domingo, 26 de agosto de 2012

As Eleições Municipais e a graça da Política Brasileira

Multidão (A. Ruivo),
As eleições municipais de 2012 seguem em um ritmo morno, estão quase quietas. É fato que depois da vitória de 2010, a radicalização do discurso de direita vista até ali sucumbiu junto com José Serra nas urnas. A vitória de Dilma e seu já concluso um terço de mandato, por outro lado, praticamente colocaram termo final à expectativa de uma continuidade das mudanças em termos de esquerda: se os pobres foram autorizado a desejar, tornaram-se parte do jogo, ascenderam como tumulto incomodando até mesmo a esquerda,  a resposta de como guiar o país se dá, hoje, em termos gerenciais e modernizatórios -- eis uma longa estrada para o progresso, eis uma crise que precisamos nos livrar, assim segue o governo, por ora, muito bem avaliado, apesar da deserção gradual de parte da intelectualidade que lhe apoiou fielmente e de alguns setores.

Dilma segue bem avaliada, inclusive, por setores que rejeitavam Lula e, ao contrário do seu antecessor, jamais perdeu a oportunidade de buscar uma aproximação com a mídia tradicional que ele confrontava abertamente. Dilma agrada a classe média, mais até do que por seu jeito de ser, e mais por sua política de governo mesmo. Não é difícil imaginar que muitos dos eleitores de Dilma teriam votado em Plínio ou Marina se pudessem antever o que é seu governo, mas não seria arriscado que grande parte da classe média do sul-sudeste que votou em Serra talvez titubeasse em fazê-lo aqui e agora. Ainda assim, se pegarmos o que escrevem e pensam  Serra, Plínio e Marina sobre desindustrialização -- e basta uma googleada para tanto --, não temos nada tão diferente ente si, exceto as cores da moldura -- azul, vermelho e verde. E nem vem que não tem: o problema não é o desenvolvimentismo do outro. É nesse clima político que estamos vendo as eleições municipais. 

Não há mais direita, nem há mais esquerda, mas esse modernismo ao qual o próprio Lula aderiu ao ratificar as mudanças de Dilma também não é Lulismo, mas uma de suas possibilidades; é sem ter sido, Dilma não é Lula, mas Lula, que era muitos, restou Dilma. Não há mais radicalização alegre e se era possível fazer dessa ascensão tumultuada dos pobres um carnaval, hoje, o que há é a missa civil do, pelo e para o Moderno. O PT mudou? É claro -- e raramente para melhor, mas isso não quer dizer que ele seja o problema. Posta de lado a direita, temos um problema geral os partidos, supondo que eles ainda sirvam taticamente para algo.Se até mesmo Badiou já abandonou os partidos, quem somos nós, não? 

Seja como for, pensando o voto como possibilidade real posta, as candidaturas petistas quase sempre são as melhores -- pelo menos pensando nas grandes capitais --, exceto quando por candidatura petista entenda-se uma candidatura meramente governista como nos casos de Curitiba -- a grande capital mais conservadora do país, onde as opções não são animadoras -- ou, sobretudo, do Rio -- onde ver Lula fazendo campanha para Paes é curiosamente funesto, embora não seja surpreendente como um todo. Em São Paulo, como insistimos há muito, para além das desventuras e de erros importantes na campanha de Fernando Haddad, é fato que ele é, dentro do plano do PT e da esquerda algo razoável: Nádia Campeão é uma boa vice etc etc. 

Na Pauliceia, as pessoas certas do PT paulistano estão honestamente do lado dele -- Paulo Teixeira, Nabil Bonduki; tampouco não se compara ao que seria o apoio a um aliado -- Chalita? -- ou a insistência absurda em Marta -- quatro vezes, não, né? Ainda mais levando em consideração os atritos desnecessários todos, a política de habitação, a luta contra a esquerda do partido e os vereadores independentes. Há quem diga que Marta seria melhor candidata -- e possivelmente teria uma intenção de voto mais alta do que Haddad neste momento --, mas eu discordo frontalmente disso. Haddad merece ser prefeito pela sua atuação na secretaria de finanças do município e pela sua atuação sim no MEC. Assim como Gabriel Medina tem feito uma campanha interessante para vereador, coisa que não se repete dentro do PT nem fora dele pela esquerda. Ironias do destino, é Russomano e não Haddad, Chalita ou Serra que está em primeiro. Agora, a incerteza é a lei como aponta a boa análise de Elton Flaubert.  

