sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Terceiro Turno: o Mito do Brasil "Dividido" e o Congresso como Crise

A vitória de Dilma Rousseff nas eleições presidenciais, embora apertada, foi rapidamente reconhecida por Aécio Neves. Mas isso não marcou o fim da polarização vista no pleito. Talvez porque isso seja menos uma polarização entre PT e PSDB, ou entre Dilma e Aécio, e mais, muito mais, entre blocos sociais e econômicos antagônicos que neles se representam, ainda que alguns tucanos de relevante hierarquia tenham mantido a ofensiva. Nesse momento, a tensão secessionista e a crise do Congresso tomam a agenda nacional nublam a semana posterior à reeleição.

BRASIL DIVIDIDO?

A primeira onda, situada nas redes sociais, foi uma massiva, violenta e absolutamente irracional campanha anti-nordeste. De repente, os nordestinos, que votaram em massa, se tornaram os "culpados" pela derrota. Seriam eles escravos do "voto de cabresto" por conta do "Bolsa Família". 

Para além de toda carga preconceituosa, não havia qualquer relação lógica entre a derrota de Aécio e o Nordeste. Primeiro, Aécio perdeu justo em Minas Gerais, o grande destaque de seu currículo, onde governou por oito anos consecutivos, por onde é senador e ainda fez sucessor entre 2010 e 2014. 

Depois que a alegação de que o eleitorado nordestino voto por cabresto, é ridícula. O Bolsa Família emancipa o cidadão na medida em que lhe tira da fome. Cabresto havia, é claro, quando existia fome massiva no Nordeste e a ausência de políticas públicas permitiam que o voto fosse comprado com comida. O Bolsa Família é uma política pública que impõe obrigações -- como matrícula dos filhos na escola e sua vacinação dentre outros itens --, não assistencialismo. 

O próprio Aécio prometeu manter o Bolsa Família, o que torna um contrassenso as declarações de sua base social. Se ia ser mantido mesmo, e assim foi declarado, o eleitorado nordestino teria votado em Dilma por quê? E se as pessoas não gostavam do Bolsa Família no Sudeste e no Sul -- onde ele também é aplicado como política de Assistência Social nos termos da Constituição da República -- por que votaram num candidato como Aécio que prometeu mantê-lo?

Mas as falácias não param por aí. Colocar a questão nordestina nos termos da fome/dependência, sem reconhecer os enormes avanços conseguidos nos últimos anos não é pouca coisa. E isso, seguramente, se deve mais a desobstrução do potencial da região no governo Lula: até ali, o Nordeste esteve sob o jugo da elite mais retrógrada possível em virtude dos arranjos nacionais, inclusive no governo FHC.

De 1822 até hoje, nenhuma outra região se prejudicou tanto pela unidade territorial brasileira quanto o nordeste. A monarquia brasileira se fez a partir, inclusive, da supressão das elites republicano-liberais da região. A República Velha alçou os coronéis às alturas. Vargas avançou apenas um pouco, embora tenha permitido que as forças modernistas avançassem nos anos 50. 

A ditadura militar, capítulo à parte nessa história, foi uma re-união entre os capitães da indústria paulista e os coronéis nordestinos: política de exportação interna de gente para servir de mão-de-obra barata no sudeste e, assim, reduzir a pressão demográfica que levaria a uma reforma agrária no nordeste.

Evidentemente, se esses arranjos obstruíram o caminho natural do Nordeste, por outro lado, eles promoveram um desenvolvimento hipotético do Sudeste: criaram bolhas de riqueza nas capitais e verdadeiros cinturões de miséria em torno delas (inclusive em Brasília). A questão nordestina, não resolvida às portas do século 21, na verdade, é a própria questão brasileira.

O resgate disso eliminou diretamente o coronelismo na Bahia e, indiretamente, no Maranhão como se viu nessa eleição. Isso abriu espaço para governos sociais ou modernistas-liberais -- como o de Eduardo Campos -- que mudaram a cara da região. Dentre as consequências disso, se encontra o fim da pressão migratória nordeste-sudeste, o que atenua a crise urbana de São Paulo e do Rio de Janeiro.

SECESSIONISMO E PERVERSÃO (DIRIGIDA) DA MASSA

O Brasil, é verdade, sempre esteve dividido. Mas essa divisão, em termos de secessão, da qual eu estou falando, é absolutamente artificial e perigosa. No Brasil, as eleições se decidem por todos os brasileiros em igualdade, não por estados pelo seu peso relativo. 

Dilma ganhou por pouco entre os brasileiros, não porque isso seja um Nordeste versus São Paulo. E isso, infelizmente, está sendo alimentado por membros inconformados do PSDB como um Coronel Telhada, que está sendo investigado pela Assembleia Legislativa paulista por secessionismo por essa razão, mas também por um Goldman, o que insufla setores extremistas da nossa sociedade. 

E quando falo em setores extremistas, faço referência às ameaças de impeachment que vemos nas redes sociais -- sejam acompanhados pela ideia de secessionismo ou por teorias da conspiração --, o que nos faz sair do enquadramento da democracia. O PSDB ao surfar nessa onda, ou ter membros de relevo ratificando isso, sai do prumo de um conservadorismo acidental no qual ele, um partido social-democrata, se envolveu para se tornar uma força de desestabilização. 

Atitudes louváveis como o dos diretórios paulistano e paulista do partido contra as declarações de Telhada precisam se tornar regra. Como bem sabe o próprio governador paulista, Geraldo Alckmin, São Paulo mais do que nunca precisa do Brasil diante da grave crise da água causada, infelizmente, menos pela natureza e pelo acaso do que por sua política privatista para a água.

CONGRESSO COMO CRISE

Na outra ponta dessa conjuntura infernal, temos a crise no Congresso. Dilma Rousseff foi acusada com razão de conduzir um governo com baixo diálogo. O decreto que regulamentava os conselhos populares -- instituídos pela Constituição de 1988 que prevê uma democracia representativa E participativa -- era uma resposta correta para essa justa reivindicação.

O fato é que a Câmara Federal, em uma rebelião pós-eleitoral, tratou de derruba-lo. Em resposta, o PSOL tratou de reapresentar o tema na forma de um projeto de lei apresentado em caráter de urgência. Isso tudo na atual composição parlamentar, mais amena do que a eleita em Outubro e que tomará posse a partir do ano que vem.

Isso não é um problema pontual. Envolve questões cruciais para o ano que vem. Dentre elas, a reforma política, que ou sai por uma nova constituinte ou por uma emenda que depende do próprio Congresso que é, por sinal, expressão do sistema político falido.

