segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Eleilções 2014: Levy e a Maldade Banal da Política Brasileira

Angelus Novus_ Paul Klee
Levy Fidelix, o eterno candidato nanico do aerotrem, foi o destaque do debate entre presidenciáveis de ontem. Por si só, tal fato já seria grave. No entanto, a maneira como isso  aconteceu tornou tudo mais acintoso: ao ser perguntado pela candidata do PSOL, Luciana Genro, sobre direitos para a comunidade LGBTT, ele teve em um surto de homofobia no qual equiparou homossexuais a pedófilos, atacou o casamento gay e falou que "nós" -- as pessoas de bem? -- deveriam ir pra cima "dessa minoria" -- isso tudo num país no qual os crimes de ódio contra homossexuais, travestis e transsexuais motivados simplesmente por sua orientação sexual, vestimenta ou identidade de gênero ocorrem, cada vez mais, aos montes.

Pior ainda, Luciana não respondeu à altura, tampouco os outros candidatos se importaram em  usar de seu tempo para repreendê-lo. Passou batido -- mas não pelas redes sociais, nas quais a hashtag #LevyVoceENojento é, nesta manhã de segunda-feira, o assunto mais abordado no Brasil pelo Twitter, nem pela imprensa internacional, como o Guardian da Inglaterra não nos deixa mentir

Enfim, no penúltimo debate antes da votação do primeiro turno, a pior eleição presidencial da (breve) história (quase) democrática brasileira encontrou seu momento emblemático. Não, não poderia ser pior, mas dificilmente seria mais ilustrativo. Não que as coisas tenham ficado ruins agora, ao contrário. 1989, por exemplo, foi nossa primeira e melhor eleição, dali em diante a situação só piorou. Mas essa piora talvez tenha a ver com a maneira como aquele eleição terminou.

Cheia de gigantes da política brasileira -- e muitos campeões da luta por liberdade e justiça social --, aquele pleito foi vencido pelo pior, mais despreparado só que mais bem financiado candidato, Fernando Collor. A história todos conhecem: dali em poucos anos, Collor foi destronado, mas o mal que ele representa jamais foi revertido. As reformas privatistas continuaram, aceleradas com mais competência por FHC e depois mitigadas com Lula e Dilma; as eleições, dali em diante, se tornaram caríssimos espetáculos de propaganda, norteados por debates superficiais e recuados.

FHC e Lula, embora tenham sido eleitos já nesse esquema, superavam em parte o processo pelo peso político de ambos. No pós-Lula, a crise ficou mais patente. A maneira como o debate não tem consistência, não é apresentado claramente e se mantém envergonhado nas entrelinhas é um espectro que envolve todos os principais candidatos. Os pretendentes folclóricos, hoje, se bandearam para jogar com frases vazias de extrema-direita. Os pequenos candidatos de esquerda, derrapam.

A distância registrada nos últimos anos entre o sistema político e as demandas é imenso. As convulsões de 2013 já deixaram isso bastante claro. Depois, se dizia: que protestem nas urnas. Mas como? As eleições, este breve momento -- o entretempo entre os mandos, onde o poder real é anomicamente mitigado --, se esvaem normalizados, esvaziados diante da irracionalidade fascista. Só havia uma saída: xingar Levy, dizer-lhe um simples "cala boca, idiota" (sim, Lucas, você tem razão). Nada aconteceu, contudo.

É fato que alguma reação vá acontecer agora, para além da indignação da rede. E é bom que ocorra. Mas do que isso se trata é outra coisa: essa perplexidade letárgica que, nesse caso, se manifestou na normalização da homofobia como "opinião" -- ainda que "folclórica" --, o que se estende para uma série de outras condutas. Sim, foi um "instante" que passou e deixou, pelo menos uma parte de nós, de queixo caído. Mas um instante, e nada mais, é o necessário para matar uma pessoa ou o mundo todo.

É a partir dessa naturalização (lenta, gradual...) do absurdo que se instaura o pior dos mundos. Devagar ocorre, mas quando elas vêm, chegam rápido como um aerotrem. É preciso, como Benjamin, aprender com o anjo da História: talvez de um jeito menos depressivo, mas sem deixar de ser trágico.



segunda-feira, 22 de setembro de 2014

O Drama Barroco de Haddad: Por que não pôr fim à Operação Delegada?