No Rio, a um primeiro olhar, a campanha de Freixo é uma luta contra moinhos de vento e isso, é claro, desperta os brios da (boa) esquerda, mesmo de corações endurecidos como deste blogueiro. Mas o PSOL do Rio, que tem afinal um candidato com carisma e força pessoal -- para, sozinho, ir além em um sistema político tão dependente de carisma e da pessoalidade --, por outro lado, tem como pouca multidão; se o PT nacional nasce como o primeiro partido de esquerda nacional desde o Partidão a realmente ter participação massiva de trabalhadores, lhe faltavam pobres -- o que não se confunde com abertura para pobres, mas com a falta dos próprios em pessoa --, mas se em nível nacional, futuramente, ele resolveu este problema, no Rio, ele permaneceu elitizado e branco demais, anêmico demais para não virar peão no jogo da direção nacional. Com o PSOL carioca de hoje, ironicamente, ocorre o mesmo -- ainda que com mais obstinação. Uma candidatura socialista que continua ainda distante demais dos pobres. Não que não haja como não reverter isso, nem que não seja preciso, afinal, se agenciar com essa classe sem nome que está aí por óbvios motivos de ordem eleitoral e política mesmo.

A correlação de forças entre os grandes partidos não deve mudar, com destaques aqui ou acolá. Possivelmente, o PT cresce mais um pouco, talvez o PSDB, mas nada muito relevante. O que muda mesmo é o impacto imediato do jogo nas grandes capitais sobre o grande consenso partidário e a oposição escanteada. Mantém-se? revitaliza? Mas as coisas não vão bem e não é esperando que o governo mude que iremos para algum lugar. Falta vontade para se mover realmente por fora desses esquemas de captura. Nascer dói, é preciso reaprender a dor da luta como disse um filósofo por aí. Politicamente, nunca estivemos tão bem, nem tão mal.

domingo, 19 de agosto de 2012

Assange no Equador: O Norte da Democracia Global é o Sul



Há poucos dias, Julian Assange, o criador de Wikileaks, voltou ao foco da mídia global em um episódio chocante, no qual a polícia britânica o tentou capturar com o fim de  extraditá-lo para a Suécia, onde responde a um processo duvidoso e viciado por questões políticas. Chegou-se ao extremo de uma tentativa de invasão da embaixada equatoriana em Londres, onde ele se refugiou por sua proximidade política com o governo Correa - agravado pelo fato de que a missão diplomática equatoriana chegou a ser pressionada para entregá-lo. Em um gesto corajoso, ele não só não foi entregue à polícia, como também recebeu asilo no pequeno Equador, apesar de ter potências como EUA e Reino Unido em seu encalço. O conselho de chanceleres da União Sul-Americana (Unasul), inclusive, ratificou seu apoio à decisão equatoriana.

Assange tornou-se o ícone da nossa época, quase um Che Guevara da pós-modernidade ao revelar ao Mundo em 2010, por meio do seu Wikileaks, o vazamento de telegramas diplomáticos dos EUA em todo o mundo, que comprovaram velhas teses, desmascaram certas figuras e, sobretudo, colocaram Washington em xeque. Depois disso, o fato de Assange passar a ser perseguido mundialmente pelos EUA eram favas contadas - e não tardou a surgir um misterioso processo por estupro contra ele na Suécia, cuja procuradoria passou a exigir paranoicamente sua extradição da Inglaterra para lá, embora ele não tivesse sido condenado e pudesse depor tranquilamente de Londres. 