Dilma terá de recriar, ou criar pela primeira vez no seu governo, uma articulação política real capaz de negociar com o Congresso, mas também precisará, fora de qualquer âmbito formal, se agenciar com a sociedade. Se não conseguir, ela vai enfrentar as próprias forças que a elegeram, talvez até num turbilhão distópico.

De Collor até aqui, as piores crises nasceram a partir do Congresso Nacional. Justamente porque o sistema político está longe demais da multidão, restrito aos salões institucionais de Estado. A tentativa de sair da pretensa -- e inconstitucional -- monopolização da política pelos parlamentares também não é fácil. E é esse embate que está jogo neste momento.

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Seja como for, o clima de terceiro turno em nada colabora. O Brasil enfrentará problemas sérios nos próximos anos, imerso que está na crise econômica e ambiental de todo o globo. A escolha paradoxal das pessoas comuns em manter a atual presidenta no poder para, em aparente contradição, comandar uma mudança não é pouca coisa. É o reconhecimento de um lastro histórico de melhorias do país, embora acompanhado pela exigência incontornável de avanços. Por outro lado, a tendência de massa de cunho classista, racista e xenófobo -- o qual não representa o voto em Aécio como um todo, mas está bem presente nele -- é um problema grave, que pode se agravar com a piora de outro problemas, o que torna sua neutralização dentro das regras democráticas uma tarefa igualmente central. Tudo é muito óbvio e evidente.




terça-feira, 28 de outubro de 2014

Dilma Outra Vez

Festa de Dilma na Paulista
Dilma Rousseff venceu o pleito mais apertado da breve história democrática do Brasil. Foi, seguramente, a campanha mais polarizada, agressiva e tensa que já vimos. Segundo as pesquisas, depois de ultrapassar Aécio Neves e abrir uma pequena vantagem nos últimos dias, Dilma se viu atingida por uma bomba equivalente às manipulações que favoreceram Collor em 1989: a capa da revista Veja dizendo, sem provas, que ela e Lula "sabiam de tudo" a respeito do escândalo da Petrobrás -- o que veio acompanhado de uma panfletagem massiva da capa pelo país no dia da votação e, também, do tragicômico boato que o doleiro que supostamente os incriminou teria sido "envenenado".

Entre a quinta-feira e a votação de domingo, pois, tudo mudou. E o que poderia ser uma vitória por uma margem moderada, se tornou uma possível derrota. O direito de resposta ganho pelo PT junto ao TSE, obviamente, veio em cima da hora e o estrago já estava feito. Mas, por incrível que pareça, Dilma venceu com quase 52% dos votos. Diante das circunstâncias, em uma eleição na qual aconteceu de tudo, a vitória de Dilma no último domingo foi um feito histórico, sem dúvida.

E isso só foi parte da história. Com uma mobilização da militância como há muito não se via no apoio a um candidato presidencial petista, a reação veio na mesma moeda com uma radicalização do discurso e da prática: não foram poucas as agressões contra ativistas que apoiavam Dilma, tudo alimentado por uma discurso de ódio que mirou desde militantes de esquerda até os nordestinos, mesmo depois de apuradas as urnas. 

Aécio não estimulou diretamente isso, mas também não censurou essa escalada em momento algum. Como Serra em 2010, ele surfou na onda, pois, afinal de contas, vale tudo para ganhar do PT. Como ele governaria, caso vencesse, aí se trata de um mistério que ficará por conta da história contra-factual: eis que Aécio contrariou uma das regras eternas da política (e também da magia!), qual seja, a de jamais invocar uma entidade poderosa demais para ser mandada de volta, uma vez terminada sua função

É igualmente claro que o resultado das eleições está para além das circunstâncias eleitorais. O quadro "mudancista" que se formou nos últimos tempos expressa o encontro entre dois fatores chave, ou seja, as novas necessidades postas com os avanços sócio-econômicos da era Lula-Dilma com a falência definitiva do sistema político. Nuvens negras se formaram no horizonte, mas a ideia de governo técnico trazido por Dilma, no qual o processo político é substituído por uma política de resultados, por sua vez, fez com que elas precipitassem antes do tempo.

O que o eleitorado não desejava, nem aceitava, por sua vez, era um retrocesso. Nesse sentido, mesmo com quase 70% do eleitorado desejando mudanças, Aécio não foi capaz de vencer, mesmo com todo o apoio da mídia de massa, dos bancos privados, das forças armadas. A força que anima o Brasil desde o ciclo de enfrentamento à ditadura, por seu turno, caminhou para uma aliança com a candidatura de Dilma que, contra tudo e contra todos, desbancou Aécio. E isso não significa que essa força tenha sido domesticada por Dilma, longe disso: a conta vai ser cobrada logo.

Não há contradição entre desejo de mudança e o voto pela manutenção do governo. Tampouco a manutenção de Dilma no poder implica em concordância. É o reconhecimento que, no limite, o PT é a opção prática para, ao menos, manter os direitos. Dilma teve uma oportunidade sui generis na política: continuar uma descontinuação do próprio governo. 

As teses que encampam a domesticação das forças de esquerda, no contexto da união por Dilma no segundo turno, me parecem um engano -- e são várias, inclusive com sinal trocado, uns veem isso como um triunfo feliz do governo, outros como um desastre, mas é a análise de fundo é a mesma. O fator que empurrou Dilma para frente é, precisamente, o aspecto socialmente indomável da sociedade brasileira, o qual não encontrou um ponto de consistência seguro em outra parte. Dilma não controla isso, nem tem como disciplina-lo.

O alarido delirante contra o nordeste é uma estupidez sem limites. Aécio tinha um portfólio, Minas Gerais, e perdeu lá. Se a questão for geograficamente interpretada, Aécio perdeu onde não poderia ter perdido. Como perdeu também no Rio, apesar da boa votação para quem não teve palanque.

Os dois compromissos assumidos por Dilma no discurso, sobretudo a reforma política, são de importância absoluta. Porém, mais do que uma larga reforma eleitoral-partidária, a mudança da interlocução entre governo e sociedade terá de mudar. Ou melhor, terá de acontecer. Os próximos anos serão uma navegação na tempestade.