O Enterro de Cristo -- Roldán
Um camelô morreu atrapalhando o trânsito. No meio do caminho da democracia, havia o corpo morto de um camelô. À bala. Tiro certeiro na cabeça, bem no meio da avenida. Poderia ser eu (e era, por que não?). A rebelião que se instaurou, um pequeno levante, ao mesmo tempo em que é marcado pela névoa de gás (lacrimogêneo, com se precisássemos disso para chorar) que sobe, faz descer, por paradoxo, outras cortinas de fumaça.

Uma pausa, um corte, uma narrativa.

Fernando Haddad, em seu breve governo, se viu em meio ao epicentro do Junho de 2014, ousou políticas inovadoras, esteve no meio de um debate para o bem e para mal. O fato é que sua aprovação -- alta para os padrões paulistanos nos cem primeiros dias -- caiu como ocorreu com todas as autoridades e instituições na esteira das Jornadas de Junho, mas ela não registrou nenhuma recuperação ao contrário do que aconteceu com a presidenta, governadores e demais prefeitos.

Há poucos dias, contudo, a popularidade do prefeito registrou sua primeira recuperação em mais de um ano, animada pelo sucesso da política pró-ciclofaixas: a ampla adesão às faixas de bicicletas somada às faixas de ônibus seriam a "resposta definitiva" no campo da mobilidade e do transporte urbano, o rompimento da barreira que impedira o prefeito de melhorar seus índices. São Paulo, terra do automóvel como elemento de promoção moral e dignificação, se tornou como um delírio anarquista do Provos: autônoma e alegremente pedalante.

Por outro lado, dois eventos bombásticos -- literalmente -- tomaram as ruas e os noticiários: a desocupação do prédio de um antigo Hotel no Centro e a execução de um ambulante na Lapa. Nos dois casos, a polícia militar agiu com sua habitual truculência e despreparo, aumentando um confusão que ela deveria dirimir. A cidade virou uma praça de guerra.

No primeiro caso, a prefeitura não mediou como deveria. Embora, de fato, a reforma do prédio fosse demasiadamente cara, como apurou a prefeitura, com a ordem judicial da reintegração de posse, é de se esperar que a retirada de quase mil pessoas, com presença de contingentes policiais, seria problemática. Não havia um plano de contingência, a truculência veio e um massacre policial durou quase um dia todo no Centro.

No segundo, a polícia militar, agindo sob os auspício da Operação Delegada, um convênio aberrativo entre Prefeitura e Polícia Militar criado na gestão Kassab, acabou executando um camelô de forma vil e covarde. A missão que resultou na execução consistia no exercício, pela PM, de função de repressão ao comércio ambulante.

Acerca do primeiro caso, Haddad acenou com a tese de que os sem-teto foram usados por oportunistas. Sobre o segundo, que a execução foi um caso isolado. É fato que os sem-teto não são oportunistas, ele não têm oportunidades ou opções -- e mesmo que se considere a ação de algum agente provocador, possivelmente não eram os sem-teto ou os seus dirigentes os maiores interessados. No segundo caso, mortes de pobres pelas mãos da polícia não é algo ocasional -- nem pelas mãos do próprio policial, que já respondia a processo por homicídio.

Haddad, com muito pouco, faz e ousa bastante. É um prefeito consideravelmente melhor do que a média -- e um dos melhores que São Paulo já teve. Mas não consegue lidar com crises, porque as crises são imprevisíveis, não cabem em planos ou planejamentos -- nem são solúveis por qualquer política pública, mas por um processo político, um método político. 

Se a gestão não aceitar isso, sobretudo num cenário de profundas crises -- e, pior, de alta complexidade e custos (não só financeiros) para a resolução dos problemas --, fatalmente se pegará frequentemente apostando suas fichas na repressão policial -- o que, em matéria de Brasil, é uma escalada para o desastre.

A ideia de Haddad como seu duplo, o prefeito de esquerda corajoso e competente que anima a todos e, ao mesmo tempo, um tecnocrata frio e insensível toma conta do imaginário e dos debates. O fato é que a aparente quimera -- dizer que Haddad são os dois ao mesmo tempo seria como falar em "bola quadrada" -- esconde a maneira como ele se ajusta: a exemplo da social-democracia alemã, ele põe a concretude das relações materiais abaixo do Plano.