O grande problema de tudo isso, é que o Estado sueco não deu garantias, em momento algum, de que Assange não sofreria uma segunda extradição, desta vez para os EUA, onde o establishment local já preparava algum julgamento farsesco, à moda do que eles realizam a todo tempo em Guantánamo. O ponto é que a legislação sueca de crimes sexuais é profundamente vaga além do fato de pesar contra Assange uma acusação pouquíssimo clara e com um conjunto de provas confuso. Nada que não pudesse ser esclarecido sem demandar sua extradição imediata, ainda mais considerando que isso aconteceu no calor do momento em que as revelações de Wikileaks abalava o mundo. 

Pior ainda, as movimentações políticas americanas contra Assange só provam mais ainda a natureza do material divulgado e constituem, como pontua Mark Weisbrot, em uma violação clara a tudo que o país de Tio Sam reivindica ser desde o pós-Guerra: o criador de Wikileaks não cometeu crime algum, ele apenas divulgou dados vazados, a exemplo de inúmeros jornais pelo mundo que repercutiram, inclusive mediante acordos direitos com o próprio site. Se alguém cometeu crime, foi quem divulgou dados sigilosos, embora, evidentemente, não se trata de uma questão penal estrita; se o ordenamento jurídico americano entende a revelação desses dados como "crime", o faz como qualquer poder soberano: ele tipifica penalmente a conduta que lhe interessa e, assim, ele torna passível de punição a revelação do seu modo de operar, invasivo e conspiratório, pelo mundo.

As revelações de Wikileaks não são pouca coisa. Se boa parte dos principais pensadores contemporâneos gastaram páginas e páginas dissertando sobre a guinada bélica americana após o atentado de 11 de Setembro de 2001 - e, depois, sobre uma crise econômica dentro da qual não surgiu qualquer alternativa prática radical - foi pelo singelo motivo que nada era capaz de disparar o novo: depois de Assange e sua ousada ofensiva, deflagrou-se, p.ex., movimentos como aquele que conduziu à Revolução dos Jamins na Tunísia - tributário direto dos dados de Wikileaks do funcionamento da ditadura de Ben Ali -, todo o processo da Primavera Árabe e, depois, dos occupy, todos modos de insurgência libertários, inseridos dentro da racionalidade das redes - sendo que até ali, o grande levante contra os EUA e a ordem imperial veio por parte do resmungo reacionário do al-quaedismo e de Bin Laden. 

O abraço que Assange recebe do governo de Rafael Correa, o jovem presidente equatoriano eleito na esteira do vento democratizante produzido na resistência ao privatismo latino-americano, é um símbolo curioso: é a união do maior ícone rebelde do nosso tempo com o que há de virtuoso em termos de movimento político e (des)apropriação do Estado pelo mundo. Um bom encontro alentador neste 2012 que se afigura como um anti-2011, pela envergadura da reação às explosões multitudinárias vistas ano passado. A postura reacionária de EUA, do Reino Unido e, surpreendentemente, da pacata Suécia assusta. Hoje, mais do que nunca, o Norte da democracia global é o Sul. 


domingo, 12 de agosto de 2012

Badiou, A Revolução Cultural e o Comunismo como Hipótese

Les bombes tonnent et moi je sonne Mao Mao
Alain Badiou é um dos últimos intelectuais franceses de sua geração ainda em atividade. Ele pertence a uma leva de pensadores radicais que emergiu no pós-guerra francês, escamoteada sob na Academia, estreitamente ligada ao fenômeno do estruturalismo, e diretamente engajada na reinvenção do léxico revolucionário diante do fracasso do socialismo real - à luz da experiência radical do Maio de 68 -, o que implicou em uma crítica à forma partido, às organizações típicas da esquerda e a qualquer forma de estatalismo. 

Ao contrário de Foucault, Deleuze ou Guattari que se distanciaram de vez da tradição filosófica do Ocidente, Badiou, no entanto, permaneceu fiel a ela dentro de seu polêmico maoísmo militante e ou no que concerne sua filosofia do evento (isto é, uma ruptura na disposição normal dos corpos e das linguagens tal como ela existe para uma situação particular [p.138, op.cit.]).  Nela ainda se faz uma opção pela dialética, pelos universais e pela verdade militante.

