terça-feira, 9 de dezembro de 2014

O Ódio à Democracia: Rancière e um Raio X do Nosso Tempo

Resenha minha publicada no portal Outras Palavras e em seu blog na edição virtual da revista Carta Capital sobre um livro imprescindível:

Rancière, Jacques. O Ódio à Democracia. São Paulo: Boitempo, 2014, 128 páginas




Recém-lançado no Brasil, O Ódio à Democracia, do filósofo francês Jacques Rancière, é um ensaio potente, pronto a ser lido de um fôlego só. Embora tenha sido publicado na França há quase dez anos, o livro nos é incrivelmente atual. Mais ainda: ele parece ter um tom quase profético quando olhamos para o Brasil de hoje.

Afinal de contas, estamos atolados em um pântano feito de manifestações fascistas que alentam a ideia de um novo golpe militar, de relatos incessantes de agressões físicas e intimidações nas redes sociais sobre quem não se alinha com essas pulsões (sobretudo eleitoralmente), de casos crescentes de crimes de ódio contra homossexuais, índios e outras minorias, da ideia cada vez mais consensual de que a política é ruim, temos mais é de nos contentar com o gerencialismo e assim por diante.

Rancière problematiza o que seria essa democracia sobre a qual tanto falamos, não raro perdida em meio a tantas confusões. Mas ele também fala sobre seus adversários: e eles não são apenas as manifestações de intolerância pontuais ou os projetos neo-autoritários, mas de um ponto quase sempre ignorado pelo pensamento político, que é o que há de autoritário no nosso próprio sistema político “normal”. O fascismo cotidiano e mascarado de cada dia. Na França, a máscara do poder na normalidade atende pelo nome de republicanismo.

E a obra acerta em cheio ao notar que a novidade da democracia, tal como ela nasceu em Atenas, não residia na instituição do voto ou do sufrágio, mas no fato dela ter tornado comum entre os cidadãos a participação política por meio de dois vetores essenciais: (1) a  distribuição dos eventuais cargos fixos por meio de sorteio; (2) a vinculação dos cidadãos pelos demos, divisões geográficas de Atenas, e não por vinculações hierárquicas.

O significado profundo do sorteio, que nos parece absurdamente chocante, é que se o eventual representante poderia ser escolhido assim, aleatoriamente, a democracia seria, pois, o governo do qualquer um. Se todas as outras formas efetivas de governo se fundavam em uma hierarquia determinada — de idade, de saber, de renda etc –, o advento democrático propunha que para “governar” não seria preciso ser o mais velho, o mais rico ou o (dito) mais sábio, mas sim fazer parte do corpo cidadão, na imanência de sua multiplicidade — isto é, em meio às suas diferenças, estranhamentos e até contradições.

A vinculação aos demos — e democracia, não custa lembrar, não signica “poder do povo”, mas sim o poder ou governo dos demos –, por outro lado, vinculou à territorialidade (de cada um na pólis) o índice organizacional da política, consistindo em uma suprema astúcia: a distribuição territorial, em si, não consistia em um índice hierarquizador: ao contrário, ele era perfeitamente horizontal naquele contexto.

Em contraponto à democracia, estaria, pois, a república. E segundo o autor, o republicanismo é, desde Platão, o inverso da democracia, o regime pelo qual a política volta a estar hierarquizada em um regime de competências. Isso perduraria até hoje na França. 

Ainda que tenha se oposto à monarquia e ao tradicionalismo da nobreza e da religião na França, ele foi uma forma de reintrodução do poder, só que de forma impessoal, anônima e sistemática.

É evidente que Rancière faria melhor caso se referisse a “positivismo” no lugar de republicanismo, ou reconhecesse que esse republicanismo “diferente do de Jules Ferry” — e sua ousadia emancipadora na pedagogia — é menos cria de Platão e mais de Auguste Comte — e que “República” em Platão é mais fruto de uma indecorosa tradução latina da famosa Politheia, a qual deu um caráter indevidamente conservador ao que foi tão potente e emancipador entre os romanos e mesmo para Maquiavel (embora Rancière comente ligeiramente isso).

De todo modo, a escolha do republicanismo como antagonista de democracia não se perde de um todo, pois (1) em seu uso nos círculos conservadores franceses é esse o texto da máscara do poder e do poder mascarado; (2) o positivismo, evidentemente, está situado no campo da filosofia tradicional e, entre ele e o platonismo, existe uma coincidência na ideia de que os comuns não devem governar, mas sim os aptos para mandar segundo um critério transcendental — e obviamente criado pelo próprio poder em sua auto-ordenação.

Enfatizar o caráter [estruturalmente] positivista do republicanismo francês, aliás, não é mero preciosismo: na verdade, isso ajuda a entender na proximidade entre o que o livro diz e a nossa realidade verde-amarela; a república brasileira nasce, por inspiração positivista, sem povo, calcada na ideia de um sistema impessoal, laico e destinado a ter uma igualdade abstrata como régua mestra.

Que problema teria tal ideia que nos  “ilumina” desde 1889? No nosso caso — no mesmo sentido do francês, só que de um jeito mais agressivo — essa igualdade de fundo sempre serviu para mascarar e manter as desigualdades de fato, pois ao exigir a plena igualdade jurídica [numa sociedade marcada pela concorrência e não pela colaboração] entre desiguais de fato, isso só poderia terminar na própria manutenção da desigualdade histórica, isto é, a diferença para pior.

No Brasil, pois, políticas sociais como as cotas causam escândalo público, pois invertem a matriz republicana-positivista na medida em que diferenciam a forma dos ingressos para gerar igualdade material. A igualdade quando deixa de ser ponto de partida para se tornar ponto de chegada implode o “republicanismo” e, por conseguinte, afirma a democracia. Isso é inadmissível por um costume conservador bem nosso.

Por tal razão, é comum em nosso meio que essas tentativas de democratização sejam desqualificadas, pois sempre expressam as intervenções políticas do qualquer um, ou em prol do qualquer um, no campo comum: por esse viés, não caberia a um metalúrgico querer ser presidente da república, um gari desejar feliz ano novo em rede nacional de televisão ou um casal homossexual se casar. É o juízo binário do é [a priori] igual\não-igual.

Isso pesa sobretudo em matéria de política, na qual trabalhadores, índios e pobres deveriam se deixar comandar pelos varões da república: eles não  seriam competentes formalmente. É claro, as condições históricas brasileiras, seu passado colonial e escravagista, tornam esse republicanismo pior, mas em termos conceituais não estamos falando de uma substância diferente da realidade na qual está o autor.

Dessa forma, para Rancière, tanto no Brasil quanto na França — bem como nisso que chamamos de “mundo livre” –, não temos um regime democrático. Porque a democracia estaria sempre além do Estado. Há um regime misto entre oligarquia e democracia, o qual é, contudo, fruto das próprias lutas que impedem o monopólio do mando pelo oligarcas — o que não é de um todo ruim: o que é mau, na verdade, seria se conformar com isso. Ainda assim, estamos diante do avanço do economicismo de mercado que, baseado no ilimitado poder da riqueza, o que abala hoje até mesmo essa construção precária da oligarquia matizada.

Assim, Rancière não faz concessão alguma para uma filosofia neo-niilista: no fim das contas, com razão, não é preciso discutir qualquer vazio que possa haver na dicotomia entre cidadania e os direitos humanos, pois um serve onde o outro não alcança; é o interesse prático, na luta, que determina a importância de qualquer um dos dois. Valorizemos a cidadania para os humanos excluídos dela e a humanidade dos cidadãos desumanizados!