A persistência de uma força constituinte que se espraia desde o derradeiro ciclo de lutas pela democracia, potencializado ainda pela inovação dos anos Lula, é o fator a ser entendido em toda a sua complexidade. Sua singela (e precária) existência, contra tudo e contra todos -- e entre a tempestade de derrotas --, é um paradoxo. Mas é o paradoxo a morada própria da filosofia, já diziam por aí...



sábado, 25 de outubro de 2014

Estação na Mudança, por Cleber Lambert

Em um texto filosófico requintado, Cleber Lambert polemiza sobre a atual situação do Brasil, e do pensamento no Brasil: Uma inquietação filosófica potente e refinada sobre tempos inquietantes. Material de primeira para o Descurvo:
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Um modo de fazer apelo à filosofia por vir no Brasil, que de modo algum, de um ponto de vista geofilosófico, pode se confundir com uma filosofia do Brasil, foi instaurado por Bento Prado Jr, em diversos momentos. Por exemplo, quando ele colocava o ato de pensar imediatamente no prolongamento de uma partida de futebol, com um drible ou um gol marcado num domingo, ou então com uma poesia, com uma passagem de um romance, ou ainda a partir do encontro do futebol com o literatura, com o teatro: “Que há de mais curioso do que esse cruzamento entre teatro e futebol (...)? Mas, na verdade, o texto de Decio de Almeida Prado serve-me aqui apenas de pretexto para esboçar algo como um prolongamento de suas observações: tentarei continuar a jogada com a bola que ele levantou, contando apenas com meu precário domínio dos "fundamentos" (como diz a crônica esportiva) dessa arte. O que me interessa é apresentar uma nova figura dessa oposição literária ou, mais precisamente, entre duas formas de relação entre literatura e futebol, que se desenha no Brasil três ou quatro décadas depois daquela descrita em "Latejando com o Futebol"” (Bento Prado Jr, Literatura e o mistério da bola).
Essa performance filosófica, em Bento Prado Jr, constituía um verdadeiro modo de fazer com que pensamento e vida se comunicassem imediatamente, prolongando-se mutuamente. A mesma constatação que Bento faz adiante em relação a outro encontro da literatura com o futebol, ou “desencontro entre estilo elevado e assunto cotidiano”, tal como o vemos em Carlos Drummond de Andrade e em João Cabral de Melo Neto, qual seja, “pertencia já ao passado o tempo em que era necessário mobilizar estrategicamente a experiência cotidiana para enriquecer a poesia contra o espírito poético exaurido e empobrecido por sua exclusiva consagração a temas elevados, distantes e passados, ou pela obsessão cátara com a pureza da última flor do Lácio”, essa constatação é simultaneamente a essência mesmo do que pratica Bento sob o nome de filosofia, essa performance que já não pode mais traçar uma linha especulativa separando o campo do filosófico e do não-filosófico e que, ao mesmo tempo, mostra rigorosamente em que o não-filosófico pode servir de disparação para o que há de mais filosófico.
É claramente o prolongamento, por uma performance filosófica indisciplinada, do apelo de Oswald de Andrade a uma filosofia antropófaga para além de toda filosofia messiânica assentada sobre o problema do Ser ou da Consciência, da Substância ou do Sujeito enquanto obssessão cátara com a pureza em sua forma propriamente especulativa. Assim, Bento, a exemplo daquele outro, o Espinosa, atacava toda filosofia que nos separa da vida, que não faz da “Verdade” o efeito de um esforço sempre renovado do pensamento, pelo qual nos tornamos dignos de viver, pelo encontro da potência de pensar com as forças exteriores que fazem do imprevisível o mais profundo impulso vital que força o pensamento a sair de sua fadiga habitual e a pensar. Todo pensamento que nos aparta da vida constitui, para Bento, um “convite à falsificação”. Antes do Ser e da Consciência, como princípios aos quais chegamos apenas através da especulação como movimento abstrato, há a performance pela qual pensamento e vida se comunicam imediatamente, tornando possível um movimento efetivo, um bloco de pensamento e vida já tornados indiscerníveis. Não é o que se insinua aos olhos de Bento no encontro da literatura e do futebol, através das metáforas que se multiplicam nos poemas de João Cabral ou nas pernas de Ademir da Guia? Assim, a conclusão de Bento, segundo a qual “com João Cabral, a assimilação literária do futebol deixou de ser mera retórica ou simples provocação. Tornou-se, finalmente, assunto real para o conhecimento literário do Mundo”. É preciso ver nela que a assimilação filosófica desse encontro/desencontro não serve de simples metáfora, mas de material para se pensar o Mundo em seu devir.
Eventos da vida política podem igualmente fazer apelo a um pensamento, jogam igualmente com essa linha que alhures separa o campo da filosofia e da não-filosofia. Um desses eventos na contemporaneidade faz referência, no nosso entender, ao problema metafísico por excelência, ao menos de uma certa metafísica dita ocidental, a saber, aquela da relação entre o Mesmo e o Diferente. O evento ao qual nos referimos se passa, paradoxalmente, no seio da máquina estatal, através de diversas políticas sociais que, nos últimos 12 anos, fizeram dos representados da democracia representativa brasileira uma "classe inominável" ou "classe sem nome", segundo a expressão de Hugo Albuquerque, como se a identidade nacional fosse subvertida lá mesmo de onde ela jorra como efeito da máquina de Poder: para além da oposição entre uma unidade, homogênea, abstrata, como determinação formal do ser brasileiro, e o diverso, heterogêneo, concreto, como matéria indeterminada de uma massa humana, que produzia no Brasil justamente 2 brasis, o dos brasileiros inclusos segundo uma forma majoritária (cidadão de classe média, branco, com ensino superior, cristão, habitante de grande cidade, etc.) e aquele de uma massa de pobres e miseráveis em dispersão, impossível de incluir, invisibilizados nos sertões, favelas e florestas; para além desse esquema, deparamo-nos com uma estranha unidade que se diz da multiplicidade, um devir-brasil que é devir-todo-mundo, uma nação que não remete a um princípio unitário ideal, mas que é genética, ou seja, uma natividade que se engendra continuamente em ato, arrastando a própria máquina estatal brasileira e o todo do sistema democrático representativo, implicando-a num novo "antagonismo", de acordo com a sugestão de Sílvio Pedrosa, que é preciso investigar. Com efeito, o Brasil saiu de um estado no qual justamente ele estava, seguindo o sentido profundo desse verbo, no qual estanciava, repousando sobre um fundamento imóvel, fixo, estável, para se instalar e experimentar uma nova forma de estância, uma espécie de paradoxal estação na mudança: a democracia meramente representativa é devorada pelo voraz movimento efetivo de uma nação que é tanto mais nativa quanto mais ela se inventa. É do ponto de vista dessa estação que podemos contemplar com mais justeza o estado precedente.
Alguns filósofos, como Espinosa, ensinaram-nos que o medo é a estratégia do poder para a dominação de um povo. Pela multiplicação do medo no coração das pessoas, pela agitação em torno de uma inquietação, “o que vai acontecer?”, o poder se apresenta e oferece pontos de apoio fixos, estáticos, para os quais os corações temerosos se voltam na esperança de conseguir tutela e proteção, contra o caos ameaçador que borbulha lá fora. Essa segurança oferecida pelo poder consiste numa estação em que nada mudaria e nada de inquietante poderia sobrevir. Disciplina e/ou controle, trata-se sempre de uma tal estação. Um certo tipo de subjetividade preponderava no Brasil, justamente aquela que jazia nessa estação sem mudança que é uma miragem oferecida pelo poder aos corações que vivem com medo.
No entanto, quando Lula afirma em 2002 que a “esperança venceu o medo” e que sua eleição expressa o “reencontro do Brasil consigo mesmo”, um nova verdade era expressa decisivamente naquela afirmação, a decisão de eleger Lula significava um brasil-menor que assumia para si uma nova posição subjetiva, completamente diferente da precedente, instalando-se no seio da máquina estatal, incluindo-a num movimento que a ultrapassa e que desembocará nas manifestações de Junho de 2013 e nas eleições presidenciais de 2014. Se não hesitamos em ler aquelas primeiras, como explicar tanta incompreensão na mobilização pela candidatura Dilma neste segundo turno da eleição presidencial? Afirmar que as massas estão sendo enganadas sempre foi um falso problema em política. Trata-se de compreender aqui o arco longo da subjetividade que se expressa na eleição de Lula em 2002 e na mobilização atual pela reeleição de Dilma. Esse arco descreve justamente o movimento de saída daquela estação sem mudança e de instalação num movimento real que, como toda criação, é abertura à indeterminação.
Por isso mesmo, como não ter medo diante do risco do novo que deveria, desde então, ser criado literalmente “do nada”, já que não se tem mais os pontos de apoio fixos nos quais agarrar-se por medo, abdicando-se de criar, confortando-se com uma vida em que se miracula um “nada se passa”, “tudo continua igual”? Como assumir de se sustentar no ar sem nenhuma mão que impeça de cair, sem suporte algum que conduza, como um pássaro de que falamos justamente que ele voa livremente e faz um consigo mesmo em seu sobrevôo, à maneira de uma estação na mudança, de uma experiência que já não pressupõe nem sujeito, nem objeto, mas constitui uma individuação criadora, uma pura atividade ou corrente de vida, uma afirmação absoluta de si sem sujeito nem objeto? Construir, assim, uma vida que seja pura natividade, pura estância na mudança, num esforço atlético e contínuo de singularização, expõe aos riscos de se cair na fadiga que põe um objeto e um sujeito como formas dadas, aos quais essa vida seria atribuída e desfigurada, acomodando-se num estado (forma majoritária). Porém, como já dizia o filósofo H. Bergson, em A Evolução Criadora, as maiores recompensas dependem dos maiores riscos e não há criação de novidade no mundo sem esse gesto nobre de dizer sim à mudança, ao risco de mudar, ao abandono do estado que liga a consciência a um princípio a fim de esposar singularidades moventes ou forças estrangeiras que povoam um espaço aberto ou campo impessoal (devir-minoritário).