A Hipótese Comunista tem por centro de gravidade uma tarefa audaciosa: nela, Badiou busca reinserir a palavra maldita comunismo no léxico da esquerda e, para tanto, ele desenha um plano interessantíssimo, que começa pela indagação o que é fracassar? - uma ontologia dos fracassos da esquerda e das formas de fracassar -, passando pela afirmação da contemporaneidade do Maio de 68, um exame da Revolução Cultural chinesa, e depois da Comuna de Paris, para desembocar, finalmente, na ideia de comunismo - o que marca seu posicionamento favorável a Platão e seu legado, o qual aproxima do comunismo, distanciando-se mais ainda dos seus pares.

A exemplo do igualmente polêmico Slavoj Zizek, Badiou entende que é preciso não jogar fora o bebê junto com a água do banho no que toca à análise do socialismo real, se afastando dos muitos anarquismos e autonomismos que emergem da crítica ao sovietismo. Badiou está bem próximo ao pensamento de Zizek, pela via de Lacan, embora pouco disposto a reinventar Hegel [como ele próprio admite na nota de rodapé das páginas 135-6] e sem o mesmo talento ou disposição para o polemismo pop.

 Badiou se propõe a fazer de A Hipótese Comunista não uma política ou uma filosofia política, mas sim um livro de filosofia. A via que ele escolhe - e talvez explique sua publicação pela coleção estado de sítio, da Boitempo - está compreendida dentro do intenso debate que divide as esquerdas no mundo atual - que a despeito da gravíssima crise em curso no capitalismo, não assiste à emergência de nenhuma alternativa sólida ao modo de vida e política vigentes -, colocando-se no campo daqueles que ainda mantém os pés fincados nos universais e ainda nutrem uma certa relação com a dialética e certas formas (mesmo escamoteada) de ontologia negativa. 

O que certamente salta aos olhos na obra é a defesa de Badiou ao maoísmo, mas é preciso pensar isso para além do absurdismo liberal ou de uma abordagem ideal-moralista de história e política: em um primeiro momento, o maoísmo ocupa seu lugar, com algum êxito, na França do pós-Guerra diante da crítica ao modelo soviético que ele encarnava - cujos problemas eram bastante claros para intelectualidade local por conta da reprodução de disfucionalidades parecidas no Partido Comunista Francês. Badiou, naturalmente, vem dessa tradição. 

Ainda que ele não esteja errado em enfatizar certas vantagens do maoísmo, sobretudo sua distância crítica em relação ao stalinismo, ele vacila na análise - e ele não deixa de admitir isso -, pois por mais que a fase derradeira do líder revolucionário chinês seja marcada pela percepção das insuficiências da forma Partido e da busca de alternativas fora dele, Mao jamais se pôs definitivamente contra ela - e da forma Estado, por tabela - assim como a Revolução Cultural esteve longe de, ao menos como proposta teórica, ser um ponto de inflexão efetivo na subjetividade ou na "superestrutura". 

Nesse sentido, Badiou, pelo bem de sua honestidade intelectual, é obrigado a admitir esses pontos, além de citar suas próprias mudanças de posição ao longo do tempo, embora no mesmo parágrafo em que refuta a via da forma partido seja o mesmo em que ele refuta o anarquismo, ainda que de forma pouco clara e confusa: "Sabemos hoje que toda política de emancipação deve acabar com o modelo do partido, ou dos partidos, afirma-se como política 'sem partido', mas sem cair na figura anarquista, que nunca passou de crítica vazia, cópia ou sombra dos partidos comunistas" (p.90). Certamente, Badiou incide em uma crítica vazia sobre a suposta crítica vazia que pretende refutar, embora esse seja só um equívoco lateral da obra.