E ainda que Rancière retome a democracia antiga quase como um ideal, ele não erra em última análise: mesmo que a democracia antiga seja menos avançada do que ele advoga, ao concebê-la como movimento, como tendência de ir além na busca de uma coexistência para melhor, encontramos, quem sabe, uma chave para entender melhor as sucessivas ressignificações do termo ao longo do tempo, incorporando mulheres, humanos, meio-ambiente etc etc.

Tudo isso faz de O Ódio à Democracia um pequeno grande livro. Enfim, um manifesto de amor incondicional à democracia, pois o autor a coloca como o que de melhor os humanos já produziram em matéria de política. E talvez Rancière esteja mesmo certo a respeito disso.


terça-feira, 11 de novembro de 2014

Os 43 do México: A Memória das Lutas da Terra de Zapata

Um crime abalou o mundo. Em Setembro último, 43 estudantes mexicanos despareceram no seu país depois de terem sido detidos pela polícia. O ocorrido se deu em Iguala, município localizado a apenas 190 km ao sul da capital mexicana. Os relatos são trágicos: eles teriam sido entregues pela polícia aos traficantes que comandam a região, os quais teriam dado cabo de todos eles e, depois, desaparecido com os corpos -- que até o presente momento não foram encontrados. 

As causas são mais bizarras ainda: o foragido prefeito de Iguala, José Luis Abarca Velázquez,  teria dado a ordem à polícia municipal e optado pela solução final. Ele fez isso depois de ficar furioso com um protesto dos estudantes contra sua esposa, ligada a um dos cartéis de tráfico que comandam a região e possível candidata à sua sucessão. 

Os estudantes vinham da Escola Normal de Ayotzinapa, na qual estudavam, e passavam por Iguala, pois se dirigiam para a Cidade do México, onde participariam das marchas de 2 de Outubro, dia central das jornadas de luta daquele país, quando se rememora o massacre da Praça de Tlatelolco, ocorrido em 1968. 

Tlatelolco, aliás, se trata de um dos episódios mais trágicos da história daquele país: o massacre se deu quando o governo mexicano autorizou que atiradores de elite fuzilassem, sem dó nem piedade, os estudantes universitários que lotavam a praça, protestando contra as péssimas condições sociais do país às vésperas das Olimpíadas da Cidade do México (ironicamente chamada de "Olimpíadas da Paz").

Eis que a História se repetiu como tragédia sobre tragédia. 

As escolas normais mexicanas, como aquela da qual vieram os estudantes, são um dos derradeiros marcos ainda existentes do projeto libertador da Revolução mexicana. O "normalista" é, acima de tudo, um forte e um inconformado; ele vem das classes mais baixas e se dedica a uma formação que busca transforma-lo em professor -- ou líder comunitário -- para as regiões mais carentes. Por isso, ele tem uma importante histórico de questionamento contra o falido sistema político mexicano. 

Os normalistas desaparecidos em Iguala, na verdade, honraram sua tradição -- a tradição dos oprimidos --, expondo um país dominado por cartéis de tráfico poderosíssimos, o quais estão altamente conectados com o poder político. O sacrifício deles não foi, como nunca é, em vão.

Há, portanto, uma intensa dimensão histórica no processo em questão, um contexto bastante determinado e preciso, que coloca o episódio para além de um caso pontual de "traficantes matando estudantes no terceiro mundo" ou de "corrupção policial"; tampouco falamos de um crime de Estado pontual, mas de um grande crime continuado que se dá desde a destruição, lenta e silenciosa, da Revolução Mexicana. 

Hoje, o México que aí está, se trata do perfeito exemplo do que as elites latino-americanas (inclusive a nossa!) defendem para o nosso continente: uma política externa totalmente rebaixada aos Estados Unidos, uma economia precarizada e condicionada ao Mercado e, sobretudo, um Estado grande na hora de praticar a repressão social e política. 

A tal guerra às drogas, a política de proibição e esmagamento militar do tráfico, pelo jeito serve apenas para ampliar o problema, enganando a população enquanto, na verdade, se produz drogas como nunca -- a preços altos garantidos pela proibição legal. 
Praça do Zócalo, centro nevrálgico do México, ocupado em protesto

Enquanto o populista presidente mexicano Enrique Peña Nieto, do Partido Revolucionário Institucionalista (há muito um fantasma do que foi a Revolução), segue sob pressão internacional para investigar o massacre, ele se depara com uma mobilização interna gigantesca para a qual certamente não está preparado.

Para se ter uma ideia, embora tenha sido expulso de seu partido, o  prefeito de Iguala veio do centro-esquerdista PRD, a menos pior das grandes agremiações partidárias mexicanas. O sistema mexicano, não resta dúvida, está falido como há tempos os zapatistas nos dão mostras. 

O porvir do México repousa na conexão entre o magnífico investimento desejante das ruas, em revolta com o arbítrio do poder soberano, com a bela Revolução que um dia o México presenteou o mundo, mas que restou diluída, implodida e mitigada pela máquina oligárquica do país. A luta no México é brasileira não num sentido humanitário, ou pelo simplismo que diz que o "México é aqui" -- ou que o Brasil pode virar um México --, mas porque aquele contexto singular de lutas nos atravessa em sua atualidade: derrotar o fascismo que está como face secreta, mas bem concreta, das "democracias-liberais", criar novos mundos, libertar, libertar, libertar...





domingo, 2 de novembro de 2014

A Marcha pela Intervenção Militar e a (nossa) Responsabilidade Histórica

Ontem, algo em torno de duas mil e quinhentas almas foram à Avenida Paulista pedir o impeachment de Dilma Rousseff e/ou uma intervenção militarO evento em questão, por seu turno, foi fruto de uma convocatória por Facebook que chegou em torno de 100 mil confirmados; ainda que a adesão presencial não tenha sido nem de 5% do total, a gravidade das pautas  fala por si.

Fato a se lamentar, sobretudo se pesarmos todo o legado de violência de Estado, crise social e econômica que os militares, em 21 anos de ditadura, deixaram para o nosso país. Pior ainda, é a sensação de que na hora em que a parte derrota resolve pedir a bola e encerrar o jogo, algo vai mal.

A crise em questão, pois, é de legitimidade. O que está esgarçado não é esta ou aquela força política propriamente, mas a própria substância do sistema. O perigo disso é que a crise apresenta um forte conteúdo suicidário: a erosão se faz em direção ao Nada, diante do vazio que se daria dessa explosão sagrada, basicamente teria contornos fascistas.

O mito da salvação tem um pé no teatro clássico e o outro no messianismo. Entre os helênicos e os romanos, um deus brota do nada na cena e resolve uma impasse -- o theos ek mekhanes helênico ou o dei ex machina romano --, enquanto para a tradição messiânica, um enviado do divino nos salvaria do nosso próprio destino -- com um dualismo importante sobre o custo de sua morte.

A ideia, tanto de golpe quanto de revolução, bebe nesse fantástico sincretismo. A ruptura pode apontar para um vida nova ou para o abismo. O caso brasileiro, no qual as tensões sociais se acumulam e não encontram uma resolução razoável nas instituições, é, pois, grave. E é grave justamente porque a solução, ou minoração de parte dos problemas, encontra uma forte reação social.

O último processo eleitoral, marcado por uma forte disputa resolvida por uma vantagem mínima a favor de Dilma, coroou essa conjuntura de trevas. A insistência de líderes tucanos de manter a ofensiva e se negar ao diálogo, mesmo passada a votação, colaborou para o quadro visto ontem. E isso veio da boca de um FHC, ecoado por um Alberto Goldman -- que ontem, entretanto, teve de recuar diante dos fatos de ontem.

Hoje, a rivalidade entre petistas e tucanos, que poderia ser altamente qualificada, infelizmente, faz mal para ambos e para o país. Mas se é possível fazer uma crítica do discurso e da prática petista por vários aspectos, é certo, no entanto, que quem tem flertado com setores extremistas é, infelizmente, o PSDB. 

