele traz um paradigma civilizatório -- copiável até como forma de resistência a ele mesmo -- que ele devora e não aceita -- nem pode aceitar -- sua universalização pelos outros: ele engendra, assim, inimigos irracionais que servem ao seu discurso, mas que podem liquida-lo tal como fizeram os romanos com os "bárbaros".

Há quem diga que os palestinos não existiam antes de Israel. Fale que eles não passavam de gentes dispersas, de forma selvagem, por aquelas terras. Há quem veja algo de mal nisso, afirmando ou rebatendo tal afirmação, mas o fato é que essa afirmação é verdadeira: os palestinos simplesmente viviam ali e pouco importava qualquer palestinidade. Sua existência é fruto da resistência ao poder, ao déspota que veio de longe, e engendrou pela negação da vida vivida naquelas terras uma subjetividade: eis aí que emerge o palestino, do mau encontro com a colonização no seu auge tecnológico, trazida de maneira tão irônica quanto cruel justamente pelo povo que foi a maior vítima dela, cuja chegada negou-lhes a vida.

Do mesmo modo que o índio não era índio antes do mau encontro com os europeus -- portanto, os índios sempre foram minoria e, por isso, índio é ontologicamente minoritário -- o palestino só é palestino depois do mau encontro com Israel, isto é, só aí que a territorialidade da Palestina é fixada, não antes. A Palestina não desaparece, apesar de todos os poderosos esforços para tanto, pois ela, ironicamente, nasceu de uma invasão. E os judeus, trazidos pelas mãos do sionismo em fuga, encontram-se diante de uma outra encruzilhada: a saída sempre esteve em reconhecerem a sua própria orientalidade no processo de retorno -- como diria Uri Avnery -- não em reafirmarem a identidade com o fenômeno que os vitimou, qual seja, o ocidentalismo; enquanto o fizerem, serão os romanos ou gregos voltando, mas jamais os judeus.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Occupy PUC

Assembleia estudantil de ontem
Nos últimos dois dias, a PUC de São Paulo assistiu ao estouro da sua maior crise desde a invasão da tropa de choque mais recente, em 2007. Foi, pelo menos, o maior e mais intenso tumulto que eu testemunhei nos meus cinco anos na graduação. A causa foi a indicação, por parte do cardeal arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Scherer, da última colocada na votação para reitor ocorrida em agosto, Anna Cintra, pelo óbvio motivo de que ela era a candidata alinhada com o ideário conservador do Vaticano.

Pois bem, é possível que se argumente a história da lista tríplice, esse escremento que existe aqui, ali e, inclusive, na PUC. E Anna Cintra poderia alega-lo, se tivesse mantido o discurso original de que "são as regras do jogo", mas não foi isso que ela fez: basicamente, Anna assinou em público, durante um debate entre candidatos promovido pelos estudantes, um termo de compromisso de que não assumiria caso não ficasse em primeiro lugar. Pois bem, não ficou. Também não ficou em segundo. Ela ficou em último lugar.

Há quem diga coisas do tipo "não há valor jurídico no documento", embora todos saibam que o direito é ficção que produz real, talvez por introjeção de culpa. O documento que ela assinou idem. No fim das contas, o que existe é uma disputa por legitimidade, de acordo com as regras postas ou não, e a legitimidade é assentimento, é desejo de concordar, com este ou aquele movimento político. Anna, portanto, pode ter sido indicada no regime de listra tríplice, o que é aparentemente legal, no entanto, ela frustrou a legitimidade que precisa para gerir um lugar como a PUC.

Se são as regras do jogo, a lista tríplice, por que o termo de compromisso, se o termo, como as regras do jogo? O movimento de Dom Odilo, quem sabe voltado para se afirmar como papável, foi o de usar um proxy dentro da PUC para quem sabe, sob os auspícios do discurso da "boa gestão", conseguir implementar a reforma que gostaria e varrer os resquícios, diretos e indiretos, da Teologia da Libertação na PUC -- a exemplo do que se fez, recentemente, no Peru, na PUC de Lima. Se ela não ficasse em primeiro lugar, sem problemas, mostraria-se "força" e ela seria reitora pela prerrogativa da "escolha da lista tríplice". O problema é que o tiro realmente pode sair, como saiu pela culatra.