Esse aparente beco sem saída sobre o maoísmo explica-se facilmente, no entanto, pelo rápido exame da maneira como Badiou coloca a sua problemática: Pouco importa o fracasso histórico, o suposto fracasso real da Revolução Cultural, o que nos interessa, à luz de uma perspectiva revolucionária, é o simbolismo que a permeou e a constituiu como premissa central - uma vez que ela é um evento mais do que simbólico como qualquer peça da história, mas também consciente da instância simbólica e pronta a operar de forma revolucionária dentro dela; assim, a questão torna-se o que podemos tirar da Revolução Cultural e operacionalizá-la ideologicamente para uma transformação efetiva. 

À luz de Lacan, Badiou refuta o realismo pela máxima de que o real não é redutível ao simbólico e a ideia entra como instrumento imaginário de mediação entre ambas as instâncias, sendo a ideia comunista "a operação imaginária pela qual uma subjetivação individual projeta um fragmento de real político na narração simbólica de uma História" [p.136-7].  Uma ideologia, uma ciência das ideias, torna-se elemento fundamental par uma prática revolucionária, uma vez que a prática apenas autoevidencia uma verdade militante, mas não a constitui.

Eis aí a crítica da aclamação dos líderes na forma de crítica ao culto à personalidade, o que consiste talvez em uma das objeções mais originais já feitas a Nikita e sua condenação ao stalinismo - que, na visão de Badiou, deveria ser combatido no campo simbólico por suas práticas terroristas e não por fora dele, em nome de um dito realismo que apenas serviu ao conservadores dali por diante. Posição que, no entanto, não significa qualquer adesão de Badiou ao stalinismo, mas sim da maneira como ele foi abjurado, uma vez que ele representava um fracasso justamente pela sua forma de intervenção rudimentar - enquanto em HC o fracasso de Mao é político, o de Stalin é absoluto, a ideia stalinista não é fecunda, ao contrário da de Mao. 

Do ponto de vista teórico, trata-se de uma argumentação muitíssimo bem construída, mas sempre é possível fazer uma objeção de princípios. A primeira e mais importante é que o leninismo-lacaniano de Badiou, a exemplo do de Zizek, insiste  que o real é insibolizável, cujo efeito prático leva, na discussão política, a representar o realismo como uma construção impossível e não-fecunda a serviço do mando (não faça, não é real): o entrave do socialismo real está no realismo, o abandono dos símbolos gerou essa esterilização e o movimento comunista deu com os burros n'água no século 20º justamente por uma paixão pelo real; em sentido contrário, podemos perguntar o qual o problema com o real e por que tanta indiferença diante dele? 

Colocar o fracasso soviético na conta do(s) realismo(s) é uma aposta arricada, uma vez que o comunismo aparece como ideia também na União Soviética, basta lembrar do próprio hino soviético de 1944, sob Stalin, e a "победе бессмертных идей коммунизмаo" [vitória das ideias imortais do comunismo] que ele anunciava em seu refrão. Ainda que nos refiramos à arte russa controlada pelo Estado, e usada para fechar vazio resultante da eliminação das vanguardas revolucionárias, como "realismo socialista" até que ponto aquela realidade correspondia ao comum da vida soviética e não seria, ela mesmo, a representação iconográfica - portanto, gloriosa - da vida soviética ideal como o Estado vermelho gostava - e precisava - representar? Ao refutar um Kandinsky ou um Maiakovsky em prol da arte dura e panfletária de elogio ao regime, não estaria o Estado soviético exercendo o teste da cópia e do simulacro, uma operação perfeitamente platônica?

Não existe, portanto, tanta novidade na tese de Badiou. O problema está mal colocado porque assumimos como dogma algo perfeitamente questionável: falamos muito de símbolos e pouco da libido e, também, apenas pelo fato do real ser usado como elemento cerceador da prática dentro de um discurso ideológico - e para que mais serviria a ideologia? - temos de abandoná-lo e advogar que será pela via ideal, e da ideologia? O que eu quero dizer é que a articulação entre real e simbólico precisa ser repensada para além dessa interpretação de Lacan. Do contrário podemos acabar confundindo uma ficção com uma mentira - do ponto de vista extramoral, naturalmente. 