Ao longo dos últimos 12 anos, surgiu pouco a pouco uma percepção de que se vivia numa espécie de mudança, e de que a mudança comporta ela própria uma estação, uma verdadeira estação na mudança e, acompanhando essa percepção, tem-se o sentimento de que algo de si (do “si” meramente individual) já não cabe em si em sua forma previamente dada, de modo que ele escapa, foge, coincidindo com uma vida, no que esta significa uma mudança não somente continuada, mas contínua, ou seja, um esforço constante em estanciar nesse limiar de indeterminação pelo qual se dá a "imprevisível criação de novidade" (Bergson). Essa paisagem da vida política no Brasil não deixa de ressoar com a filosofia, ou mais radicalmente, com o próprio devir do pensamento. Quando a campanha de Dilma falou em 2010 em “seguir mudando” e afirma agora "mudar mais", ela reivindica uma posição subjetiva que faz problema. Com efeito, ela não supõe um princípio transcendente/condicionante. Ao contrário, ela faz uma só e única realidade com aquele estranho princípio imanente de que nos fala Deleuze a partir de Nietzsche, que se determina em cada caso com aquilo que ele determina, que se metamorfoseia com o condicionado. O que estava e está em jogo nessas expressões é uma verdadeira estância na mudança, essa nova posição subjetiva, instaurada e experimentada ao longo dos últimos 12 anos, em diferentes graus e de diferentes modos, nas diferentes classes sociais, doravante em pleno movimento de deslocamento seguindo o vetor "selvagem da classe sem nome" (Hugo Albuquerque). Não se trata nessa posição subjetiva paradoxal de afirmar um processo de mudança que levaria calmamente de um estado a outro. Essa sempre foi a imagem reservada às instituições numa democracia representativa. Ao contrário, trata-se de apreender o movimento efetivo de uma democracia real vivida como estação na mudança. É preciso pensar no profundo significado dessa estação em relação àquela outra que, pelo medo, nos fazia desejar tudo que pudesse ser fixo, imutável, ou não admitir mudança que não fosse de um ponto fixo a um outro, de um estado a um outro, como uma pessoa que, em meio a uma correnteza, pudesse se agarrar a pontos de apoio sucessivos que a conduzissem de uma margem a outra, sem que no final das contas, de fato, ela mudasse de lugar, pois de um lado ou de outro do Rio, ela estava protegida do fluxo que tudo mistura numa mesma e única corrente, levando o conjunto fluido alhures. Essa mudança era apenas um “movimento aparente”, uma passagem imóvel, pois, com efeito, “nada se passava” em nós, nada de novo em nós se criava e nos confortava olhar para a água e ainda ver no fluxo movente nossa própria imagem imóvel e nela nos reconhecermos, tal como é possível se reconhecer nas formas majoritárias que marcam socialmente a diferença relegada ao estado de maldição de pura mudança sem consistência. A imagem que fazemos das instituições também deve ser alterada de acordo com um ou outro ponto de vista na medida em que se trata de precisar o sentido daquilo que não se conserva a não ser na mudança.
Ora, é surpreendente que o filósofo Jean-Christophe Goddard, ao fazer uma bela reflexão sobre um outro filósofo, o alemão Fichte, em torno da questão que por gerações foi colocada a seu respeito, a saber, “Fichte, seria ele reacionário ou revolucionário?”, lembra-nos que a dicotomia do reacionário e do revolucionário, da conservação e da mudança, encontra-se completamente inserida num movimento aparente, numa espécie de pêndulo que realiza apenas uma passagem imóvel que nos leva de um polo fixo a um outro polo fixo e que integra a estratégia de codificação do social pela máquina do poder. Nesse sentido, o pêndulo do poder é uma espécie de estação propriamente sem mudança. Para ele, a inovação política de Fichte consistiu em pensar um meio de viver uma estação na mudança, ou melhor, Fichte foi o filósofo para quem uma vida consistia numa estância na mudança, mas à condição de que ela não sinta medo e escape ao pêndulo do poder que a ela oferece lugares estáveis para que nenhuma imprevisibilidade sobrevenha, para que precisamente “nada se passe”, seja se conservando no mesmo lugar, seja se transportando de um lugar fixo a um outro lugar fixo, através de uma mudança imóvel. A história da filosofia em seu conjunto é perpassada pelo problema da estância: “Ser” é uma questão de “estar”. Desde que o problema do princípio ou de uma unidade absoluta apenas varie numa estância entre uma “consciência” e o “Ser”, desde que o único percurso possível para o pensamento designe aquele que o conduz dessa consciência até um princípio Absoluto estático, imóvel, eterno, estamos, literalmente no sentido de uma estância sem mudança: todos os estratos que fixam a existência, o devir, a imanência, nos sucessivos sistemas filosóficos que fazem o mundo da representação. Entretanto, quando a representação é rompida pelo acontecimento, pela abertura de um espaço em que não há outra estância real a não ser aquela que nos faz permanecer no inacabamento, na interminabilidade, na transicionalidade que já não opõe o Uno ao múltiplo, o Idêntico ao diferente, o Homogêneo ao heterogêneo (a retomada incessante ao longo dos anos da Doutrina da Ciência é, nesse sentido, uma performance filosófica pela qual Fichte vive sua estância na mudança, uma transistência, como chamava Guattari a esse regime de subjetividade), passamos literalmente pela passagem: enfim, saímos do problema que relaciona um Sujeito a um Objeto, uma Consciência a um Princípio, o Múltiplo ao Uno, o Diverso ao Ser, o Condicionado à Condição, para nos instalarmos imediatamente no espaço intensivo do acontecimento, da diferença afirmada enquanto diferença, do que está em vias de se fazer. Essa estância na mudança abole tanto o Ser quanto a Consciência enquanto princípios ao passo que o verbo estar como índice de intensidade, como singularidade de um devir (hecceidade), faz valer sua contribuição para a filosofia. A estância na mudança se diz do acontecimento entendido como um se auto-pôr enquanto se auto-pondo, portanto, como uma pura atividade criadora.
Ora, já não era essa também a verdade antropófaga? O pensamento antropófago sempre nos lembrou que não há verdade como resultado da condução (por adequação, reflexão) do múltiplo ao Princípio imutável ou Absoluto. Tal sempre foi a maneira com que a especulação impediu a filosofia de pensar o novo. Oswald de Andrade fala em “tédio especulativo”, “estados tediosos”, “ideias” ou “paralisias” dos “chamados povos cultos”. Ao contrário, haveria uma unidade vital propriamente antropófaga: a vida é devoração e o pensamento é dinâmico, não cansava de dizer Oswald de Andrade. Unidade, portanto, instaurada incessantemente, tanto mais pura quanto mais híbrida ela se faz, que se diz da multiplicidade, não apenas heterogênea, mas heterogeneizante. Unidade que, não sendo posição subjetiva do colonizador (fundamento), nem colonizada (fundado), co-incide com o processo constante de descolonização do pensamento e da vida ou seu "afundamento". Subjetivação incessante, portanto, ambivalente. Somos todos canibais. Antes de descobrirem o Brasil, o Brasil já tinha descoberto a felicidade. O plano de imanência é a retomada do plano antropófago. O instinto caraíba da filosofia contemporânea. uma terceira margem também para a filosofia.
Quando certo Brasil, no plano da imaginação política, com os governos Lula e Dilma, assume a posição de um “continuar mudando”, o que está em jogo é precisamente a suspensão do pêndulo do poder que, através do medo, ou nos finca no mesmo lugar (reacionário) ou através de uma agitação momentânea nos conduz de um estado a um outro (progressista). Nesse sentido, permanece-se no pêndulo do poder que nos leva de um polo fixo a um outro polo fixo, numa passagem sem mudança, responsável pela interioridade própria a uma história descolada da situação material da vida, pois nela nada se passa e nada pode se passar. Uma resposta possível a isso é permeável na posição teórica do pensador italiano T. Negri. Todavia, o modelo subversivo negriano, ao opor a virtude do poder constituínte à sua desnaturação pela instituição, faz do virtual uma reserva inesgotável e sempre capaz de se subtrair à captura capitalística ("o caráter presumidamente permanente da inovação, do acontecimento, da criação", criticava com muita pertinência o filósofo F. Zourabichvili, ao apontar algumas divergências entre Negri e Deleuze). Dessa maneira, malgrado a si mesmo, ele depende da manutenção daqueles estados fixos representados pelas instituições, por vezes, até os clama e luta pela sua fixação ainda mais furiosa, para que assim, como bem viu F. Zourabichvili, o poder constituínte seja afirmado com mais veemência, em sua dimensão de exterioridade, em relação à instituição, a qual "sobrevém de fora para o integrar e o desnaturar". A conseqüência dessa operação se revela problemática: "tudo o que esse poder informe, 'ominiversátil' constitui, ele deve negá-lo imediatamente para permanecer ele mesmo; mas com isso, parece-me que ele não pode deixar, apesar de tudo, de se negar em parte a si mesmo". Tudo que esse modelo consegue ao criticar a transcendência vertical da instituição é afirmá-la ainda mais fortemente através da transcendência horizontal do poder constituínte, sendo incapaz de dar conta da instauração de novos "agenciamentos econômicos, sociais ou políticos", agenciamentos "jurídicos antes impensáveis", "novos direitos" e das novas realidades que eles tornam possíveis. É que o pensamento de Negri permanece principial e não há nada mais fatigante do que a eterna subversão contra os princípios que são, por isso mesmo, tanto mais afirmados. Já não era essa a razão pela qual o mesmo Zourabichvili, numa outra obra de grande vidência que inspira nosso exercício (cf. "O conservadorismo paradoxal de Espinosa") lembrava o quanto o filósofo polidor de lentes tinha em suspeita a revolução por ela ficar presa, pela própria subversão contra o tirâno, na "espiral da tirania", contribuindo apesar dela para sua "deriva bárbara"?