Primeiro que a votação na PUC, ao contrário da USP, é direta entre professores, estudantes e funcionários, logo, não escolher o primeiro colocado, é motivo para gerar comoção. Depois, que se você tem eleições, por mais que se diga que há uma prerrogativa metafísica pela qual o escolhido pode não ser o primeiro, existe um contra-senso aí: eleições não existem por alguma benemerência transcendental, elas são fruto da resultante de forças no embate político de algum lugar, segundo a qual manda quem teve mais apoio porque é preciso mais força para ter mando efetivo. 

Segundo, que quem assume não sendo o vencedor de fato, sempre arcará com o peso de ter se valido por uma brecha, não importa que se diga -- ainda mais se assinou um documento dizendo o contrário, o que dá azo a não só não ganhar apoio, como também perder o que se conquistou. Em outras palavras, esperteza demais pode fazer com que você ganhe, mas não leve. A implementação de um programa conservador pode, inclusive, ter um peso pior do que  se imagina e já vir maculado pela descrença. 

E não existe motivo pelo qual os estudantes, mesmo conservadores, venham a simpatizar com uma candidata que fala estultices sobre "liberdade de cátedra" -- e vacila diante da liberdade de um professor falar sobre aborto em sala de aula -- e não cumpre o que diz. Tampouco o argumento da "boa gestão" pode colar, inclusive porque o grupo de Anna já esteve por aí em algum momento da história pelas várias reitorias e, bem, gerir bem a PUC nunca foi algo recorrente por parte das mesmas pessoas que sempre estiveram na reitoria, ou a disputando.

As movimentações dos últimos dois dias, com ocupação simbólica da reitoria -- que foi entregue à atual gestão atual ontem --, a greve de estudantes, as cadeiras nos corredores e as assembleias lotadas foram muito bonitas. Motivo de tristeza, mas de alegria. Rompeu-se a letargia instalada desde a última invasão da tropa de choque, seguida da implantação do atual estatuto, que fez a PUC mudar e as pessoas optarem pela desistência em vez da resistência. E a atual gestão da reitoria, eleita em 2008 e reeleita este ano, poderia ter se usado muito mais do apoio da comunidade para resistir e, talvez, a situação fosse outra.

Seja como for, a PUC virou um campo de batalha pela laicidade, pelo que ainda resta de bom no catolicismo e de resistência ao avanço conservador dentro da própria Igreja, que apesar da sua aura arrogante, se encontra na sinuca de bico da perda de fieis pelo mundo todo -- e com atitudes com essa, não parece que vai atrair muitos seguidores. É uma luta, ingênua e juvenil, mas honesta contra o medo da morte e a resignação, de quem quer ver mais política e menos teologia. 





   

domingo, 11 de novembro de 2012

Transições nos EUA e na China: o Império Global

A aliança entre Mao e Nixon: Pequim, 1972
Enquanto o mundo arde em crise, os americanos reelegeram, em seu peculiar sistema eleitoral, o democrata Barack Obama, e os chineses preparam a substituição de suas lideranças no partido hegemônico. A coincidência das datas e a importância dada pela mídia internacional aludem para o seguinte quadro: o mundo não é mais bipolar como na guerra fria, mas a multipolaridade se resolve cada vez mais entre Estados Unidos e China, menos pelo porte econômico e mais pela disposição estratégica de ambos que justifica essa pujança. E é uma polaridade menos de antagonismo e mais de uma relação peculiar de complementação, cujo aniversário de quatro décadas ocorreu em Fevereiro deste ano.

Obama venceu nos Estados Unidos por uma pequena vantagem (embora majorada pelas peculiaridades do sistema local). As causas da vitória democrata se devem menos pela força de Obama e mais pela incapacidade de seus adversário, Mitt Romney: não existe modo ou motivo para uma minoria votar no Partido Republicano atual, o mapa eleitoral americano de hoje, aliás, é o próprio mapa da divisão histórica do país entre estados liberais e aqueles onde a praga da escravidão e, depois, do segregacionismo persistiram por mais tempo (e foram derrotados unicamente por causas externas), portanto, sem negros, hispânicos, mulheres e homossexuais -- que são os setores mais potentes da sociedade americana -- não há como vencer. No entanto, isso não quer dizer automaticamente que Obama catalise o clamor que o elegeu: ele está muito longe de tomar medidas internas corajosas ou, no plano internacional, parece pouco capaz de renegociar a posição americana no sistema global por não poder assumir o declínio do país.