E isso cobra a conta de um partido como o PSDB que, bem ou mal, se forjou na luta contra a ditadura e por uma redemocratização mais qualificada. Se arriscar a abrir uma caixa de pandora dessas, por resultados eleitorais momentâneos, é o mesmo que lançar a democracia brasileira em uma espiral incontrolável.

Se o aspecto representativo da democracia brasileira está em xeque, por outro lado, a ação do Congresso em barrar o desenvolvimento dos mecanismos de democracia participativa é igualmente sintomático.

As instituições de 1988 estão em crise, ironicamente no cinquentenário do golpe militar -- naquela ocasião, a adesão de uma direita liberal ao golpismo foi decisivo: e aquilo tudo, afinal de contas, levou a uma espiral de eventos que engoliu muitos dos conspiradores de primeira hora, resultando em um fascismo louco que tomou a vez do que deveria ser uma democracia "limpinha", a qual estaria assentada num bipartidarismo "purgado" de elementos populares e de esquerda (ou da "corrupção"). 

O que se viu no Brasil dos anos 60 e 70 foram as entranhas das forças armadas e do Brasil profundo emergirem para a cena pública. Se alguns liberais o fizeram de forma desavisada, agora as consequências são conhecidas. E nem é, ou não deveria ser, preciso refrescar a memória de um FHC, de um Goldman, de um Serra, de um José Aníbal ou de um Aloysio Nunes etc. O mais irônico é que o PSDB não precisa de nada disso para voltar a vencer, talvez precise de muito menos, mas certamente não é elevando o tom das notas erradas que encontrará o caminho das pedras.

E as esquerdas, que novamente se vêem diante dos impasses e os dramas de um governo trabalhista, precisam proteger o terreno comum que as unem, do contrário, se unirão, como sempre, no cárcere. Dilma, por seu lado, terá de reconhecer a gravidade da situação e, assim, em vez de montar um corpo ministerial apenas "conciliador" -- como lhe parece tentador --, precisa compor um quadro mais pró-ativo -- no qual terá o papel de maestrina, não de solista. A presidenta terá também de lembrar, para seu próprio bem, com quais setores pode efetivamente contar nos piores dessa eleição.

A cacofonia, essa imensa barulheira da política brasileira de hoje, serve apenas aos perversos e aos oportunistas. Um canoa furada que, ainda por cima, soa mal. Fujamos disso.




sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Terceiro Turno: o Mito do Brasil "Dividido" e o Congresso como Crise

A vitória de Dilma Rousseff nas eleições presidenciais, embora apertada, foi rapidamente reconhecida por Aécio Neves. Mas isso não marcou o fim da polarização vista no pleito. Talvez porque isso seja menos uma polarização entre PT e PSDB, ou entre Dilma e Aécio, e mais, muito mais, entre blocos sociais e econômicos antagônicos que neles se representam, ainda que alguns tucanos de relevante hierarquia tenham mantido a ofensiva. Nesse momento, a tensão secessionista e a crise do Congresso tomam a agenda nacional nublam a semana posterior à reeleição.

BRASIL DIVIDIDO?

A primeira onda, situada nas redes sociais, foi uma massiva, violenta e absolutamente irracional campanha anti-nordeste. De repente, os nordestinos, que votaram em massa, se tornaram os "culpados" pela derrota. Seriam eles escravos do "voto de cabresto" por conta do "Bolsa Família". 

Para além de toda carga preconceituosa, não havia qualquer relação lógica entre a derrota de Aécio e o Nordeste. Primeiro, Aécio perdeu justo em Minas Gerais, o grande destaque de seu currículo, onde governou por oito anos consecutivos, por onde é senador e ainda fez sucessor entre 2010 e 2014. 

Depois que a alegação de que o eleitorado nordestino voto por cabresto, é ridícula. O Bolsa Família emancipa o cidadão na medida em que lhe tira da fome. Cabresto havia, é claro, quando existia fome massiva no Nordeste e a ausência de políticas públicas permitiam que o voto fosse comprado com comida. O Bolsa Família é uma política pública que impõe obrigações -- como matrícula dos filhos na escola e sua vacinação dentre outros itens --, não assistencialismo. 

O próprio Aécio prometeu manter o Bolsa Família, o que torna um contrassenso as declarações de sua base social. Se ia ser mantido mesmo, e assim foi declarado, o eleitorado nordestino teria votado em Dilma por quê? E se as pessoas não gostavam do Bolsa Família no Sudeste e no Sul -- onde ele também é aplicado como política de Assistência Social nos termos da Constituição da República -- por que votaram num candidato como Aécio que prometeu mantê-lo?

Mas as falácias não param por aí. Colocar a questão nordestina nos termos da fome/dependência, sem reconhecer os enormes avanços conseguidos nos últimos anos não é pouca coisa. E isso, seguramente, se deve mais a desobstrução do potencial da região no governo Lula: até ali, o Nordeste esteve sob o jugo da elite mais retrógrada possível em virtude dos arranjos nacionais, inclusive no governo FHC.

De 1822 até hoje, nenhuma outra região se prejudicou tanto pela unidade territorial brasileira quanto o nordeste. A monarquia brasileira se fez a partir, inclusive, da supressão das elites republicano-liberais da região. A República Velha alçou os coronéis às alturas. Vargas avançou apenas um pouco, embora tenha permitido que as forças modernistas avançassem nos anos 50. 

A ditadura militar, capítulo à parte nessa história, foi uma re-união entre os capitães da indústria paulista e os coronéis nordestinos: política de exportação interna de gente para servir de mão-de-obra barata no sudeste e, assim, reduzir a pressão demográfica que levaria a uma reforma agrária no nordeste.

Evidentemente, se esses arranjos obstruíram o caminho natural do Nordeste, por outro lado, eles promoveram um desenvolvimento hipotético do Sudeste: criaram bolhas de riqueza nas capitais e verdadeiros cinturões de miséria em torno delas (inclusive em Brasília). A questão nordestina, não resolvida às portas do século 21, na verdade, é a própria questão brasileira.

O resgate disso eliminou diretamente o coronelismo na Bahia e, indiretamente, no Maranhão como se viu nessa eleição. Isso abriu espaço para governos sociais ou modernistas-liberais -- como o de Eduardo Campos -- que mudaram a cara da região. Dentre as consequências disso, se encontra o fim da pressão migratória nordeste-sudeste, o que atenua a crise urbana de São Paulo e do Rio de Janeiro.

SECESSIONISMO E PERVERSÃO (DIRIGIDA) DA MASSA

O Brasil, é verdade, sempre esteve dividido. Mas essa divisão, em termos de secessão, da qual eu estou falando, é absolutamente artificial e perigosa. No Brasil, as eleições se decidem por todos os brasileiros em igualdade, não por estados pelo seu peso relativo. 

Dilma ganhou por pouco entre os brasileiros, não porque isso seja um Nordeste versus São Paulo. E isso, infelizmente, está sendo alimentado por membros inconformados do PSDB como um Coronel Telhada, que está sendo investigado pela Assembleia Legislativa paulista por secessionismo por essa razão, mas também por um Goldman, o que insufla setores extremistas da nossa sociedade. 

E quando falo em setores extremistas, faço referência às ameaças de impeachment que vemos nas redes sociais -- sejam acompanhados pela ideia de secessionismo ou por teorias da conspiração --, o que nos faz sair do enquadramento da democracia. O PSDB ao surfar nessa onda, ou ter membros de relevo ratificando isso, sai do prumo de um conservadorismo acidental no qual ele, um partido social-democrata, se envolveu para se tornar uma força de desestabilização. 