A suspensão do pêndulo do poder não implica uma simples subversão, mas a decisão perversiva de um pensamento capaz de permanecer atleticamente na mudança. "Conservadorismo paradoxal" de Bento de Espinosa, dirá Zourabichvilli, não como esforço para manter o que existe, mas para fazer existir o que se conserva. Não há outra maneira de fazer existir o que se conserva a não ser como estação na mudança, instauração de um espaço absolutamente novo, uma “terceira margem” roseana. "A questão da transformação trabalha do interior o motivo do perseverare in suo esse". Não surpreende, então, que essa estação na mudança contenha em muitos sentidos as características de um elemento que, na filosofia de Deleuze e de Guattari, instaura uma ambigüidade na ideia de revolução, entre a linha ocidental, pela qual ela remete a uma transformação do Estado, e a linha oriental, pela qual ela projeta a destruição do Estado. Ainda mais uma vez, como bem nota J.-Ch. Goddard, essa ambigüidade mostra que a verdadeira dicotomia não passa pela simples oposição entre o reacionário e o revolucionário, mas a própria revolução verdadeira passa pela dicotomia ENTRE o dispositivo do poder, dual ou binário que opõe dois estados, o reacionário e o revolucionário, o conservador e o reformista, E a máquina revolucionária que descodifica e estende o fluxo ilimitado de uma vida que se cria para além da codificação do social. Esse movimento vital arrasta todas as diferenças e hierarquias “sobre as quais se apoia essa luta lutando com elas”. Essa luta é o elemento que realiza uma verdadeira passagem do dispositivo do poder à máquina revolucionária, desfazendo os dois polos do dispositivo do poder, o reacionário e o revolucionário em sua linha ocidental: devir-revolucionário. É uma luta que, por se identificar plenamente com uma vida, implica “seguir mudando”, instaurando o que se conserva na mudança, o que passa longe igualmente de uma simples destruição do Estado. Por isso, o sentimento, motivo de crença, de que a classe sem nome não é implicada na polaridade eleitoral presente. Antes, é ela que implica o PT, seus governos e suas polarizações no antagonismo real de sua própria ascensão selvagem. Não há submissão do vulgus ao soberano, como alguns gostariam de nos fazer crer. Ao contrário, a multitudo em sua estação na mudança permanece submetida à suas paixões, mas ao menos se trata de paixões alegres e, como mostra ainda Zourabichvilli, há em Espinosa toda uma "elevação progressiva" da multidão livre seguindo o vetor da esperança, da vida e da liberdade, antes que o do medo, da morte e da submissão. Do mesmo modo, é preciso que a própria máquina estatal e suas instituições passem a ser compreendidas, para além das formas representativas da democracia, enquanto formação democrática instauradora de novos direitos que é preciso conservar para seguir mudando. É nesse sentido da conservação na mudança e instauração do que se conserva (novos direitos) que a instituição passa a participar da imaginação criadora de novas possibilidades de vida: "anarquia coroada".