A realidade não se verga ao ideal, salvo à força. O que põe qualquer político de esquerda numa encruzilhada ética (em um sentido). O nazismo não ascendeu na Alemanha por pura ignorância, ou necessidade, daquele povo, mas em parte porque, antes, a social-democracia normalizou determinadas práticas como a suspensão de direitos que, não raro, levaram à repressão de trabalhadores.  A esquerda se colocou numa zona cinzenta onde todos pareciam a "mesma coisa", o que naturalizou seus próprios algozes.

Muitas questões podem ser ponderadas, mas não resta dúvida que passou da hora de pensar em qualquer método cujo plano B seja a polícia. Abolir a Operação Delegada, como se aboliu sem maiores prejuízos o "Nova Luz" de Kassab, é um primeiro passo. Aceitar que as graves demandas da metrópole demandam conselhos de interlocução e negociação é outro ponto. Não é possível fazer política habitacional sem considerar as partes envolvidas. Nem que se aja corretamente na resolução de problemas, em determinados casos, os problemas não deixarão de ocorrer.

A política existe para resolver pacificamente os problemas comuns. A ideia estanque de ordem pública podem levar, aí sim, a uma real ameaça à ordem pública igualmente protagonizada pelas próprias autoridades que deveriam media-la. Haddad precisa, o quanto antes, se desvencilhar disso, senão restará indiferenciado em relação à massa conservadora com a qual concorre.

Foram as bicicletas, e não a overdose policialesca, que colocou Haddad de volta ao jogo. Será a overdose de polícia que poderá lhe criar problemas novamente. É bastante simples.




sexta-feira, 19 de setembro de 2014

O Enigma Político de São Paulo: Não Existe Amor na Avenida São João

São Paulo vive um momento de emergência. A violência policial registra uma escalada terrível, mas o mais assustador é que isso é consequência, ou melhor, a resposta absurda dada pela classe política local para crises sociais bastante agudas. A água já começa a faltar numa crise hídrica que, longe de ser mero acaso da natureza, é efeito de uma certa política errada para o setor. As universidades ardem. O trânsito grassa. Não, não está fácil e muito ainda poderia se dizer nesta noite insone de quase primavera.

Mas antes, um corte narrativo: a capital dos paulistas frequentemente foi bem retratada na música. Duas em especial, Sampa de Caetano Veloso e Não Existe Amor em SP de Criolo, eternizam certos momentos da cidade. Ambas são, pois, pura arte em um sentido deleuziano. Sampa é a São Paulo do final dos anos 1970, uma época absurda, mas de uma esperança justificada como raramente se viu nos momentos históricos em que a esperança veio à tona; Não Existe Amor em SP, por seu turno, é uma das raras elaborações esteticamente exuberantes do nosso tempo, uma poesia lindíssima sobre algo feio -- é uma precisa narração da São Paulo de hoje, um verdadeiro triunfo estético, pois é algo belo sobre um conteúdo trágico e grotesco.

Existem contiguidades narrativas tanto na letra de uma quanto da outra. São Paulo continua sendo São Paulo, é uma terra de feiura bela, mas o que ocorre agora é um momento em si feio. São Paulo sempre foi cheia de emoção na sua frieza, mas hoje há um vazio que cresce. Não Existe Amor em SP não nega as premissas de Sampa, mas as atualiza na forma de um soco no estômago com violino ao fundo. Não como não perceber na profundidade das duas letras os dois momentos, os dois movimentos; alguma coisa acontecia no nosso coração em 1978, quando cruzávamos a Avenida Ipiranga com a São João, mas hoje isso também não deixa de acontecer, só que não é mais de emoção que falamos: não há mais amor na Avenida São João, há bombas. 

Há dois dias, o prédio do Hotel Aquarius, há dez anos abandonado e ocupado há poucos meses pelo movimento de moradia, foi desocupado violentamente pela polícia, com uma ordem judicial absurda. O confronto se alastrou pelo centro da cidade, a polícia foi violentíssima. O confronto começou e recomeçou várias vezes. Uma catástrofe bíblica. Ontem, um camelô foi executado a sangue frio por um policial na Lapa, gerando uma revolta massiva que parou o bairro, conhecido centro de comércio popular da zona oeste da capital paulista.