Atitudes louváveis como o dos diretórios paulistano e paulista do partido contra as declarações de Telhada precisam se tornar regra. Como bem sabe o próprio governador paulista, Geraldo Alckmin, São Paulo mais do que nunca precisa do Brasil diante da grave crise da água causada, infelizmente, menos pela natureza e pelo acaso do que por sua política privatista para a água.

CONGRESSO COMO CRISE

Na outra ponta dessa conjuntura infernal, temos a crise no Congresso. Dilma Rousseff foi acusada com razão de conduzir um governo com baixo diálogo. O decreto que regulamentava os conselhos populares -- instituídos pela Constituição de 1988 que prevê uma democracia representativa E participativa -- era uma resposta correta para essa justa reivindicação.

O fato é que a Câmara Federal, em uma rebelião pós-eleitoral, tratou de derruba-lo. Em resposta, o PSOL tratou de reapresentar o tema na forma de um projeto de lei apresentado em caráter de urgência. Isso tudo na atual composição parlamentar, mais amena do que a eleita em Outubro e que tomará posse a partir do ano que vem.

Isso não é um problema pontual. Envolve questões cruciais para o ano que vem. Dentre elas, a reforma política, que ou sai por uma nova constituinte ou por uma emenda que depende do próprio Congresso que é, por sinal, expressão do sistema político falido.

Dilma terá de recriar, ou criar pela primeira vez no seu governo, uma articulação política real capaz de negociar com o Congresso, mas também precisará, fora de qualquer âmbito formal, se agenciar com a sociedade. Se não conseguir, ela vai enfrentar as próprias forças que a elegeram, talvez até num turbilhão distópico.

De Collor até aqui, as piores crises nasceram a partir do Congresso Nacional. Justamente porque o sistema político está longe demais da multidão, restrito aos salões institucionais de Estado. A tentativa de sair da pretensa -- e inconstitucional -- monopolização da política pelos parlamentares também não é fácil. E é esse embate que está jogo neste momento.

...

Seja como for, o clima de terceiro turno em nada colabora. O Brasil enfrentará problemas sérios nos próximos anos, imerso que está na crise econômica e ambiental de todo o globo. A escolha paradoxal das pessoas comuns em manter a atual presidenta no poder para, em aparente contradição, comandar uma mudança não é pouca coisa. É o reconhecimento de um lastro histórico de melhorias do país, embora acompanhado pela exigência incontornável de avanços. Por outro lado, a tendência de massa de cunho classista, racista e xenófobo -- o qual não representa o voto em Aécio como um todo, mas está bem presente nele -- é um problema grave, que pode se agravar com a piora de outro problemas, o que torna sua neutralização dentro das regras democráticas uma tarefa igualmente central. Tudo é muito óbvio e evidente.




terça-feira, 28 de outubro de 2014

Dilma Outra Vez

Festa de Dilma na Paulista
Dilma Rousseff venceu o pleito mais apertado da breve história democrática do Brasil. Foi, seguramente, a campanha mais polarizada, agressiva e tensa que já vimos. Segundo as pesquisas, depois de ultrapassar Aécio Neves e abrir uma pequena vantagem nos últimos dias, Dilma se viu atingida por uma bomba equivalente às manipulações que favoreceram Collor em 1989: a capa da revista Veja dizendo, sem provas, que ela e Lula "sabiam de tudo" a respeito do escândalo da Petrobrás -- o que veio acompanhado de uma panfletagem massiva da capa pelo país no dia da votação e, também, do tragicômico boato que o doleiro que supostamente os incriminou teria sido "envenenado".

Entre a quinta-feira e a votação de domingo, pois, tudo mudou. E o que poderia ser uma vitória por uma margem moderada, se tornou uma possível derrota. O direito de resposta ganho pelo PT junto ao TSE, obviamente, veio em cima da hora e o estrago já estava feito. Mas, por incrível que pareça, Dilma venceu com quase 52% dos votos. Diante das circunstâncias, em uma eleição na qual aconteceu de tudo, a vitória de Dilma no último domingo foi um feito histórico, sem dúvida.

E isso só foi parte da história. Com uma mobilização da militância como há muito não se via no apoio a um candidato presidencial petista, a reação veio na mesma moeda com uma radicalização do discurso e da prática: não foram poucas as agressões contra ativistas que apoiavam Dilma, tudo alimentado por uma discurso de ódio que mirou desde militantes de esquerda até os nordestinos, mesmo depois de apuradas as urnas. 

Aécio não estimulou diretamente isso, mas também não censurou essa escalada em momento algum. Como Serra em 2010, ele surfou na onda, pois, afinal de contas, vale tudo para ganhar do PT. Como ele governaria, caso vencesse, aí se trata de um mistério que ficará por conta da história contra-factual: eis que Aécio contrariou uma das regras eternas da política (e também da magia!), qual seja, a de jamais invocar uma entidade poderosa demais para ser mandada de volta, uma vez terminada sua função

É igualmente claro que o resultado das eleições está para além das circunstâncias eleitorais. O quadro "mudancista" que se formou nos últimos tempos expressa o encontro entre dois fatores chave, ou seja, as novas necessidades postas com os avanços sócio-econômicos da era Lula-Dilma com a falência definitiva do sistema político. Nuvens negras se formaram no horizonte, mas a ideia de governo técnico trazido por Dilma, no qual o processo político é substituído por uma política de resultados, por sua vez, fez com que elas precipitassem antes do tempo.

O que o eleitorado não desejava, nem aceitava, por sua vez, era um retrocesso. Nesse sentido, mesmo com quase 70% do eleitorado desejando mudanças, Aécio não foi capaz de vencer, mesmo com todo o apoio da mídia de massa, dos bancos privados, das forças armadas. A força que anima o Brasil desde o ciclo de enfrentamento à ditadura, por seu turno, caminhou para uma aliança com a candidatura de Dilma que, contra tudo e contra todos, desbancou Aécio. E isso não significa que essa força tenha sido domesticada por Dilma, longe disso: a conta vai ser cobrada logo.

Não há contradição entre desejo de mudança e o voto pela manutenção do governo. Tampouco a manutenção de Dilma no poder implica em concordância. É o reconhecimento que, no limite, o PT é a opção prática para, ao menos, manter os direitos. Dilma teve uma oportunidade sui generis na política: continuar uma descontinuação do próprio governo. 

As teses que encampam a domesticação das forças de esquerda, no contexto da união por Dilma no segundo turno, me parecem um engano -- e são várias, inclusive com sinal trocado, uns veem isso como um triunfo feliz do governo, outros como um desastre, mas é a análise de fundo é a mesma. O fator que empurrou Dilma para frente é, precisamente, o aspecto socialmente indomável da sociedade brasileira, o qual não encontrou um ponto de consistência seguro em outra parte. Dilma não controla isso, nem tem como disciplina-lo.

O alarido delirante contra o nordeste é uma estupidez sem limites. Aécio tinha um portfólio, Minas Gerais, e perdeu lá. Se a questão for geograficamente interpretada, Aécio perdeu onde não poderia ter perdido. Como perdeu também no Rio, apesar da boa votação para quem não teve palanque.

Os dois compromissos assumidos por Dilma no discurso, sobretudo a reforma política, são de importância absoluta. Porém, mais do que uma larga reforma eleitoral-partidária, a mudança da interlocução entre governo e sociedade terá de mudar. Ou melhor, terá de acontecer. Os próximos anos serão uma navegação na tempestade.