É notável, portanto, que Goddard tenha reencontrado essa estação na mudança, essa "figura atlética da subjetividade", conservando-se tal como a figura baconiana, entre o limite e o ilimitado, no cinema revolucionário de Glauber Rocha tal como este nos apresenta o Sertão como espaço aberto onde o poder não pode alcançar e espalhar o medo. "Espinosismo obstinado" que nenhum spinozista parece enxergar, pois nunca puderam ver Bento, mas também um tranqüilo bergsonismo caraíba. O Sertão vive nos corações valentes como espaço vivo que não se opõe à cidade ou à floresta, mas as estende, que recusa o medo e afirma o inesperado. Sertão como potente vida que segue mudando e que vemos encarnada em Antonio das Mortes pois ele devem-revolucionário ao abolir o pêndulo do poder entre o reacionário (proprietários) e o revolucionário (cangaceiros expropriados): Antonio, esse si absolutamente im-proprietário. É notável que Antonio se diga justamente das mortes. Com efeito, morte se diz, num primeiro momento, das múltiplas mortes empíricas impostas aos ex-propriados para servir aos proprietários, compreendidas, assim, dentro do pêndulo do poder; num segundo momento, uma nova morte que se diz da suspensão da própria morte em que consiste essa vida capturada pelo movimento pendular relativo, portanto, uma morte como liberação an-arquica e emancipação vital pela qual ele se torna um im-proprietário. Antonio das mortes encarna, portanto, esse combate entre dois regimes de subjetividade no Brasil, ou antes, o combate entre um regime de poder vindo de alhures, do alto, transcendente e um regime de potência imanente, de heterogênese subjetiva. O Sertão sempre foi para nós uma arte e uma política, uma vida e um pensamento ou o lugar impossível de sua coincidência, portanto, tanto mais real quanto mais inventado: genético-nativo.
Falta a filosofia. Mas é preciso entender falta não como determinação negativa no sentido de que careceríamos de uma filosofia da qual se poderia dizer que ela é brasileira, mas falta uma filosofia no sentido de que a filosofia está por vir e seu tempo é o desse estar: uma estação na mudança. Pois se a filosofia se confundiu sempre com a Ontologia, com a história dessa "paixão inútil", fatalmente "malograda" (Bento), em todo caso, fatigante, que remete o pensamento ao Princípio, portanto, com o problema de uma unidade capaz de dar conta do múltiplo e de conduzi-lo ao Uno, compreende-se que não haja uma filosofia brasileira ou que não haja senão à maneira da reprodução colonizada da consciência enlatada - inclusive militante, quando se trata de compreender a vida política -, pois o devir-brasil faz uma só e mesma coisa com a abolição da Ontologia, portanto do próprio problema da unidade que se opõe ao múltiplo. Mas essa própria abolição, para não ser simples mergulho no informal, ou pior, restauração de novas Transcendências, ainda que constituintes, relacionais e horizontalizantes, já se compreende imediatamente como instauração de um processo a tal ponto perversivo que, através dele, a unidade se diz da multiplicidade e a estação se diz da mudança. Da perspectiva dessa estação, o Sertão aparece como o espaço onde a Arte, a Filosofia e a Política se encontram enquanto performances instauradoras. Assim, a performance filosófica de Bento Prado Jr., pela qual iniciamos esse breve exercício, se compreende rigorosamente como prática antropófaga da filosofia. O "bom canibalismo" atribuído ao amigo Rubens Rodrigues Torres Filho, poeta, filósofo e tradutor de Fichte, é também o dele próprio, Bento, já que, com ele, trata-se de não reconhecer fronteira, tal como a que separava o poetisável do não poetisável, o culto do cotidiano, o erudito do popular, o nacional do estrageiro. Se as fronteiras são abolidas, é porque uma linha intensiva alastra um espaço aberto, ambivalente, individuante no qual elas se precipitam e se abolem, como alturas e profundidades se precipitam à maneira de pregas de uma mesma superfície quando esta se estende. E Deleuze já mostrava como os princípios subterrâneos e os princípios elevados se desmanchavam numa filosofia das superfícies. O Sertão é a imagem literal glauberiana-roseana, Mundo no qual podemos, novamente, crer na medida em que não há outra crença que não a da própria estação na mudança como crença na imprevisível novidade e na criação de futuro.