A política de repressão, mantida às custas da mobilização de uma tropa mal treinada, mal remunerada e maltratada serve como substitutivo da política. Ou da impossibilidade das políticas locais, tal como são concebidas, de responderem as demandas políticas e sociais. A classe política mais mesquinha, limitada e perversa desde a república velha dá as caras, ela é mortal. O país não vai bem, São Paulo, acelerada à velocidade da luz, tampouco. Há várias São Paulos, várias possibilidades de experimentar e pertencer aqui, como qualquer outra capital. A crise de São Paulo é a crise do mundo e do país, a crise do nosso tempo, nas condições históricas e geográficas determinadas daqui: e dói, nossa crise é mais perturbadora mentalmente do que, talvez, crises mais violentas fisicamente como a do Rio.

Nesse contexto, o governador do estado, Geraldo Alckmin, está prestes a se reeleger em primeiro turno. O prefeito da capital, Fernando Haddad, no entanto, está com a popularidade bastante baixa. É de se salientar que a popularidade do governador encontra seu ponto mais baixo na capital. 

Alckmin governa com punho de ferro, a partir de currais eleitorais no interior e na falta de oposição, repetindo no paradoxo (neo)liberal: estado pequeno para fazer reformas sociais, mas incrivelmente grande na hora de reprimir os resultados óbvios da ausência dessas políticas. Mas sua capacidade pairar acima das discussões, deslizando com um réptil, é única.

Haddad, por seu turno, realizou políticas importantes, fez o novo plano diretor, colocou ciclofaixas e faixas exclusivas de ônibus para o horror dos carro-dependentes, mas erra fragorosamente ao relativizar as ações de uma polícia militar que sequer comanda. E repetiu isso agora, em relação ao caso da Avenida São João, depois de momentos ruins ano passado, quando não condenou com dureza a repressão em Junho -- ao contrário, mas pagou e paga por isso. A não articulação para dar conta das crises pontuais que vão emergir será fatal, a via policial é um desastre anunciado -- que, em seu caso, tem um peso negativo redobrado, uma vez que sua base de apoio (felizmente) é menos tolerante a isso do que a do governador. 

Alckmin é popular e Haddad não, pois um agrada as expectativas de seu eleitor e o outro não. Ou melhor, Haddad desagrada em temas sensíveis demais e em ocasiões inoportunas, apesar de políticas públicas reconhecidas -- que, no caso das ciclofaixas ou da faixas de ônibus chegaram a registrar alta adesão, ambas coincidentemente de 88%, sendo políticas de esquerda. Mas o fato é que na metrópole as contradições emergem e se fazem realidade. No caso de São Paulo capital, mais ainda. E para Alckmin, embora seja um item importante, a metrópole e suas agruras é apenas parte de seu ofício.

A situação, evidentemente, é grave. Na cidade do mais universalista dos santos, o evento ocorrido na avenida que leva o nome do mais apocalíptico deles é sintomática. A situação é uma ascendente, na qual os movimentos se veem obrigados pelas condições a se lançarem à luta. E as condições se agravam: os bares cheios de almas tão vazias de Criolo, na prática, são são as tantas habitações vazias para tantas almas deixadas ao relento. O momento exige menos do que "políticas públicas" no sentido clássico e mais um processo político, algo que envolva e dê significado. Não se espante como apesar dos pesares Alckmin se reelegerá: como dizia Benjamin, onde há fascismo é porque uma revolução fracassou -- e acrescentemos, havia revolução, ou propensão à revolução, onde a situação era emergencial.




terça-feira, 16 de setembro de 2014

O Porvir do Brasil II: A Veja, Marina e o Extremismo de Centro

Foto tirada daqui
A capa da revista Veja desta semana ilustra uma cena curiosa: Marina Silva seria vítima de uma campanha caluniosa, de uma fúria nunca antes vista numa corrida eleitoral. Mas o fato é que isso ilustra, antes de tudo, o próprio argumento da candidata face às críticas que ela tem sofrido (não à toa, a capa foi exibida no próprio perfil do facebook de sua campanha); se, por um lado, Marina passou a ser criticada porque apareceu com força nas pesquisas, por outro lado, sua resposta vem em um momento que ela, depois de um crescimento vertiginoso, está a perder terreno para sua principal rival, e postulante à reeleição, Dilma Rousseff. Nenhum dos dois movimentos é estranho à política, mas só é estranho que Marina o acuse em um momento no qual flutue para pior.