De repente, uma narrativa como a que Badiou propõe da Revolução Cultural chinesa, em seu recorte, pode terminar por eliminar partes que interessam na compreensão de seu fracasso e que nos serviriam para evitar outro do mesmo quilate: temos de nos prender tanto assim aos símbolos de uma narrativa e torná-los mais importantes do que os resultados empíricos de sua realização prática? Dizer que cultural, em chinês, é também "relativo à civilização" [p. 77] o que poderia justificar, no plano das ideias, a abertura para as perseguições e violência na sua execução é um equívoco, inclusive pela própria formação da palavra em mandarim.

Cultura diz-se wénhuà [文化] (do texto), enquanto civilização é wénmíng [文明] (que decorre do texto), isto é, não resta muitas dúvidas em mandarim que o segundo trata-se de um produto do primeiro, e que etimologicamente, os chineses não têm o problema que nós ocidentais temos em diferenciar os dois termos (que são passíveis de confusão sim no nosso português ou no francês de Badiou, embora à base da teoria, tenhamos resolvido essa indeterminação terminológica, sendo o primeiro o material materializante e o outro o material materializado). E é Wénhuà Dàgémìng [ 文化大革命] como os chineses se referem à  Revolução Cultural.

A tese do real insimbolizável pode esconder uma versão redutora dessa instância, destinada a manter teoria e prática irremediavelmente cindidos como na filosofia clássica, com o resultado prático de ignorar todo o virtuosismo e a exuberância presente no sensível da experiência humana; ideias são chaves formidáveis para o conhecimento, mas são abstrações e, portanto, terrivelmente anestésicas e anestesiantes se não operadas na imanência: e a distinção entre a ficção e a mentira - o não verdadeiro intencionalmente narrado com fins estratégicos - é precisamente sensível e empírica: sem ela podemos confundir o que é próprio da narrativa histórica e o que lhe é desvio destinado a servir ao poder - como a história das grandes personalidades e da outorga, em caráter benemerente, do tirano aos súditos como forma de apagar a memória da resistência (e toda memória é afetiva, convenhamos).

Se a tirania, como sabemos desde Spinoza, se exerce por meio de um jogo de imagens - pela ideologia, como se dirá mais adiante -, talvez fosse o caso de combatê-la dentro do seu campo, com sua linguagem, como propõe Badiou, mas será que isso não é um erro semelhante ao que ele próprio insistiu por tanto anos, ao advogar em favor da forma Partido? Ou será que não seria o caso de assumirmos um real e uma realismo enquanto elementos constitutivos, abertos à experiência sensível e afetiva? Seja como for, só é possível narrar de forma a dominar por meio das abstrações e formas vazias organizadas, e  não há forma melhor de fazer isso do que pela ideologia. E mesmo que a intenção seja inserir na ficção histórica o real da política, até que ponto isso precisa ser articulado por meio de imagens?

São muitas questões, evidentemente, mas elas expõem a fragilidade de certos itens colocados por Badiou. Se o que vemos não é o mundo ele mesmo, mas sim a sua projeção imagética, isso não quer dizer que não haja distinção entre a imagem, a miragem e a ilusão produzida pelo ilusionista. Para além da crítica obtusa dos novos filósofos ao culto à personalidade, é preciso distinguir que a adoração de líderes como Gandhi ou Mandela - o que torna seu nome a consubstancialização da multidão de militantes, insurretos e combatentes anônimos que lutaram por suas causas - é diferente da glorificação, por obra do Estado-Igreja, dos nomes próprios de Mao ou Stalin. Diferenciar isso não é fazer a cama para conservadores deitarem, longe disso.

Desde Shakespeare - de Julio Cesar, precisamente - sabemos que todo político tradicional é antes de tudo ele mesmo e sua imagem, o que não quer dizer que haja formas e formas de construção dela - algumas, totalmente tirânicas e o fascismo, bem como o socialismo autoritário também, estão aí para nos provar.