Cleber Lambert, 24 de outubro de 2014, Santo Amaro da Purificação

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Dilma e a PUC-SP como uma Aldeia de Asterix


" Toda a Gália foi ocupada pelos romanos... TodaNão! Uma aldeia povoada por irredutíveis gauleses ainda resiste ao invasor. E a vida não é nada fácil para as guarnições de legionários romanos nos campos fortificados de Babaorum,AquariumLaudanum, e Petibonum..."
(prólogo de todas as edições da série Asterix).

No início desta semana, os dois atos pró-Dilma ocorridos na PUC-SP tomaram proporções inacreditáveis. O encontro de intelectuais e artistas no Tuca ultrapassou o teatro, se tornando uma manifestação espontânea, multitudinária e mágica. Na terça, o ato dos estudantes na prainha, centro nevrálgico do campus Monte Alegre, tomou vida e virou algo mais -- e deu tão certo que, no seu fim, foi atacado por um enxame fascista.  

O interessante, em ambas as ocasiões, é que os atos saíram do controle da própria organização e, curiosamente, tomaram uma forma própria. O que conferiu esse novo design é uma confluência curiosa que se formou a partir do segundo turno: a potência constituinte, essa força da multidão na direção da geração de direitos, fluiu através da candidatura petista de Dilma Rousseff; o que era, a princípio, apenas um veto à candidatura de Aécio Neves -- a perspectiva de retrocesso, da eliminação de direitos --, tomou um caráter positivo e propositivo.

É essa potência o fator que que mudou os rumos da atual eleição. E justamente quando tudo, absolutamente tudo, parecia caminhar para uma vitória certa do conservadorismo -- em um segundo turno que seria, seria, um passeio do conservadorismo, com a esquerda sem prumo e desistente.

Ainda que a eleição persista em empate técnico, Dilma segurou a ascensão do adversário e, agora, tem uma ligeira vantagem, com menos rejeição do que ele. A questão vai além das eleições, ela diz respeito a deflagração de um processo político outro, maior, cujas repercussões vão sim afetar um segundo mandato seu ou o eventual governo Aécio.

E a grande questão é que esse movimento, precisamente, não está sob controle do lulo-dilmismo, ele é uma força autônoma que encontra na candidatura Dilma, apenas e tão somente, um ponto de consistência: é ali que ele se corporifica, não onde ele existe. É uma ilusão de ótica supor que esse movimento é fruto de algum engano das massas -- e isso vale para quem diz isso a partir de uma posição contrária ou favorável a Dilma --, trata-se de uma manifestação da prudência -- no sentido clássico, isto é, saber prático -- da multidão face à vida como ela é.

Foi esse processo que esteve na cerne dos comícios gigantescos de Dilma na periferia de São Paulo e no Recife, mas foi na pequena PUC-SP, quase como a última aldeia gaulesa cercada pelo Império Romano, que isso foi catalisado simbolicamente. Lá, justo na PUC-SP que pelejou tanto pela democracia, mas que ficou tão parada em termos do debate extra-muros, situada em meio a uma área, geográfica, majoritariamente conservadora. 

A experiência desta semana na PUC-SP foi inacreditável, surpreendente e revigorante. Em sete anos de PUC, entre a graduação e o mestrado, eu jamais suporia que algo assim pudesse acontecer; segundo a triste realidade do nosso tempo e da minha alma mater, tudo parecia pender entre o conservadorismo de classe -- ainda que mitigado pelo ethos da instituição e alguns aspectos do catolicismo -- e um radicalismo sem rumo.

Em meio a uma eleição tão angustiante, em tempos tão angustiantes, a brecha que se abre é, precisamente, uma que aponta para um segundo governo de Dilma necessariamente mais democratizante -- ou isso ou será a paralisia completa -- ou um governo Aécio que já nascerá com um núcleo duro de oposição montado. Pouco importa para onde a História se desdobrará, quando as condições objetivas são determinadas desde baixo, não há como o Poder escorregar. 

Eu vou com Dilma na disputa voto a voto nesses dias, será difícil, mas aconteça o que acontecer, eu já estou feliz pelo sentido que esses últimos dias tiveram -- e que eles ainda podem dar para o nosso futuro próximo.


sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Por que Votar em Dilma 2014?

A realidade é mais complicada do que um esquema bem contra o mal. No entanto, não raro, momentos históricos aparecem de um jeito terrivelmente simples. E essa simplicidade está bastante aquém do desejado. A frustração é imensa. Isso é patente na atual eleição presidencial. Nós intervimos na vida no estado em que ela se encontra, não como gostaríamos que ela estivesse ou, mais ainda, como ela fosse.

Nesse sentido, voto Dilma

E faço isso sem peso ou maiores neuras. A minha crítica, à esquerda, ao governo atual está aí, não mudo uma linha. Mas a questão é bastante elementar, um candidato é Dilma, o outro é Aécio. E não adianta me convencer, por esforços retóricos, que são a mesma coisa. Não são. Tanto no aspecto biográfico quanto político -- inclusive de seus partidos e de sua base social.

Dilma, quando jovem, estava enfrentando a repressão militar; Aécio, na mesma idade, colhia as benesses de ter pai e avô políticos, com grande influência. O projeto que Dilma encampa, bem ou mal, tirou e tira milhões da pobreza e da miséria. Aécio apenas alude a um liberalismo bem brasileiro, o qual não larga o osso do Estado e está pouco comovido com os mais pobres -- a base política que o envolve, pior ainda.

A política capitaneada por Lula e Dilma nos últimos doze foi, por sinal, fazer o óbvio, priorizar os mais pobres, os excluídos. Em uma dimensão social e econômica, sim, melhoramos. O Brasil se inseriu no plano internacional em harmonia com força, mas sem antagonizar com as outras nações. A delicada construção de uma América do Sul, e uma América Latina, mais unida não foi um esforço qualquer -- tampouco a aproximação com a África e a Ásia. 

Dilma pegou um mundo em crise, mas não sacrificou salários, empregos ou programas sociais. Em outra borda, avançou com temas como o Marco Civil da Internet. Num sentido contrário, qual o compromisso de Aécio com a liberdade de imprensa, com a liberdade na rede? Nenhum.