Até agora, nenhuma acusação expôs a vida pessoal de Marina como, verdade seja dita, ocorreu com Lula na derrota para Collor: até uma filha concebida fora do casamento do candidato, e futuro presidente, foi exposta -- Collor e FHC tiveram casos parecidos em suas vidas privadas, mas isso jamais foi utilizados contra eles nem pelos adversários (incluso aí o PT), tampouco pela mídia grande. No que toca às eleições em curso, como lembrou o filósofo Renato Janine Ribeiro, Aécio e Dilma estão expostos a críticas inclementes há tempos, por que então Marina, que é tão candidata quanto eles, estaria isenta dessas cobranças e questionamentos? Ou por que ela, por exemplo, comparou o PT com o "chavismo"?

Se essa última flutuação eleitoral se manterá ou se Marina vai se recuperar, não se sabe. O que interessa é que existe um fenômeno importante de fundo. Marina, ao cometer essa pequena contradição -- criticar o adversário por ele ter lhe criticado como se isso, em si, fosse um problema -- revela bastante disso. É a exposição de algo latente nos últimos anos que se popularizou pela crítica ao "Fla x Flu" político: o antagonismo recriminado uma vez que emerge no palco do debate público brasileiro; ele acaba posto em seu devido lugar como se fosse não a alma da política, mas uma deformação sua. É o velho "política, futebol e religião não se discute".

Nada novo sob o Sol. Se é conhecido o fato que alguns países sofreram com regimes ditatoriais de direita, outros com tiranias de esquerda -- outros de ambas. No caso brasileiro, ironicamente, apesar de histórico de autoritarismo sempre conservador (mesmo o varguismo, apesar das idas e vindas que a historiografia dá), sempre houve um fundo cordialista, uma moderação em relação ao intolerável. Alguns dizem que isso evitou a ocorrência de uma ditadura mais cruel, no entanto, o fato é que esse traço cultural jamais evitou qualquer golpe nestes brasis de meu deus, muito embora atravanque a democracia brasileira -- que resta como uma promessa não cumprida.

Sim, o mais agudo caso de extremismo político brasileiro -- como a atual campanha para as eleições gerais insiste em nos provar -- não está à direita ou à esquerda, mas ao centro. Vivemos às voltas com o fantasma do extremismo de centro. E não estou falando do PMDB apenas. Há uma série de partidos que se colocam ali pelo meio, prontos a negociar com qualquer um -- e de qualquer forma -- além de outros que, embora programáticos, não se cansam de atrair o debate político, e as práticas, para cima do muro.

Nesse sentido, o discurso de Marina aparece polarizando contra a polaridade entre PSDB e PT, mas se apresenta, curiosamente, como uma não-polaridade: ele seria síntese já dada dos dois e, também, critério de seleção dos "melhores" dos "dois lados" que seriam chamados a governar -- pronto a desmobilizar a polaridade. Curiosamente, um dos grandes problemas da polaridade entre PT e PSDB é ela ter enfraquecido, se reduzindo ao centro e ao vazio dos grandes consensos. 

Pior ainda, que PT e PSDB, uma vez no poder, tenham perdido a noção do simbólico, tendo feito alianças dignas de dar um nó na cabeça de qualquer um. FHC se aliou com ACM (e também com Sarney!) porque, de fato, precisava, mas o fez de modo que terminou numa camisa-de-força; Lula, mais inteligente, soube tirar ganhos práticos de certas alianças, mas fez outras nas quais nada ganhou (nem poderia) e apenas desmobilizou seus próprios militantes e apoiadores, desconsiderando a potência do simbólico em produzir realidade (vide Maluf e Collor). Dilma lida pior com as alianças que herdou do que seu mestre e antecessor. Marina, por seu turno, quer internalizar esse aliancismo e não esconde isso.

Nos finalmente, é fato que nunca houve Fla x Flu na política brasileira contemporânea, no sentido de um antagonismo duro, inclusive porque a polaridade entre PT e PSDB. Seja porque o antagonismo do futebol, que é uma simulação da guerra, não é da mesma ordem de qualquer antagonismo político -- nem mesmo de uma simulação da guerra civil -- ou, também, porque não houve uma disputa política dessa monta. A lógica por trás da crítica do Fla x Flu, essa sim, leva, na prática, a um trajetória de esvaziamento pela eliminação da divergência e do dissenso. 

E a dissonância entre a premissa plebeia do "política não se discute" (ou o elitista "não façamos disso um Fla x Flu") e o "são todos farinha do mesmo saco" explica o mal-estar indeterminado (e imenso) sob o qual vivemos: e não é sobre "inconsciência" que isso se trata, mas da força gigante que cerceia (pela esperteza ou pela violência) a discussão, mas que não consegue apagar o desgosto com o resultado disso.