Na China, o sistema local -- no qual o Estado é um simulacro formal comandado pelo Partido Comunista, com sua estrutura complexa e aristocrática -- toma forma e ganha um rigor procedimental: o processo de sucessões passa a ser ordenado, previsível, enquanto os mandatos ganham prazo certo e o casuísmo cede lugar à racionalidade de comando e poder. O regime, por óbvio, não é democrático, mas ele também não pretende ser, portanto, uma vez aperfeiçoada sua arquitetura, ela toma a forma de um sistema vertical e hierarquizado bem regrado. Hu Jintao, o sóbrio burocrata que sucedeu Jiang Zeming há dez anos, não deve permanecer como comandante das forças armadas, ao contrário de todos os seus antecessores (que abandonavam a liderança política, mas não o controle militar do país), fato que marca a passagem definitiva da forma pessoal de exercício do poder para a forma sistemática. Em seu lugar, Xi Jinping, um nome de consenso do politburo, filho de um célebre herói revolucionário expurgado na Revolução Cultural. 

Depois de ter insistido em compor com os republicanos, que radicalizaram o jogo nos últimos quatros anos, deixando seu governo em xeque, Obama tenta novamente, pela via de negocial, resolver o problema das contas americanas. Depois do segundo fracasso presidencial consecutivo, a questão é saber o que será dos republicanos. Dos democratas, o ponto é saber até que ponto Obama continuará à deriva, sujeito aos ditâmes dos Clinton e os democratas dos anos 90 na defesa e na estratégia geopolítica, enquanto no plano econômico, continua cedendo aos privatistas (sem ter bons resultados, é claro). Os chineses, por outro lado, repetem jargões sobre casos de corrupção nos quais seus líderes estão envolvidos, mas esquecem o que há de essencial no problema todo: a desigualdade social crescente, um capitalismo controlado por burocratas que vivem entre o estatal e o privado.

Enquanto a Europa assiste a tais transições quase paralisada pela insuficiência dos mecanismos europeus em mitigar a crise, vivendo em uma zona de indeterminação na qual nem existe mais autonomia nacional, nem uma estrutura continental efetiva -- mas uma grande zona de transição anódina e disfuncional -- resta cada vez menos dúvidas que é entre os Estados que vacilam e a China que ascende -- nem sempre sobre bases sustentáveis -- que o jogo dos Estados se equilibra e se decide. Muito do que os Estados Unidos são hoje se devem à organização do socialismo chinês produzindo seus bens de consumo, enquanto muito do que a China se deve ao capitalismo americano. Ambos representam as formas últimas das artes de governo liberal e socialista e sua relação, para além da confrontação retórica, é de estreita colaboração para manter a ordem estatal global -- e não ainda o Estado global, mas talvez um dia -- contra a multidão globalizada: são as duas cabeças da mesma estrutura imperial bifronte, seu mecanismo de dívida infinita e seu modo de consumir e produzir. 

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

PCC vs PM: a Revolta nas Entranhas do Inferno

O estado de São Paulo arde nas chamas de uma guerra cruenta travada entre o Primeiro Comando da Capital (PCC) e a Polícia Militar local. Todas as manhãs, o noticiário relata o tétrico saldo noturno: uma quantidade absurda de mortes bárbaras, seja de policiais ou de cidadãos supostamente vinculados ao PCC. Notícias de toques de recolher, muitas vezes surtos de paranoia coletiva, percorrem o estado, as pessoas comuns temem sair na noite, alguns ônibus queimam aqui ou acolá, tudo isso depois de seis anos de uma relativa calmaria. Sim, seis anos. Desde o famosos ataques do PCC de 2006.

Há várias possibilidades de se enxergar a situação, e várias formas de reagir. A mais recorrente é, apenas e tão somente, um agravamento da fobia urbana difusa e confusa dos contemporâneo, na qual pouco importa o que aconteceu: mas as ruas e os espaços públicos que já eram vistos como zonas de permanente de violência e impureza, convertem-se em algo pior, o delírio põe em questão o direito à noite: o monstro ronda a noite, não devemos sair. A outra, uma crítica mais direcionada e conservadora às táticas de combate ao crime, umas mais alinhadas aos direitos humanos, enquanto outras partem para o delírio paranoico clássico, beirando o desejo de fascismo.