A persistência de uma força constituinte que se espraia desde o derradeiro ciclo de lutas pela democracia, potencializado ainda pela inovação dos anos Lula, é o fator a ser entendido em toda a sua complexidade. Sua singela (e precária) existência, contra tudo e contra todos -- e entre a tempestade de derrotas --, é um paradoxo. Mas é o paradoxo a morada própria da filosofia, já diziam por aí...



sábado, 25 de outubro de 2014

Estação na Mudança, por Cleber Lambert

Em um texto filosófico requintado, Cleber Lambert polemiza sobre a atual situação do Brasil, e do pensamento no Brasil: Uma inquietação filosófica potente e refinada sobre tempos inquietantes. Material de primeira para o Descurvo:
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Um modo de fazer apelo à filosofia por vir no Brasil, que de modo algum, de um ponto de vista geofilosófico, pode se confundir com uma filosofia do Brasil, foi instaurado por Bento Prado Jr, em diversos momentos. Por exemplo, quando ele colocava o ato de pensar imediatamente no prolongamento de uma partida de futebol, com um drible ou um gol marcado num domingo, ou então com uma poesia, com uma passagem de um romance, ou ainda a partir do encontro do futebol com o literatura, com o teatro: “Que há de mais curioso do que esse cruzamento entre teatro e futebol (...)? Mas, na verdade, o texto de Decio de Almeida Prado serve-me aqui apenas de pretexto para esboçar algo como um prolongamento de suas observações: tentarei continuar a jogada com a bola que ele levantou, contando apenas com meu precário domínio dos "fundamentos" (como diz a crônica esportiva) dessa arte. O que me interessa é apresentar uma nova figura dessa oposição literária ou, mais precisamente, entre duas formas de relação entre literatura e futebol, que se desenha no Brasil três ou quatro décadas depois daquela descrita em "Latejando com o Futebol"” (Bento Prado Jr, Literatura e o mistério da bola).
Essa performance filosófica, em Bento Prado Jr, constituía um verdadeiro modo de fazer com que pensamento e vida se comunicassem imediatamente, prolongando-se mutuamente. A mesma constatação que Bento faz adiante em relação a outro encontro da literatura com o futebol, ou “desencontro entre estilo elevado e assunto cotidiano”, tal como o vemos em Carlos Drummond de Andrade e em João Cabral de Melo Neto, qual seja, “pertencia já ao passado o tempo em que era necessário mobilizar estrategicamente a experiência cotidiana para enriquecer a poesia contra o espírito poético exaurido e empobrecido por sua exclusiva consagração a temas elevados, distantes e passados, ou pela obsessão cátara com a pureza da última flor do Lácio”, essa constatação é simultaneamente a essência mesmo do que pratica Bento sob o nome de filosofia, essa performance que já não pode mais traçar uma linha especulativa separando o campo do filosófico e do não-filosófico e que, ao mesmo tempo, mostra rigorosamente em que o não-filosófico pode servir de disparação para o que há de mais filosófico.
É claramente o prolongamento, por uma performance filosófica indisciplinada, do apelo de Oswald de Andrade a uma filosofia antropófaga para além de toda filosofia messiânica assentada sobre o problema do Ser ou da Consciência, da Substância ou do Sujeito enquanto obssessão cátara com a pureza em sua forma propriamente especulativa. Assim, Bento, a exemplo daquele outro, o Espinosa, atacava toda filosofia que nos separa da vida, que não faz da “Verdade” o efeito de um esforço sempre renovado do pensamento, pelo qual nos tornamos dignos de viver, pelo encontro da potência de pensar com as forças exteriores que fazem do imprevisível o mais profundo impulso vital que força o pensamento a sair de sua fadiga habitual e a pensar. Todo pensamento que nos aparta da vida constitui, para Bento, um “convite à falsificação”. Antes do Ser e da Consciência, como princípios aos quais chegamos apenas através da especulação como movimento abstrato, há a performance pela qual pensamento e vida se comunicam imediatamente, tornando possível um movimento efetivo, um bloco de pensamento e vida já tornados indiscerníveis. Não é o que se insinua aos olhos de Bento no encontro da literatura e do futebol, através das metáforas que se multiplicam nos poemas de João Cabral ou nas pernas de Ademir da Guia? Assim, a conclusão de Bento, segundo a qual “com João Cabral, a assimilação literária do futebol deixou de ser mera retórica ou simples provocação. Tornou-se, finalmente, assunto real para o conhecimento literário do Mundo”. É preciso ver nela que a assimilação filosófica desse encontro/desencontro não serve de simples metáfora, mas de material para se pensar o Mundo em seu devir.
Eventos da vida política podem igualmente fazer apelo a um pensamento, jogam igualmente com essa linha que alhures separa o campo da filosofia e da não-filosofia. Um desses eventos na contemporaneidade faz referência, no nosso entender, ao problema metafísico por excelência, ao menos de uma certa metafísica dita ocidental, a saber, aquela da relação entre o Mesmo e o Diferente. O evento ao qual nos referimos se passa, paradoxalmente, no seio da máquina estatal, através de diversas políticas sociais que, nos últimos 12 anos, fizeram dos representados da democracia representativa brasileira uma "classe inominável" ou "classe sem nome", segundo a expressão de Hugo Albuquerque, como se a identidade nacional fosse subvertida lá mesmo de onde ela jorra como efeito da máquina de Poder: para além da oposição entre uma unidade, homogênea, abstrata, como determinação formal do ser brasileiro, e o diverso, heterogêneo, concreto, como matéria indeterminada de uma massa humana, que produzia no Brasil justamente 2 brasis, o dos brasileiros inclusos segundo uma forma majoritária (cidadão de classe média, branco, com ensino superior, cristão, habitante de grande cidade, etc.) e aquele de uma massa de pobres e miseráveis em dispersão, impossível de incluir, invisibilizados nos sertões, favelas e florestas; para além desse esquema, deparamo-nos com uma estranha unidade que se diz da multiplicidade, um devir-brasil que é devir-todo-mundo, uma nação que não remete a um princípio unitário ideal, mas que é genética, ou seja, uma natividade que se engendra continuamente em ato, arrastando a própria máquina estatal brasileira e o todo do sistema democrático representativo, implicando-a num novo "antagonismo", de acordo com a sugestão de Sílvio Pedrosa, que é preciso investigar. Com efeito, o Brasil saiu de um estado no qual justamente ele estava, seguindo o sentido profundo desse verbo, no qual estanciava, repousando sobre um fundamento imóvel, fixo, estável, para se instalar e experimentar uma nova forma de estância, uma espécie de paradoxal estação na mudança: a democracia meramente representativa é devorada pelo voraz movimento efetivo de uma nação que é tanto mais nativa quanto mais ela se inventa. É do ponto de vista dessa estação que podemos contemplar com mais justeza o estado precedente.
Alguns filósofos, como Espinosa, ensinaram-nos que o medo é a estratégia do poder para a dominação de um povo. Pela multiplicação do medo no coração das pessoas, pela agitação em torno de uma inquietação, “o que vai acontecer?”, o poder se apresenta e oferece pontos de apoio fixos, estáticos, para os quais os corações temerosos se voltam na esperança de conseguir tutela e proteção, contra o caos ameaçador que borbulha lá fora. Essa segurança oferecida pelo poder consiste numa estação em que nada mudaria e nada de inquietante poderia sobrevir. Disciplina e/ou controle, trata-se sempre de uma tal estação. Um certo tipo de subjetividade preponderava no Brasil, justamente aquela que jazia nessa estação sem mudança que é uma miragem oferecida pelo poder aos corações que vivem com medo.
No entanto, quando Lula afirma em 2002 que a “esperança venceu o medo” e que sua eleição expressa o “reencontro do Brasil consigo mesmo”, um nova verdade era expressa decisivamente naquela afirmação, a decisão de eleger Lula significava um brasil-menor que assumia para si uma nova posição subjetiva, completamente diferente da precedente, instalando-se no seio da máquina estatal, incluindo-a num movimento que a ultrapassa e que desembocará nas manifestações de Junho de 2013 e nas eleições presidenciais de 2014. Se não hesitamos em ler aquelas primeiras, como explicar tanta incompreensão na mobilização pela candidatura Dilma neste segundo turno da eleição presidencial? Afirmar que as massas estão sendo enganadas sempre foi um falso problema em política. Trata-se de compreender aqui o arco longo da subjetividade que se expressa na eleição de Lula em 2002 e na mobilização atual pela reeleição de Dilma. Esse arco descreve justamente o movimento de saída daquela estação sem mudança e de instalação num movimento real que, como toda criação, é abertura à indeterminação.
Por isso mesmo, como não ter medo diante do risco do novo que deveria, desde então, ser criado literalmente “do nada”, já que não se tem mais os pontos de apoio fixos nos quais agarrar-se por medo, abdicando-se de criar, confortando-se com uma vida em que se miracula um “nada se passa”, “tudo continua igual”? Como assumir de se sustentar no ar sem nenhuma mão que impeça de cair, sem suporte algum que conduza, como um pássaro de que falamos justamente que ele voa livremente e faz um consigo mesmo em seu sobrevôo, à maneira de uma estação na mudança, de uma experiência que já não pressupõe nem sujeito, nem objeto, mas constitui uma individuação criadora, uma pura atividade ou corrente de vida, uma afirmação absoluta de si sem sujeito nem objeto? Construir, assim, uma vida que seja pura natividade, pura estância na mudança, num esforço atlético e contínuo de singularização, expõe aos riscos de se cair na fadiga que põe um objeto e um sujeito como formas dadas, aos quais essa vida seria atribuída e desfigurada, acomodando-se num estado (forma majoritária). Porém, como já dizia o filósofo H. Bergson, em A Evolução Criadora, as maiores recompensas dependem dos maiores riscos e não há criação de novidade no mundo sem esse gesto nobre de dizer sim à mudança, ao risco de mudar, ao abandono do estado que liga a consciência a um princípio a fim de esposar singularidades moventes ou forças estrangeiras que povoam um espaço aberto ou campo impessoal (devir-minoritário).