Embora limitada sob vários aspectos, a tese do peemedebismo de Marcos Nobre faz sentido: no fundo, há uma (des)articulação cordialista que embaralha a capacidade transformadora, ou de reles resposta às demandas usuais, da política brasileira. Eis o nosso problema. O insight de Nobre funciona porque ele denuncia a ausência de tensões (e, por que não, de paixões) como o nó górdio. 

Marina não pretende mandar o PMDB para a oposição, mas dividi-lo e conquista-lo -- trazendo para junto o PMDB que lhe interessa --, só que o fundamento de sua política é se colocar ao centro do centro e governar. Assim, a ideia de uma impossível coexistência entre transgênicos e não-transgênicos ou de uma "elite" como rótulo genérico para os "melhores" -- sem considerar as diferenças e antagonismos entre, vamos supor, seringueiros e banqueiros -- se tornam possíveis. O mesmo pode se dizer de independência do Banco Central e se defender sob a alegação de que o problema está em quem critica.

Dilma, durante os últimos quatro anos, buscou governar a economia pela técnica e, com a outra mão, trazer para o campo da média ponderada -- inclusive associada à ideia de "mídia técnica", na verdade, a mídia tradicional -- a discussão política sobre no campo dos direitos e liberdades individuais. Ela não ousou criar tendência, apenas contornar o que era difícil e se situar num ponto intermediário entre o desejado e o absurdo. Hoje, em campanha, descobriu que só isso não basta. E bastará menos ainda num eventual segundo mandato.

A ameaça de uma radicalização, como tomada de uma posição inequívoca e direta, é uma sombra que nos acompanha há tempos, mas ela não é real: é esse cordialismo de fundo que reduz e nivela o nosso maior problema. E não se trata de um problema moral ou transcendental, mas uma construção com fundo lastro material, estruturada primeiro como prudência prática diante das contingências das agruras da vida colonial e, depois, como armadilha do poder. O cordialismo nasce da necessidade de contornar o inconfrontável, mas se torna depois vício e até arte de governo flexível, inteligente e moderníssima mesmo enquanto arcaísmo. A opção pela democracia, ou melhor para o devir-comum da democracia, implica em mais e melhores polêmicas.





sexta-feira, 5 de setembro de 2014

O Porvir do Brasil I: A Economia, Banco Central e o Estatuto do Comum

Marina Silva propôs conceder, caso eleita, "autonomia formal em lei" ou "independência" para o Banco Central. Ainda que isso dependa do Congresso Nacional e que, ainda por cima, Marina não tenha explicado muito bem como seria essa mudança, o fato é que a questão acirrou o debate político no que toca à economia:  Dilma saiu da defensiva e se colocou contra no debate do SBT. O que nos interessa, no entanto, para além da polêmica eleitoral, é justamente o que há por trás da proposta desregulamentadora de Marina e, também, da regulamentação do desenvolvimentismo: para além, inclusive, da dialética público x privado, temos de debater as implicações dessa polêmica -- de fundo e forma estatal -- sobre a vida, criação e riqueza comum.

O Lulismo forçou uma virada nunca antes imaginada. Mesmo mantendo a indexação econômica para o capital -- a correção monetária --, ele criou a correção monetária inversa, no campo de política de valorização do salário mínimo, forçou a formalização do emprego, buscou estimular a criação de mais empregos com melhores salários. Criou programas sociais que geravam renda em contraste com o rentismo do capital. A economia passou a se orientar desde baixo como diria Bruno Cava ao analisar a potência do estímulo ao consumo do proletariado, fato desapercebido pelas esquerdas que viam no consumo algo necessariamente ruim. 

O estímulo ao consumo [da multidão] reorientou a produção: não havia mais escravos trabalhando para produzir um café cujo sabor -- e rendimentos -- nem passaria perto de seus corpos; havia, agora, o trabalhador -- ou qualquer um -- com poder de consumo demandando produtos que significavam algo para si: passamos a ver, por exemplo, cosméticos para a população negra brasileira surgir, o que há dez anos era raro. 

Os negros só produziam coisas para outrem, não tinham salário suficiente, não havia motivo para o mercado produzir qualquer coisa para eles. O aumento da renda lhes permitiu não apenas o consumo do que era produzido, mas passou a demandar a produção de bens e serviços na quantidade e qualidade que eles precisavam.

