São Paulo vive um momento de emergência. A violência policial registra uma escalada terrível, mas o mais assustador é que isso é consequência, ou melhor, a resposta absurda dada pela classe política local para crises sociais bastante agudas. A água já começa a faltar numa crise hídrica que, longe de ser mero acaso da natureza, é efeito de uma certa política errada para o setor. As universidades ardem. O trânsito grassa. Não, não está fácil e muito ainda poderia se dizer nesta noite insone de quase primavera.
Mas antes, um corte narrativo: a capital dos paulistas frequentemente foi bem retratada na música. Duas em especial, Sampa de Caetano Veloso e Não Existe Amor em SP de Criolo, eternizam certos momentos da cidade. Ambas são, pois, pura arte em um sentido deleuziano. Sampa é a São Paulo do final dos anos 1970, uma época absurda, mas de uma esperança justificada como raramente se viu nos momentos históricos em que a esperança veio à tona; Não Existe Amor em SP, por seu turno, é uma das raras elaborações esteticamente exuberantes do nosso tempo, uma poesia lindíssima sobre algo feio -- é uma precisa narração da São Paulo de hoje, um verdadeiro triunfo estético, pois é algo belo sobre um conteúdo trágico e grotesco.
Existem contiguidades narrativas tanto na letra de uma quanto da outra. São Paulo continua sendo São Paulo, é uma terra de feiura bela, mas o que ocorre agora é um momento em si feio. São Paulo sempre foi cheia de emoção na sua frieza, mas hoje há um vazio que cresce. Não Existe Amor em SP não nega as premissas de Sampa, mas as atualiza na forma de um soco no estômago com violino ao fundo. Não como não perceber na profundidade das duas letras os dois momentos, os dois movimentos; alguma coisa acontecia no nosso coração em 1978, quando cruzávamos a Avenida Ipiranga com a São João, mas hoje isso também não deixa de acontecer, só que não é mais de emoção que falamos: não há mais amor na Avenida São João, há bombas.
Há dois dias, o prédio do Hotel Aquarius, há dez anos abandonado e ocupado há poucos meses pelo movimento de moradia, foi desocupado violentamente pela polícia, com uma ordem judicial absurda. O confronto se alastrou pelo centro da cidade, a polícia foi violentíssima. O confronto começou e recomeçou várias vezes. Uma catástrofe bíblica. Ontem, um camelô foi executado a sangue frio por um policial na Lapa, gerando uma revolta massiva que parou o bairro, conhecido centro de comércio popular da zona oeste da capital paulista.
A política de repressão, mantida às custas da mobilização de uma tropa mal treinada, mal remunerada e maltratada serve como substitutivo da política. Ou da impossibilidade das políticas locais, tal como são concebidas, de responderem as demandas políticas e sociais. A classe política mais mesquinha, limitada e perversa desde a república velha dá as caras, ela é mortal. O país não vai bem, São Paulo, acelerada à velocidade da luz, tampouco. Há várias São Paulos, várias possibilidades de experimentar e pertencer aqui, como qualquer outra capital. A crise de São Paulo é a crise do mundo e do país, a crise do nosso tempo, nas condições históricas e geográficas determinadas daqui: e dói, nossa crise é mais perturbadora mentalmente do que, talvez, crises mais violentas fisicamente como a do Rio.
Nesse contexto, o governador do estado, Geraldo Alckmin, está prestes a se reeleger em primeiro turno. O prefeito da capital, Fernando Haddad, no entanto, está com a popularidade bastante baixa. É de se salientar que a popularidade do governador encontra seu ponto mais baixo na capital.
Alckmin governa com punho de ferro, a partir de currais eleitorais no interior e na falta de oposição, repetindo no paradoxo (neo)liberal: estado pequeno para fazer reformas sociais, mas incrivelmente grande na hora de reprimir os resultados óbvios da ausência dessas políticas. Mas sua capacidade pairar acima das discussões, deslizando com um réptil, é única.
Haddad, por seu turno, realizou políticas importantes, fez o novo plano diretor, colocou ciclofaixas e faixas exclusivas de ônibus para o horror dos carro-dependentes, mas erra fragorosamente ao relativizar as ações de uma polícia militar que sequer comanda. E repetiu isso agora, em relação ao caso da Avenida São João, depois de momentos ruins ano passado, quando não condenou com dureza a repressão em Junho -- ao contrário, mas pagou e paga por isso. A não articulação para dar conta das crises pontuais que vão emergir será fatal, a via policial é um desastre anunciado -- que, em seu caso, tem um peso negativo redobrado, uma vez que sua base de apoio (felizmente) é menos tolerante a isso do que a do governador.
Alckmin é popular e Haddad não, pois um agrada as expectativas de seu eleitor e o outro não. Ou melhor, Haddad desagrada em temas sensíveis demais e em ocasiões inoportunas, apesar de políticas públicas reconhecidas -- que, no caso das ciclofaixas ou da faixas de ônibus chegaram a registrar alta adesão, ambas coincidentemente de 88%, sendo políticas de esquerda. Mas o fato é que na metrópole as contradições emergem e se fazem realidade. No caso de São Paulo capital, mais ainda. E para Alckmin, embora seja um item importante, a metrópole e suas agruras é apenas parte de seu ofício.
A situação, evidentemente, é grave. Na cidade do mais universalista dos santos, o evento ocorrido na avenida que leva o nome do mais apocalíptico deles é sintomática. A situação é uma ascendente, na qual os movimentos se veem obrigados pelas condições a se lançarem à luta. E as condições se agravam: os bares cheios de almas tão vazias de Criolo, na prática, são são as tantas habitações vazias para tantas almas deixadas ao relento. O momento exige menos do que "políticas públicas" no sentido clássico e mais um processo político, algo que envolva e dê significado. Não se espante como apesar dos pesares Alckmin se reelegerá: como dizia Benjamin, onde há fascismo é porque uma revolução fracassou -- e acrescentemos, havia revolução, ou propensão à revolução, onde a situação era emergencial.
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