Ao longo dos últimos 12 anos, surgiu pouco a pouco uma percepção de que se vivia numa espécie de mudança, e de que a mudança comporta ela própria uma estação, uma verdadeira estação na mudança e, acompanhando essa percepção, tem-se o sentimento de que algo de si (do “si” meramente individual) já não cabe em si em sua forma previamente dada, de modo que ele escapa, foge, coincidindo com uma vida, no que esta significa uma mudança não somente continuada, mas contínua, ou seja, um esforço constante em estanciar nesse limiar de indeterminação pelo qual se dá a "imprevisível criação de novidade" (Bergson). Essa paisagem da vida política no Brasil não deixa de ressoar com a filosofia, ou mais radicalmente, com o próprio devir do pensamento. Quando a campanha de Dilma falou em 2010 em “seguir mudando” e afirma agora "mudar mais", ela reivindica uma posição subjetiva que faz problema. Com efeito, ela não supõe um princípio transcendente/condicionante. Ao contrário, ela faz uma só e única realidade com aquele estranho princípio imanente de que nos fala Deleuze a partir de Nietzsche, que se determina em cada caso com aquilo que ele determina, que se metamorfoseia com o condicionado. O que estava e está em jogo nessas expressões é uma verdadeira estância na mudança, essa nova posição subjetiva, instaurada e experimentada ao longo dos últimos 12 anos, em diferentes graus e de diferentes modos, nas diferentes classes sociais, doravante em pleno movimento de deslocamento seguindo o vetor "selvagem da classe sem nome" (Hugo Albuquerque). Não se trata nessa posição subjetiva paradoxal de afirmar um processo de mudança que levaria calmamente de um estado a outro. Essa sempre foi a imagem reservada às instituições numa democracia representativa. Ao contrário, trata-se de apreender o movimento efetivo de uma democracia real vivida como estação na mudança. É preciso pensar no profundo significado dessa estação em relação àquela outra que, pelo medo, nos fazia desejar tudo que pudesse ser fixo, imutável, ou não admitir mudança que não fosse de um ponto fixo a um outro, de um estado a um outro, como uma pessoa que, em meio a uma correnteza, pudesse se agarrar a pontos de apoio sucessivos que a conduzissem de uma margem a outra, sem que no final das contas, de fato, ela mudasse de lugar, pois de um lado ou de outro do Rio, ela estava protegida do fluxo que tudo mistura numa mesma e única corrente, levando o conjunto fluido alhures. Essa mudança era apenas um “movimento aparente”, uma passagem imóvel, pois, com efeito, “nada se passava” em nós, nada de novo em nós se criava e nos confortava olhar para a água e ainda ver no fluxo movente nossa própria imagem imóvel e nela nos reconhecermos, tal como é possível se reconhecer nas formas majoritárias que marcam socialmente a diferença relegada ao estado de maldição de pura mudança sem consistência. A imagem que fazemos das instituições também deve ser alterada de acordo com um ou outro ponto de vista na medida em que se trata de precisar o sentido daquilo que não se conserva a não ser na mudança.
Ora, é surpreendente que o filósofo Jean-Christophe Goddard, ao fazer uma bela reflexão sobre um outro filósofo, o alemão Fichte, em torno da questão que por gerações foi colocada a seu respeito, a saber, “Fichte, seria ele reacionário ou revolucionário?”, lembra-nos que a dicotomia do reacionário e do revolucionário, da conservação e da mudança, encontra-se completamente inserida num movimento aparente, numa espécie de pêndulo que realiza apenas uma passagem imóvel que nos leva de um polo fixo a um outro polo fixo e que integra a estratégia de codificação do social pela máquina do poder. Nesse sentido, o pêndulo do poder é uma espécie de estação propriamente sem mudança. Para ele, a inovação política de Fichte consistiu em pensar um meio de viver uma estação na mudança, ou melhor, Fichte foi o filósofo para quem uma vida consistia numa estância na mudança, mas à condição de que ela não sinta medo e escape ao pêndulo do poder que a ela oferece lugares estáveis para que nenhuma imprevisibilidade sobrevenha, para que precisamente “nada se passe”, seja se conservando no mesmo lugar, seja se transportando de um lugar fixo a um outro lugar fixo, através de uma mudança imóvel. A história da filosofia em seu conjunto é perpassada pelo problema da estância: “Ser” é uma questão de “estar”. Desde que o problema do princípio ou de uma unidade absoluta apenas varie numa estância entre uma “consciência” e o “Ser”, desde que o único percurso possível para o pensamento designe aquele que o conduz dessa consciência até um princípio Absoluto estático, imóvel, eterno, estamos, literalmente no sentido de uma estância sem mudança: todos os estratos que fixam a existência, o devir, a imanência, nos sucessivos sistemas filosóficos que fazem o mundo da representação. Entretanto, quando a representação é rompida pelo acontecimento, pela abertura de um espaço em que não há outra estância real a não ser aquela que nos faz permanecer no inacabamento, na interminabilidade, na transicionalidade que já não opõe o Uno ao múltiplo, o Idêntico ao diferente, o Homogêneo ao heterogêneo (a retomada incessante ao longo dos anos da Doutrina da Ciência é, nesse sentido, uma performance filosófica pela qual Fichte vive sua estância na mudança, uma transistência, como chamava Guattari a esse regime de subjetividade), passamos literalmente pela passagem: enfim, saímos do problema que relaciona um Sujeito a um Objeto, uma Consciência a um Princípio, o Múltiplo ao Uno, o Diverso ao Ser, o Condicionado à Condição, para nos instalarmos imediatamente no espaço intensivo do acontecimento, da diferença afirmada enquanto diferença, do que está em vias de se fazer. Essa estância na mudança abole tanto o Ser quanto a Consciência enquanto princípios ao passo que o verbo estar como índice de intensidade, como singularidade de um devir (hecceidade), faz valer sua contribuição para a filosofia. A estância na mudança se diz do acontecimento entendido como um se auto-pôr enquanto se auto-pondo, portanto, como uma pura atividade criadora.
Ora, já não era essa também a verdade antropófaga? O pensamento antropófago sempre nos lembrou que não há verdade como resultado da condução (por adequação, reflexão) do múltiplo ao Princípio imutável ou Absoluto. Tal sempre foi a maneira com que a especulação impediu a filosofia de pensar o novo. Oswald de Andrade fala em “tédio especulativo”, “estados tediosos”, “ideias” ou “paralisias” dos “chamados povos cultos”. Ao contrário, haveria uma unidade vital propriamente antropófaga: a vida é devoração e o pensamento é dinâmico, não cansava de dizer Oswald de Andrade. Unidade, portanto, instaurada incessantemente, tanto mais pura quanto mais híbrida ela se faz, que se diz da multiplicidade, não apenas heterogênea, mas heterogeneizante. Unidade que, não sendo posição subjetiva do colonizador (fundamento), nem colonizada (fundado), co-incide com o processo constante de descolonização do pensamento e da vida ou seu "afundamento". Subjetivação incessante, portanto, ambivalente. Somos todos canibais. Antes de descobrirem o Brasil, o Brasil já tinha descoberto a felicidade. O plano de imanência é a retomada do plano antropófago. O instinto caraíba da filosofia contemporânea. uma terceira margem também para a filosofia.
Quando certo Brasil, no plano da imaginação política, com os governos Lula e Dilma, assume a posição de um “continuar mudando”, o que está em jogo é precisamente a suspensão do pêndulo do poder que, através do medo, ou nos finca no mesmo lugar (reacionário) ou através de uma agitação momentânea nos conduz de um estado a um outro (progressista). Nesse sentido, permanece-se no pêndulo do poder que nos leva de um polo fixo a um outro polo fixo, numa passagem sem mudança, responsável pela interioridade própria a uma história descolada da situação material da vida, pois nela nada se passa e nada pode se passar. Uma resposta possível a isso é permeável na posição teórica do pensador italiano T. Negri. Todavia, o modelo subversivo negriano, ao opor a virtude do poder constituínte à sua desnaturação pela instituição, faz do virtual uma reserva inesgotável e sempre capaz de se subtrair à captura capitalística ("o caráter presumidamente permanente da inovação, do acontecimento, da criação", criticava com muita pertinência o filósofo F. Zourabichvili, ao apontar algumas divergências entre Negri e Deleuze). Dessa maneira, malgrado a si mesmo, ele depende da manutenção daqueles estados fixos representados pelas instituições, por vezes, até os clama e luta pela sua fixação ainda mais furiosa, para que assim, como bem viu F. Zourabichvili, o poder constituínte seja afirmado com mais veemência, em sua dimensão de exterioridade, em relação à instituição, a qual "sobrevém de fora para o integrar e o desnaturar". A conseqüência dessa operação se revela problemática: "tudo o que esse poder informe, 'ominiversátil' constitui, ele deve negá-lo imediatamente para permanecer ele mesmo; mas com isso, parece-me que ele não pode deixar, apesar de tudo, de se negar em parte a si mesmo". Tudo que esse modelo consegue ao criticar a transcendência vertical da instituição é afirmá-la ainda mais fortemente através da transcendência horizontal do poder constituínte, sendo incapaz de dar conta da instauração de novos "agenciamentos econômicos, sociais ou políticos", agenciamentos "jurídicos antes impensáveis", "novos direitos" e das novas realidades que eles tornam possíveis. É que o pensamento de Negri permanece principial e não há nada mais fatigante do que a eterna subversão contra os princípios que são, por isso mesmo, tanto mais afirmados. Já não era essa a razão pela qual o mesmo Zourabichvili, numa outra obra de grande vidência que inspira nosso exercício (cf. "O conservadorismo paradoxal de Espinosa") lembrava o quanto o filósofo polidor de lentes tinha em suspeita a revolução por ela ficar presa, pela própria subversão contra o tirâno, na "espiral da tirania", contribuindo apesar dela para sua "deriva bárbara"?