Mesmo nos casos de um Gandhi ou de um Mandela, a subsunção desse militante a um nome próprio glorioso "como prova de que ele pode contrariar sua finitude" [p.142] é uma questão falsa: a potência dele é justamente seu anonimato circunstancial, o que não permite que seja objeto de uma ordem pela impossibilidade de ser identificado, além de que, ser engolfado por esse nome próprio - ou a necessidade de sê-lo - alude ao salvacionismo tirânico tradicional quando a insuficiência perfeitamente humana - sua mortalidade ou limitações práticas - é apresentada como um problema que pode ser resolvida pela submissão ao eterno ou eternizante. Preciso viver eternamente, mas não posso, não é precisamente a grande armadilha da angústia heideggeriana?

Não seria justamente o problema da democracia representativa o fato dela dizer, o tempo todo, que somos incapazes de realizar algo que dizem que temos - ou poderíamos fazer não fôssemos tão pouco - e que, por isso, precisamos eleger pre [glorificar] um candidato [salvador]? Por que, em vez de contrariar nossa finitude fazendo-nos representar no Líder, não a assumimos como forma de a tornar desimportante diante da intensidade do nosso ser: não vivo eternamente em quantidade, mas isso não importa porque não preciso viver para sempre.

De fato, colocar o comunismo como ideia e como hipótese de um horizonte de eventos talvez explique sua defesa da suposta potência da esperança, como visto em São Paulo, mas isso deixa uma questão em aberto, pois precisamos lembrar que Badiou, com razão, aponta na presente obra o financismo como parte constituinte do capitalismo vigente e não como um elemento que lhe é anômalo - a conta que fica sem fechar é a seguinte: acaso os banqueiros conseguem exercer seu mando apenas pelo temor que provocam ou será que a esperança não está ali como parte da dupla-hélice da economia da dívida, aliás, antes mesmo do temor da sanção pela inadimplência? Que potência teria a esperança senão a de deslocar o centro de gravidade do nosso ser para uma promessa de futuro, tirando de nós a única coisa que temos, isto é, o nosso aqui-agora.

Um comunismo é o exercício prático do comum - e este habita o aqui-agora -, ele não é uma ideia ou uma hipótese, ele é real e sua redução ao ideal gera o perigo do seu desvinculamento perpétuo da realidade, cujo ônus prático é a insensbilidade pelas consequências práticas de uma ação. Isso não tem nada ver com vitimismos e auto-indulgências, mas sim com empatia: ideias aceitam tudo, a prática e a experiência não. Há uma série de outras questões, contudo, o caminho da emancipação nos parece não um "podemos, logo devemos" e sim um dizem que não devemos fazer, mas podemos.



BADIOU, Alain. A Hipótese Comunista. Trad. Mariana Echalar, ed. Boitempo, São Paulo, 2012 [2008], 152 páginas.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Mensalão: O Bom e Velho Espetáculo do Auto-de-Fé

Savonarola (Bartolemeo): o moralista anti-maquiavélico
A última semana foi marcada pelo estardalhaço midiático em relação ao início do julgamento do mensalão, os tribunais da razão convertidos em telenovela e apresentada em capítulos. Esta semana que se inicia tem mais. De um lado, uma oposição pouco crível pedindo a condenação por algo no qual ela também está envolvido, do outro, uma situação que passou as últimas eleições incólume falando em julgamento "técnico" e "justo", mas não político. Bem...

Para ser bastante direto, no que toca ao mensalão, este blog, como não poderia ser diferente, não irá rufar tambores pela condenação de quem quer seja no julgamento do STF, seja o petista José Dirceu ou o tucano Eduardo Azeredo - e de qualquer um outro suposto envolvido - porque, ao contrário de ambos, não é punitivista e também porque não crê em saídas penais (que costumam ser entradas em becos sem saída infernais), muito menos para problemas políticos, que se resolvem com a devida reforma. 