O Lulismo pôs o capitalismo em curto-circuito porque mexeu no seu dispositivo básico: a economia capitalista não é super-consumo, mas consumo aquém, em quantidade e qualidade, de uma superprodução estéril -- voltada para a estocagem, o que permite o cacife para o controle dos preços; o capitalismo produz muito, mas produz em tom de exclusividade; o produzido é exclusivo e excludente. 

Se a produção capitalista se dá partir da exploração do comum -- das riquezas, conhecimentos e ações comuns, para ser mais exato --, ela se aperfeiçoa em um último instante, no mercado, enquanto bem incomum, exclusivo e pronto -- o fetiche da mercadoria é uma hipnose bem própria, é o transe entre a vontade de consumo e, na outra ponta, a superabundância inacessível. Do outro lado, a imanência entre consumo e criação seria o comunismo.

A diminuição do déficit entre consumo e produção, nem é preciso dizer, gerou mudanças consideráveis. Não apenas se produziu e se consumiu mais como, também, os libertos, em certa medida, passaram a se sentir autorizados a desejar. Desejar direitos. Passaram a se sentir livres para desejar o que lhes era lícito só até o momento em que resolvessem deseja-lo. O confronto desse novo brasileiro, assujeitado a qualquer coisa, com as velhas estruturas políticas e sociais levaram a um conflito iminente em plena era da crise econômica -- e da economia de crise 2.0.

Dilma, em sentido contrário, se preocupava em resolver esse enigma social por uma subjetividade nova, a síntese dessa multiplicidade incontrolável na forma de classe média. No entanto, o modo de vida médio-classista -- sua disciplina do trabalho, sua ansiosa insatisfação face à sua condição insustentável de ser (social) -- anteviam uma explosão. E de fato ela aconteceu, mas não apenas por isso. 

É preciso ver o jogo de tensões e pretensões: a reação aos ganhos sociais já chegava ali, por mais que parecesse irracional, uma vez que o capital estaria ganhando com esse jogo. Mas as corporações, antes de pensarem nos ganhos presentes, pensam no futuro: e o futuro depende da manutenção do controle do trabalho. Não são raros os momentos na história que o capital, apesar dos riscos de ganhar menos ou perder agora, opta pelo mando. 

No nosso caso, era preciso responder nos preços o que os trabalhadores ganhavam nos salários, o que os pobres ganhavam no bolsa família. Na medida em que a escassez à dignidade diminuía, a exclusividade da cidadania mínima rareava junto com seu preço; era preciso pôs as coisas de volta no lugar. Mas junto disso, a economia encontrava a soma da velha inflação das indexações mil, dos muitos monopólios, gerando uma inflação em cascata.

Nos últimos anos, as tentativas de segurar essa inflação pela valorização do câmbio, por subsídios brancos ao preço dos derivados de petróleo e à energia elétrica, no protelamento dos reajustes de tarifas, desonerações tributárias etc se mostraram um erro. A resposta social à ascensão da classe sem nome era possível pelo grau de concentração de mercado. 

Mas não só, a existência, desde os primórdios do plano Real, de uma correção monetária, cria uma inequívoca inflação inercial, que incidirá, aconteça o que acontecer: quando a lei autoriza a reajuste para mais o preço de algo com fundamento, vejamos nós, na perda de valor em abstrato do poder de compra na moeda, o fato é que o reajuste é, na verdade, inflação em concreto. Os reajustes anuais de aluguéis, de tarifas de luz, água geram um fluxo de carestia interminável. É um problema objetivo da arquitetura do sistema.

Enquanto isso, se a política de protagonismo dos bancos públicos no crédito para o consumo funcionavam, por outro lado, o protagonismo do BNDES no financiamento do capital é um fracasso: no sentido em que o empreendimento favorecido já era a grande corporação oligopolista, a qual por seu gigantismo não inova ou produz com mais eficiência -- seja ocupando concessões públicas, se agenciando com as grandes obras e serviços públicos (como nos casos de empreiteiras) ou pelo simples domínio de mercado elevado (no caso das atividades replicáveis como, p.ex., a produção de automóveis ou alimentos).

Novamente ele, o nosso velho conhecido grau de monopólio. A forma de financiamento absolutamente molar da produção, calcada no grande empreendimento, se une à parafernália burocrática. Esse processo perverso serve, lembrando Eduardo Pimenta de Mello, para fazer com que existam apenas empreendedores pequenos -- e débeis -- e grandes corporações [ou, no campo, a fazenda high-tech do agronegócio e a pequena, e paupérrima, propriedade do agronegócio]. Isso não foi superado. Só se cresce com escala porque o sistema não permite um aumento racional do empreendimento. 