A suspensão do pêndulo do poder não implica uma simples subversão, mas a decisão perversiva de um pensamento capaz de permanecer atleticamente na mudança. "Conservadorismo paradoxal" de Bento de Espinosa, dirá Zourabichvilli, não como esforço para manter o que existe, mas para fazer existir o que se conserva. Não há outra maneira de fazer existir o que se conserva a não ser como estação na mudança, instauração de um espaço absolutamente novo, uma “terceira margem” roseana. "A questão da transformação trabalha do interior o motivo do perseverare in suo esse". Não surpreende, então, que essa estação na mudança contenha em muitos sentidos as características de um elemento que, na filosofia de Deleuze e de Guattari, instaura uma ambigüidade na ideia de revolução, entre a linha ocidental, pela qual ela remete a uma transformação do Estado, e a linha oriental, pela qual ela projeta a destruição do Estado. Ainda mais uma vez, como bem nota J.-Ch. Goddard, essa ambigüidade mostra que a verdadeira dicotomia não passa pela simples oposição entre o reacionário e o revolucionário, mas a própria revolução verdadeira passa pela dicotomia ENTRE o dispositivo do poder, dual ou binário que opõe dois estados, o reacionário e o revolucionário, o conservador e o reformista, E a máquina revolucionária que descodifica e estende o fluxo ilimitado de uma vida que se cria para além da codificação do social. Esse movimento vital arrasta todas as diferenças e hierarquias “sobre as quais se apoia essa luta lutando com elas”. Essa luta é o elemento que realiza uma verdadeira passagem do dispositivo do poder à máquina revolucionária, desfazendo os dois polos do dispositivo do poder, o reacionário e o revolucionário em sua linha ocidental: devir-revolucionário. É uma luta que, por se identificar plenamente com uma vida, implica “seguir mudando”, instaurando o que se conserva na mudança, o que passa longe igualmente de uma simples destruição do Estado. Por isso, o sentimento, motivo de crença, de que a classe sem nome não é implicada na polaridade eleitoral presente. Antes, é ela que implica o PT, seus governos e suas polarizações no antagonismo real de sua própria ascensão selvagem. Não há submissão do vulgus ao soberano, como alguns gostariam de nos fazer crer. Ao contrário, a multitudo em sua estação na mudança permanece submetida à suas paixões, mas ao menos se trata de paixões alegres e, como mostra ainda Zourabichvilli, há em Espinosa toda uma "elevação progressiva" da multidão livre seguindo o vetor da esperança, da vida e da liberdade, antes que o do medo, da morte e da submissão. Do mesmo modo, é preciso que a própria máquina estatal e suas instituições passem a ser compreendidas, para além das formas representativas da democracia, enquanto formação democrática instauradora de novos direitos que é preciso conservar para seguir mudando. É nesse sentido da conservação na mudança e instauração do que se conserva (novos direitos) que a instituição passa a participar da imaginação criadora de novas possibilidades de vida: "anarquia coroada".