No entanto, pouco se fala, seja mídia ou na crítica, sobre como a atual rodada de confrontações se iniciou, muito menos vê-se algum esforço para discutir o histórico do que estamos falando. Primeiro de tudo, o PCC surge do massacre do Carandiru, que mal acabou de completar 20 anos -- como discutido aqui -- um ato de exceção do desastroso governo estadual de Fleury que resultou no massacre de 111 detentos em rebelião: eles estavam há tempos em condições sub-humanas, submetidos ao risco permanente de contaminação pela AIDS, pela tortura e toda sorte de coisas.

Das pilhas de chacinados naquela ocasião, surge uma organização que de lá para cá se organizou mais e mais, controlando presídios, criando uma rede entre presos, suas famílias, suas sub-redes no exterior da prisão. O PCC, é evidente, não se trata de uma organização revolucionária, tampouco é o contrário, enquadrável em qualquer métrica maniqueísta: ele é a prova que a ordem está em frangalhos, seja no que toca à sustentação do seu modelo teológico tomístico -- hierárquico, numa escala que vai do paraíso (as coberturas de prédios luxuosos dos bairros de elite) ao inferno (as prisões), passando por círculos intermediários.

Mas o PCC, enquanto organização que nasce da resistência ao descalabro --das prisões, apenas um dos muitos reflexos possíveis do nosso estado de coisas social -- e que se impõe sobre a incapacidade das forças políticas postas, não é um contraponto à ordem, mas sim nutre uma relação perversa e ambígua com ela: ele é a organização de um ódio difuso e sem programa, voltado para um governo paralelo, e moderníssimo na forma de um sistema de redes, e para uma economia paralela, que inclui todos os negócios gerados em torno do seu financiamento por detentos e suas famílias (a rede de advogados a seu serviço, a rede de tráfico de armas etc).

Aliás, pelo fato do PCC ter forma Estado é que o estopim específico da crise atual foi deflagrado: enquanto um de seus famosos tribunais julgava, ele foi surpreendido por um comando da Rota -- outra personagem notória, enquanto força da polícia bandeirante nascida para o combate à incipiente guerrilha urbana e destinada ao enfrentamento cruento da "violência" pós-regime -- que perpetrou mais um massacre. Daí em diante, tivemos uma concatenação de assassinatos e retaliações que até a noite de ontem não teve fim.

O PCC, o mesmo PCC que parou o estado de São Paulo em 2006 depois de uma série de revoltas no sistema penitenciário, está vivíssimo, ao contrário da retórica oficial dos governos tucanos de São Paulo. E qualquer um que conheça o sistema, sabe muito bem o quanto o PCC conservou sua influência durante os últimos seis anos, quando alguma espécie de acordo tácito, ou algo mais do que isso, manteve presídios calmos, patrocinou a considerável queda dos índices de violência no estado e assistiu às seguidas reeleições dos mesmos figurões políticos de sempre no estado.

Se o PCC é um sistema em rede semelhante a modelos como a Al Qaeda -- mas cuja sofisticação é justamente ser hierárquico e extremamente centralizado sem deixar de ser capaz de (i) funcionar na sociedade em rede; (ii) se integrar ao Estado de maneiras pouco usuais e até surpreendentes; a polícia, por outro lado, funciona como um destacamento oficialmente estatal, mas cuja atuação transcende a linha e nem sempre funciona de acordo com o programa governamental, mas sim de acordo com intuição, ela mesma, do que seria a providência na terra.

A polícia, não apenas em São Paulo, como se viu recentemente na Bahia, pode agir contra o Estado em certas circunstâncias, sobretudo quando ele está com a sociedade de modo a desafiar a ordem posta. Maquiavel já via isso quanto aos exércitos e a história dos golpes latino-americanos comprova essa direção; e as polícias podem agir nem sempre a favor, ou contra, mas também a despeito do comando governamental -- e quando agem a favor, como no caso do Pinheirinho, jamais estão apenas "cumprindo ordens", mas aceitando aquilo em relação ao qual poderiam se amotinar.