Se em uma ponta o novo mercado interno demanda qualidade e quantidade -- e até obtém isso -- o "sistema produtivo" atola (1) no aspecto [veladamente] político da sua gestão, (2) na concentração de mercado que permite não uma improdutividade, mas o controle sobre a produção e sua estocagem mediante a política de preços; (3) na perda de valor monetário por meio dos indexadores que, a rigor, favorecem o capital rentista (e a possível financeirização até de serviços públicos).

Esses enormes brontossauros incapazes de dar conta da demanda nova. Apenas acumular, não investir, fazer aquisições, acomodar, de qualquer forma, força de trabalho empregada só para se dispôr com o governo -- aumentando salários que são "resolvidos" no preço final.Eis aí o nó górdio. Medidas voluntaristas como a baixa forçada da taxa Selic, sem o fim da correção monetária ou o combate ao monopólio, em Dilma esbarraram nesse cenário de insuficiência. 

A taxa de juros alta se deve à inflação alta, a qual expressa a oferta anômica para uma demanda que, felizmente, continuou a ser irrigada desde baixo. Essa a contradição que o dilmismo tem pela frente: avançar nas redes produtivas, o que demandaria pensar o micro-empreendimento, inclusive cooperativo. Mas não é nada simples.  Por outro lado, os ataques que ora se insurgem, com força, contra sua política econômica tenham, também, outra conotação: o oligopólio financeiro nacional, pressionado pela concorrência dos bancos públicos, deseja recuperar o protagonismo que perdeu porque quis. 

Quando Marina fala em dar "independência" ao Banco Central, sua medida esotérica sinaliza para, sob os auspícios da técnica, dar poder político efetivo ao oligopólio financeiro na formulação da política monetária. Uma vez tomado o BC, estaria tomado  o COPOM e o governo teria de escolher entre concordar com o BC ou, quem sabe, discordar de um órgão emancipados deus sabe como e ver a briga da mão com o pé.

E, naturalmente, impor uma política de juros altos, para substituir  "um voluntarismo" ou "ativismo" monetário, não resolve o problema -- para além do óbvio favorecimento do oligopólio financeiro. Ou se, por um lado, mobilizar os bancos estatais para financiar as grandes corporações é um erro -- não no sentido moral, mas no sentido prático --, por outro lado, retirar-lhes esse protagonismo sem pôr nada no lugar, sem os bancos privados terem essa disposição, vai gerar, em outro sentido, a falta de financiamento para produção e consumo.

Mas o problema do revival (neo)liberal de Marina não para por aí: num certo neo-malthusianismo que recorre à crítica do consumo -- e não raro a temática ambientalista surge nesse sentido como -- e não identifica na superprodução -- e na gestão que permite essa desvinculação -- o problema chave. O culpado é o trabalhador que passou a consumir.  

É o consumo que geraria mais produção -- uma hipótese absurda, uma vez que, p.ex., o Brasil produz há tempos os alimentos suficientes para que não haja fome, mas nem por isso deixou de haver fome, fosse assim, o consumo baixo, até poucos anos, levaria a uma hipo-produção agrícola! 

O paradoxo é que não há vinculação entre produção e consumo nesse sentido, mais consumo, quando socialmente espraiado, requalifica a produção, não necessariamente exige que se produza mais. Não é um argumento de fundo tão melhor quanto a retórica do "ajuste" de Aécio, o qual, em prol de ganhos imediatos, iria arrochar o mercado interno -- as tais "medidas impopulares" que ele não teria medo de implementar: isso é ruim não porque é imoral (embora até seja), mas porque não funcionaria, levando ao mesmo círculo vicioso dos anos 1990.

O debate econômico, em tempos difíceis, nunca foi tão urgente. A crise do modelo atual e as novas saídas, que mais parecem aporias, impõem uma crítica radical.

P.S.: O post acima vem na esteira um debate com Bruno Cava, Alemar Rena, Silvio Pedrosa, Pablo Castro e mais gente, ocorrido no próprio perfil do Bruno há poucos dias -- mas tem também muito das constantes trocas de ideia com o Eduardo Pimenta de Mello.

P.S. 2: dei uma melhorada no texto (06.09, 00:21)