É notável, portanto, que Goddard tenha reencontrado essa estação na mudança, essa "figura atlética da subjetividade", conservando-se tal como a figura baconiana, entre o limite e o ilimitado, no cinema revolucionário de Glauber Rocha tal como este nos apresenta o Sertão como espaço aberto onde o poder não pode alcançar e espalhar o medo. "Espinosismo obstinado" que nenhum spinozista parece enxergar, pois nunca puderam ver Bento, mas também um tranqüilo bergsonismo caraíba. O Sertão vive nos corações valentes como espaço vivo que não se opõe à cidade ou à floresta, mas as estende, que recusa o medo e afirma o inesperado. Sertão como potente vida que segue mudando e que vemos encarnada em Antonio das Mortes pois ele devem-revolucionário ao abolir o pêndulo do poder entre o reacionário (proprietários) e o revolucionário (cangaceiros expropriados): Antonio, esse si absolutamente im-proprietário. É notável que Antonio se diga justamente das mortes. Com efeito, morte se diz, num primeiro momento, das múltiplas mortes empíricas impostas aos ex-propriados para servir aos proprietários, compreendidas, assim, dentro do pêndulo do poder; num segundo momento, uma nova morte que se diz da suspensão da própria morte em que consiste essa vida capturada pelo movimento pendular relativo, portanto, uma morte como liberação an-arquica e emancipação vital pela qual ele se torna um im-proprietário. Antonio das mortes encarna, portanto, esse combate entre dois regimes de subjetividade no Brasil, ou antes, o combate entre um regime de poder vindo de alhures, do alto, transcendente e um regime de potência imanente, de heterogênese subjetiva. O Sertão sempre foi para nós uma arte e uma política, uma vida e um pensamento ou o lugar impossível de sua coincidência, portanto, tanto mais real quanto mais inventado: genético-nativo.
Falta a filosofia. Mas é preciso entender falta não como determinação negativa no sentido de que careceríamos de uma filosofia da qual se poderia dizer que ela é brasileira, mas falta uma filosofia no sentido de que a filosofia está por vir e seu tempo é o desse estar: uma estação na mudança. Pois se a filosofia se confundiu sempre com a Ontologia, com a história dessa "paixão inútil", fatalmente "malograda" (Bento), em todo caso, fatigante, que remete o pensamento ao Princípio, portanto, com o problema de uma unidade capaz de dar conta do múltiplo e de conduzi-lo ao Uno, compreende-se que não haja uma filosofia brasileira ou que não haja senão à maneira da reprodução colonizada da consciência enlatada - inclusive militante, quando se trata de compreender a vida política -, pois o devir-brasil faz uma só e mesma coisa com a abolição da Ontologia, portanto do próprio problema da unidade que se opõe ao múltiplo. Mas essa própria abolição, para não ser simples mergulho no informal, ou pior, restauração de novas Transcendências, ainda que constituintes, relacionais e horizontalizantes, já se compreende imediatamente como instauração de um processo a tal ponto perversivo que, através dele, a unidade se diz da multiplicidade e a estação se diz da mudança. Da perspectiva dessa estação, o Sertão aparece como o espaço onde a Arte, a Filosofia e a Política se encontram enquanto performances instauradoras. Assim, a performance filosófica de Bento Prado Jr., pela qual iniciamos esse breve exercício, se compreende rigorosamente como prática antropófaga da filosofia. O "bom canibalismo" atribuído ao amigo Rubens Rodrigues Torres Filho, poeta, filósofo e tradutor de Fichte, é também o dele próprio, Bento, já que, com ele, trata-se de não reconhecer fronteira, tal como a que separava o poetisável do não poetisável, o culto do cotidiano, o erudito do popular, o nacional do estrageiro. Se as fronteiras são abolidas, é porque uma linha intensiva alastra um espaço aberto, ambivalente, individuante no qual elas se precipitam e se abolem, como alturas e profundidades se precipitam à maneira de pregas de uma mesma superfície quando esta se estende. E Deleuze já mostrava como os princípios subterrâneos e os princípios elevados se desmanchavam numa filosofia das superfícies. O Sertão é a imagem literal glauberiana-roseana, Mundo no qual podemos, novamente, crer na medida em que não há outra crença que não a da própria estação na mudança como crença na imprevisível novidade e na criação de futuro.

Cleber Lambert, 24 de outubro de 2014, Santo Amaro da Purificação

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Dilma e a PUC-SP como uma Aldeia de Asterix


" Toda a Gália foi ocupada pelos romanos... TodaNão! Uma aldeia povoada por irredutíveis gauleses ainda resiste ao invasor. E a vida não é nada fácil para as guarnições de legionários romanos nos campos fortificados de Babaorum,AquariumLaudanum, e Petibonum..."
(prólogo de todas as edições da série Asterix).

No início desta semana, os dois atos pró-Dilma ocorridos na PUC-SP tomaram proporções inacreditáveis. O encontro de intelectuais e artistas no Tuca ultrapassou o teatro, se tornando uma manifestação espontânea, multitudinária e mágica. Na terça, o ato dos estudantes na prainha, centro nevrálgico do campus Monte Alegre, tomou vida e virou algo mais -- e deu tão certo que, no seu fim, foi atacado por um enxame fascista.  

O interessante, em ambas as ocasiões, é que os atos saíram do controle da própria organização e, curiosamente, tomaram uma forma própria. O que conferiu esse novo design é uma confluência curiosa que se formou a partir do segundo turno: a potência constituinte, essa força da multidão na direção da geração de direitos, fluiu através da candidatura petista de Dilma Rousseff; o que era, a princípio, apenas um veto à candidatura de Aécio Neves -- a perspectiva de retrocesso, da eliminação de direitos --, tomou um caráter positivo e propositivo.

É essa potência o fator que que mudou os rumos da atual eleição. E justamente quando tudo, absolutamente tudo, parecia caminhar para uma vitória certa do conservadorismo -- em um segundo turno que seria, seria, um passeio do conservadorismo, com a esquerda sem prumo e desistente.

Ainda que a eleição persista em empate técnico, Dilma segurou a ascensão do adversário e, agora, tem uma ligeira vantagem, com menos rejeição do que ele. A questão vai além das eleições, ela diz respeito a deflagração de um processo político outro, maior, cujas repercussões vão sim afetar um segundo mandato seu ou o eventual governo Aécio.

E a grande questão é que esse movimento, precisamente, não está sob controle do lulo-dilmismo, ele é uma força autônoma que encontra na candidatura Dilma, apenas e tão somente, um ponto de consistência: é ali que ele se corporifica, não onde ele existe. É uma ilusão de ótica supor que esse movimento é fruto de algum engano das massas -- e isso vale para quem diz isso a partir de uma posição contrária ou favorável a Dilma --, trata-se de uma manifestação da prudência -- no sentido clássico, isto é, saber prático -- da multidão face à vida como ela é.

Foi esse processo que esteve na cerne dos comícios gigantescos de Dilma na periferia de São Paulo e no Recife, mas foi na pequena PUC-SP, quase como a última aldeia gaulesa cercada pelo Império Romano, que isso foi catalisado simbolicamente. Lá, justo na PUC-SP que pelejou tanto pela democracia, mas que ficou tão parada em termos do debate extra-muros, situada em meio a uma área, geográfica, majoritariamente conservadora. 

A experiência desta semana na PUC-SP foi inacreditável, surpreendente e revigorante. Em sete anos de PUC, entre a graduação e o mestrado, eu jamais suporia que algo assim pudesse acontecer; segundo a triste realidade do nosso tempo e da minha alma mater, tudo parecia pender entre o conservadorismo de classe -- ainda que mitigado pelo ethos da instituição e alguns aspectos do catolicismo -- e um radicalismo sem rumo.

Em meio a uma eleição tão angustiante, em tempos tão angustiantes, a brecha que se abre é, precisamente, uma que aponta para um segundo governo de Dilma necessariamente mais democratizante -- ou isso ou será a paralisia completa -- ou um governo Aécio que já nascerá com um núcleo duro de oposição montado. Pouco importa para onde a História se desdobrará, quando as condições objetivas são determinadas desde baixo, não há como o Poder escorregar. 

Eu vou com Dilma na disputa voto a voto nesses dias, será difícil, mas aconteça o que acontecer, eu já estou feliz pelo sentido que esses últimos dias tiveram -- e que eles ainda podem dar para o nosso futuro próximo.