Será que foi o caso aqui? Aparentemente, sair da política do banho-maria dos últimos seis anos, não interessava ao governo do estado, ainda mais em um ano eleitoral. A menos que ele pudesse capitalizar muito com isso, o que não parece muito crível. Mas foi sua polícia que deflagrou o processo em questão e, numa luta particular serve de combustível para a atual guerra que ela trava com o PCC, embora isso possa ter desobramento sobre os civis. Não é só o PCC que ameaça São Paulo como diria Antonio Martins.

Há muito de conspiratório nisso, mas as coisas sempre podem ser mais simples. Um PCC quieto e colaborando para a manutenção da ordem das prisões (por dentro do sistema) interessa sim ao poder, uma polícia que combata apenas e tão somente os estilhaços de criminalidade que incomodem a boa sociedade, idem. Mas tanto PCC quanto a PM, no limite, agem por si com uma liberdade prática enormíssima (talvez a polícia mais ainda que o PCC...).

A crise aberta não é de segurança pública, ou a fratura exposta da crise social sem fim. Ela é uma crise do nosso e de qualquer modelo de organização coletiva. Não é por abstrações ideais que poderemos fazer uma coletividade humana viver bem, tampouco por um modelo fantasioso de organização que, na prática, alude a todos os mitologemas e superstições teológica possíveis, com uma economia movida à base de culpa, suas mansões e paraísos particulares e a vida comum feita um inferno, com a prisão como seu grau derradeiro.

Se os infernos entraram em colapso quando a máquina-(pseudo)divina do Estado atualiza o medo -- desfazendo-o, pois -- suas entranhas emergem na forma de uma erupção. Como manter uma hierarquia social teológica, ao modo de São Tomás de Aquino, se os infernos perderam sua eficácia e a danação é combustível de revolta, não mais anestesia? Há uma rachadura definitiva.







 

domingo, 4 de novembro de 2012

O Prefeito Haddad, as "Duas" São Paulos e o Comum

Há uma semana, Fernando Haddad foi eleito prefeito de São Paulo. O que é realmente curioso nesse processo -- além dele ter sido a disputa municipal que mais aludiu à grande disputa nacional, PT x PSDB -- foi a exposição de um abismo (eleitoral, político, social, econômico, cultural...) na maior metrópole do país: de um lado, a periferia pobre, com muitos habitantes, poucos empregos e poucas políticas públicas, do outro, a São Paulo do centro expandido, seus centros empresariais,  culturais e bairros de primeiro mundo. 

Os fluxos da cidade movem-se sob uma lei clara: a multidão confinada nas periferias é obrigada a se deslocar -- para chegar aos seus empregos, aos hospitais, universidades e opções de entretenimento e cultura -- em um transporte público superlotado, por vias superlotadas. A poluição crônica e o congestionamento das vias -- nasais e públicas -- é a resultante óbvia desse processoSão Paulo poderia funcionar, a exemplo de outras metrópoles ao redor do globo, na sua disfuncionalidade, mas o fato é que sua elite dirigente, embora se orgulhe de ter conseguido confinar os pobres para longe, não logrou muito êxito nisso.

Sim, a noção de crise social é sempre relativa. Ela diz respeito para quem e como: na periferia, a crise é permanente -- está no interior de seu ser, não no predicado --, enquanto nos bairros de elite, ela pode ser uma ocasião determinada. Mas a crise da periferia, que é periferia do centro -- isto é, sua existência é relativa, de modo mútuo e simultaneamente implicante, a do centro. Não há duas São Paulos. Há --como efeito e não por natureza -- uma mesma São Paulo: e a Lei do Mesmo, aplicada sobre diferentes (étnicos, sociais, políticos etc) produz uma grande fenda na forma de desigualdade, exposta na divisão, de caráter segregacionista, da metrópole paulistana em duas metades.

Todos sabem que as coisas vão mal por aqui. Mas é um ir mal que, como já dissemos, varia do ponto de vista, e do modo, que se olhe. Kassab não foi um mau prefeito do mesmo modo para um habitante médio de um bairro de elite e para um morador da extrema periferia. Tanto que mesmo entre quem avaliava mal sua gestão nos bairros ricos, votou, via de regra, em Serra (seu antecessor e sucessor natural). O fato de Kassab ter sido considerado um mal prefeito em toda parte, no entanto, alude para a possibilidade de que há um mal comum -- e, portanto, abre a brecha para a produção de um bem comum. 