Não serão os tribunais da razão que darão resolução ao problema, ainda mais diante de um nexo de coisas tão confuso, no qual a decisão "justa" seria a abolição do sistema pelo próprio sistema como em uma autodestruição. Mas, ainda assim, nos resta tecer alguns comentários sobre o cenário geral.

Se a filosofia aparece, desde tempos imemoráveis, sob as mais diversas máscaras concebíveis, é certo que com a doxa - a glória, a aclamação ou a mera opinião - também não é muito diferente: no Brasil de hoje, apesar das conquistas todas, ela vem na forma de uma curiosa telenovelização do debate político, o que se espraia da mídia tradicional até as redes sociais. Da direita mais anti-democrática à intelectualidade de esquerda.

É dessa conversão de tudo em dramalhão, do estímulo à má consciência e da produção constante de superstições que se faz a cortina de fumaça do que realmente interessa: a questão social, a urgência da crise ambiental a problemática da política. Isso ajuda a explicar toda a história do mensalão, cuja incessante e pouco desinteressada repetição ocupa boa parte do dito noticiário político nos últimos anos.

A mídia de massa tradicional, presa a interesses que vão do comezinho sensacionalista - que demanda vilões, mocinhos etc - até interesses políticos e econômicos maiores - que importam na sua própria sobrevivência - assume as rédeas do processo, cria histórias para justificar suas teses e condena previamente quem ela deseja. Para completar o quadro, é preciso lembrar que se setores da nossa política vivem de certo idealismo e purismo, outros são suficientemente espertos para manipularem isso.

De repente, toda a disfuncionalidade histórica do Congresso Nacional é narrada de modo a parecer que ela foi causada por um governo em específico, em um fantasioso esquema de compra por votos - o que cai por terra rapidamente quando as investigações avançam e chegam até um influente político da oposição. Os anos sequer pouparam um outro senador, há pouco alçado a paladino da moral, mas rapidamente desmascarado (e mesmo seus aliados mais íntimos se declaram traídos, afinal, como ele pode ter nos enganado por tanto tempo?)

O sistema político brasileiro funciona mal, os partidos estão distantes da sociedade, a maioria deles sequer existe realmente, e o Legislativo é eleito dentro de um sistema ruim. Não obstante o fato da problemática histórica do Estado. O Congresso Nacional, que consegue piorar a cada legislatura, vive da defesa de seus lobbies, configurando-se em uma constante ameaça de desgoverno para o país: seja pelo seu modus operandi ou pela chantagem que exerce. 

E desgoverno é diferente de antigoverno, é uma catástrofe só pode gerar alento em mentes niilistas suficientemente bem colocadas, ou iludidas, para não naufragarem, ou acharem que não vão junto. O que se passa na zona cinzenta entre o executivo e o legislativo importa por completo tanto quanto não importa. É uma zona de guerra, que não raro é desenhada como zona de paz conforme o sabor do momento (e do adversário).

Fica a lição, para todas as partes envolvidas, do velho Savonarola, o moralista militante e antítese de Maquiavel que tentou purgar a Itália renascentista da corrupção como se ela fosse uma entidade transcendental e onipotente, mas terminou provando de seu próprio veneno e morreu queimado nas mesmas fogueiras que tanto incitou contra os outros - e isso vale para a esquerda que hoje queda vítima desse ardil, mas que alimentou durante anos essa perspectiva moralista de política, quanto para a oposição oportunista que se regojizou com a presente situação, mas que morre pela língua de uma forma tão rápida que é digna de piada.

O que está em colapso aqui não é este ou aquele partido, tampouco as "instituições" - como se sua funcionalidade não compreendesse uma disfuncionalidade permanente, uma doença crônica -, mas a perspectiva moral(ista) de pensar e de fazer política e, sobretudo, como a glória sem limites, seja das fogueiras dos autos-de-fé ou da mídia, produz uma luminosidade tão intensa que nos deixa cegos. O Brasil está aí, ao lume, e, curiosamente ou não, os pobres que ignoraram tudo isso até agora, são aqueles que continuam a ver a nudez do poder como a sua roupa definitiva.