Mesmo dentro da estrutura conflitual da sociedade capitalista -- e como esse fenômeno se manifesta disposto no corpo de uma metrópole como São Paulo -- na qual o mal é diferente e varia conforme o sujeito e o modo, é possível que as contradições se expressem de modo que a vida seja comumente ruim ou, em sentido inverso, que possa ser comumente boa: e bem e mal, aqui, como situação que permite o aumento ou diminuição da potências das pessoas no contexto da vida urbana.

Isso está longe de ser uma formulação de que é possível um governo municipal, ou a atuação política urbana, poder ser universalmente boa, mas sim de que há um bem, um aumento de potência, que possa ser comum e estar no comum das vidas. Um argumento [retórico] possível para a vitória petista é que quem "precisa de governo" -- ou de bem estar -- votou em Haddad, enquanto a parte que não dependeria disso pôde optar por uma saída moral que se desdobraria em uma bifurcação: (i) já que eu não preciso e o outro precisa, eu voto conforme o interesse dos "necessitados"; (ii) eu voto conforme meu interesse enquanto abastado. 

Se fosse assim, tudo estaria perdido. Seria como se, uma vez terminadas as necessidades, ninguém votaria em uma proposta social, o que é falso.  A verdade é que todos podem optar, como optam, para além das suas necessidades. E podem optar por fora da moral, por fora até do seu próprio interesse, mas não para além do seu próprio desejo -- e foi assim que optaram; tampouco existe a possibilidade de que as metades nas quais São Paulo está dividida sejam causais: elas são efeitos, que se interrelacionam, e compartilham do mesmo evento causante que é o próprio sistema de produção, e sua disposição pela metrópole. Se dizemos que algo produz riqueza é porque está, ao mesmo tempo, produzindo pobreza, uma vez que riqueza e pobreza são condições relativas e mutuamente implicantes (se há rico, é preciso haver um pobre e vice-versa). 

Nas diferenças de posições da cadeia produtiva, e da organização social, haverá sempre lados e a relatividade aparente da crise -- os altos aluguéis são a crise dos sem casa para morar e o tempo de vacas gordas dos proprietários de imóveis -- mas esses lados só existem porque, antes de mais nada (num sentido ontológico e não cronológico) há um comum metropolitano e urbano: O rico pede pobres para poder ser o que é, enquanto o pobre pode ser o que já é sem os ricos

Embora a situação de exploração possa durar indefinidamente, o fato é que ela dura mal, para ambas as partes: se os pobres votam em quem apresenta um programa mais favorável, é pela afirmação de sua potência e de sua condição -- o que consiste numa opção --, mas quando os ricos fazem algo semelhante, vê-se que a simetria é falsa, uma vez que não há voto mais servil do que aquele que serve para atestar o próprio vazio de sua condição. 

Os ricos vivem aparentemente bem, do contrário não o seriam, mas vivem bem às custas do vício na exploração do outra, na paranoia constante que isso implica (é preciso manter o controle! manter o controle!), o que em outra palavras é viver mal, é viver em um estado de constante vazio -- entre doses de rivotril, cercas eletrificadas e a impossibilidade deles, mais do que ninguém, em disporem da própria cidade (por motivos objetivos e subjetivos). 

A questão não está em investir na "base da pirâmide social" em vez da "ponta" para universalizar o bem-estar. Está em investir no desejo que perpassa todo o sistema de modo comum. É da compreensão disso que a ocupação da função de governo, enquanto antigoverno (e não desgoverno, como Kassab), pode produzir alguma diferença: o desgoverno demonstra por vias tortas que há uma potência comum compartilhada, para o bem e para mal, na urbe, enquanto o antigoverno a catalisa. 

É nesse cenário que Haddad assume. E assume porque, antes de mais nada, o Lulismo que ele ajudou a construir, ao deixar de lado a retórica própria da esquerda e assumir práticas radicais, permitiu. Não é mais como a São Paulo de 2000, onde Marta apesar da votação apenas um pouco maior do que a dele, venceu em toda parte: agora, claramente, a cidade tem lados, uma vez que a luta de classes saiu do plano figurativo. Os pobres, agora, desejam, foram autorizados a desejar e tudo mais é uma consequência disso.

Haddad venceu pela fortuna -- pelos fatores e variáveis não capturáveis pela esfera de cognição de um movimento político --  além da virtù. Ele terá de articular as tensões de força dentro  do PT paulistano e suas inúmeras correntes, sabendo que os movimentos e redes de apoiadores externos, além de essenciais para sua vitória, são a única fonte suficiente para evitar que o partido, e o seu governo, devore a si mesmo. Vai precisar desses mesmos setores, inclusive, para não ser devorado por uma Câmara fisiológica onde não tem maioria e Kassab conserva sua influência.

São Paulo, pela primeira vez em dez anos, respira. Desobrigada de ser trincheira dos projetos pessoais de quem fracassou nos anos 90 e insistiu em reagir ao projeto que mudou esse país ao longo da última década, a altos custos humanos, agora a metrópole paulistana pode ser tornar quem ela é.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

A Eleição em que Lula fez o Gol que Pelé Perdeu

Há um ano atrás, o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva estava diagnosticado com um câncer cuja recuperação, ainda que possível, despertava dúvidas e sérias preocupações. Hoje, ele conseguiu não apenas se recuperar como fez seu partido sair-se vitorioso nas recentes eleições municipais, mesmo sob forte bombardeio midiático: o PT está na mira por conta do julgamento do Mensalão, cujo transcurso se deu, dificilmente por coincidência, durante o curso da última campanha eleitoral com uma inclemente cobertura da mídia (sobretudo televisiva). 

Ironias do destino ou não, mas os dirigentes petistas implicados no processo, alguns deles até inocentados, teriam incidido em um esquema que dirigentes do PSDB teriam iniciado, sendo a inversão cronológica dos julgamentos, curiosa -- tanto quanto o seu agora desaparecimento das telas da TV, uma vez seladas as urnas. A mudança radical na jurisprudência vista no processo, o espetaculosismo e o uso e abuso da famigerada teoria do domínio do fato, cuja origem remonta ao fascismo, e na prática permite a condenação de réus sem provas -- pela suposta influência que eles teriam em não produzir provas --, além de inversões claras do função da prova no processo penal (e embora eu discorde de certos pontos do artigo linkado, do ponto de vista jurídico estrito, sua denúncia é importante).

Mesmo assim, após os escrutínios, será o PT o partido a governar a maior população, a administrar a maior verba e que teve mais votos no primeiro turno: ele ainda seguiu sua tendência histórica de ampliar o número de prefeituras e estará na liderança, direta e indiretamente, das duas principais metrópoles do Brasil. A região metropolitana de São Paulo estará nas mãos do PT. Sem Lula, no atual momento, possivelmente a situação do PT seria outra, mas o fato dele manter o petismo vivo, dá as bases para que o próprio partido se confronte internamente pelos espólios do pós-mensalão, como está claro que está a ocorrer -- vide este artigo de Tarso Genro e a demora para a entrega do manifesto petista sobre o julgamento do mensalão.

A maior ameaça ao PT veio da sua própria base. O PSB foi a legenda que mais cresceu no país e, embora, seja aliado histórico do PT, terminou por estar mais do lado oposto do front do que    ao lado dele -- ironias do destino, São Paulo foi uma das raras cidades nas quais o PSB esteve com o governo federal e o PSD esteve contra.

O quadro atual é paradoxal: enquanto o PT avança eleitoralmente, em um cenário altamente pulverizado, por outro lado, a atuação do STF deixou um belo estrago no seu núcleo dirigente -- o que, em termos de política, é muito mais ensejo de disputa para uma nova composição interna, dada a nova correlação de forças, do que para maiores lamentos. Há uma tensão de forças intrapetismo e sobre o petismo ao passo que o PSDB, apesar de algumas vitórias, definha nos centros estratégicos -- e só não se deu mal onde esteve coligado com o PSB, sob a chefia do primeiro.

Ainda estamos sob o regime do estado de coisas decorrente do evento Lula: por inércia, mas ao passo que ele atinge seu extremo, pela moderação do discurso e radicalização da prática, uma nova janela se abre para o imponderável, em relação à qual nos resta a intuição frente ao movimento da roda da fortuna. Sim, aqui Lula fez o impossível, em toda sua complexidade: chutou uma bola do meio-campo e fez o gol. Mas o jogo segue.