Aécio emerge com um projeto que, a rigor, é a mesma coisa que deu errado nos anos 1990, cercado, ainda, por uma nuvem de tags péssima. A sua base de apoio, torno a insistir, me assusta. Uma hora são os nordestinos os culpados, outra hora, é ato de cultura que reúne o Coronel Telhada (?!). A proposta que Aécio defende sobre a redução da maioridade penal é, sem dúvida, um absurdo contra os direitos humanos. O que tem feito Aécio para segurar seus radicais?

Isso não quer dizer que Dilma ou o PT não tenham cometido erros importantes. Cometeram sim. Sobretudo porque tem dificuldade em lidar com o Brasil novo que eles próprios ajudaram a criar. Mas Aécio certamente está pouco entusiasmado em manter esse Brasil; seu ministro da fazenda escolhido, e anunciado, de antemão já fala em um receituário "duro" e "impopular", afinal, o salário mínimo estaria alto.

A questão nem é moral, é científica mesmo: em que sentido o consumo dos pobres é a razão da crise brasileira? Se consomem, graças a programas sociais e aumento salarial, movimentam a economia. O que nos interessa mexer nisso? Porque uma medida boa, para "acertar a economia", teria de ser impopular?

E, naturalmente, não é possível, com uma política de cortes de benefícios sociais -- dos pouco que temos -- governar sem um estado policial mais endurecido do que este em que já vivemos. Ademais, Aécio acena de outro lado, falando que os programas sociais não vão acabar. Mas quem mente, ele ou seu ministro da fazenda? Muito embora o jovem Neves jamais tenha falado que não vá arrochar os empregos e os salários. 

Ainda, no saldo das atuais eleições, não foi apenas o PT que pagou. O PSOL, embora tenha crescido um pouco, ocupa um espaço aquém do que um partido programático como ele merecia. O mesmo vale pela a esquerda de um modo geral. Assombra o avanço de pequenas agremiações de aluguel ou, até mesmo, radicais de direita.

Tudo dentro de um contexto histórico que, paradoxalmente, confirma muitas das antevisões da esquerda: o agravamento da crise ambiental, a impossibilidade do capitalismo existir sem crises ou sem sacrificar a democracia e a paz etc etc. Nunca a esquerda se provou tão certa, mas nunca sua vida foi tão difícil. 

2014 é a primeira eleição democrática na qual o peso relativo das esquerdas diminuiu. Ainda que se aponte que hoje as coisas se enveredem pela crítica antissistêmica -- expressa na abstenção eleitoral, votos em branco ou nulo, o movimento de negação, deslegitimação e destituição em geral --, o fato é que isso não raramente se coloca com a consistência constituinte razoável. Há momentos pontuais, o que quase sempre se esvai e se atomiza.

A luta pela constituição de um país mais democrático, dentro e fora do sistema como ele é, exige muito trabalho. Não é uma tarefa fácil, sem dúvida. Ganhe Dilma ou Aécio, o futuro disso está nas mãos dos variados setores que a compõem. Isso não cairá do céu, muito menos sairá do plano de um governo.

Não voto nulo porque não acredito que seja de um governo sim mais conservador, como o que propõe Aécio, e ainda com viés de política de austeridade, vá representar um cenário melhor para a democratização do Brasil. Ou igual, que seja. A austeridade só gerará mais violência -- de Estado e difusa --, o que alimenta a fascistização. O trabalho será duplo num cenário desses.

E, como ensina a história, nada vem do nada. Nada emerge do nada. Voto sim Dilma, sem esperança ou medo, desespero ou vontade de segurança. Voto, justamente, porque não espero de um governo [do Estado] não a salvação, mas que atrapalhe menos a nossa vida. 



sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Na Era da Angústia: Eu Prefiro um Outro Mundo

Melancolia I __ Dürer
Vivemos em tempos angustiantes. As sensações de nó na garganta e frio na barriga são recorrentes. É a vida profissional, a vida acadêmica, social, amorosa, a dura realidade política. Quer vender livros? Escreva um de auto-ajuda. Quer dormir? Tome um para conseguir. O que explica isso? É certo que o momento atual da política brasileira, com a ascensão conservadora, ajuda a catalisar isso, mas estamos falando sobre algo que é, a bem da verdade, fruto de um processo global que não começou agora. 

Duas novidades tecnológicas, ocorridas há pouco, dão o tom desse clima. A primeira é um nascimento peculiar, a segunda, uma morte. 

O novo iPhone chegou às lojas, na sua versão número 6. Enquanto isso, as atualizações de software constantemente exigidas para a "otimização" das outras versões, paradoxalmente, as tornam obsoletas: o hardware do iPhone 4 está com os dias contados, o 5 seguirá o mesmo caminho. 

A outra história é que o Orkut, a rede social primeira, morreu, foi desativada oficialmente. Nunca usamos uma rede social tão tosca, mas é possível que nunca tenhamos sido tão felizes na Internet. O Facebook, com todos os seus botões e funcionalidades nos escravizou, o usamos compulsivamente: ele conseguiu trazer a nossa vida "real" para a virtual. Sim, essa potencialidade nefasta já estava no Orkut, mas havia um Contra-o-Estado nele que a esconjurava para os quintos do inferno.

É, enfim, o mundo da destruição criativa. Da falência planejada. Da pane programada.  A melhora do componente imaterial leva à destruição do seu corpo físico, gerando mais vontade de consumo. As redes sociais, elas mesmas, precisam se enquadrar e nos enquadrar: se tornaram máquina de identificação dóceis, destinadas a nos domesticar na rede.

Estamos sempre preocupados demais em alimentar os nossos -- insaciáveis e descarregantes -- smartphones para sairmos desse círculo vicioso: horas na rede social via celular, por meio do qual nossa própria vida "real" aparece virtualizada, desgaste energético da máquina, recarga. Obsolescência da própria máquina posta no horizonte. No fundo, esse "prazo de validade" arbitrário parece se aplicar a nós mesmos, por extensão das máquinas técnicas com as quais nos agenciamos.

Vivemos às voltas de concepções complexas, cujas origens, desconhecemos. Mas algo que nos escapa dá a entender que isso não é natural. Vejamos nós que a filosofia ocidental desde Heidegger é, quase sempre, um mal-entendido, uma procura por qualquer pecado e pela descoberta da verdade. Seu labor é da ordem da "destruição criadora", do ciclo do mesmo, do igual e do idêntico; esse retorno sofisticado à teologia serve a uma economia política bastante concreta, o qual dá origem a um mundo feito de crises, de destruições e de reconstruções. 

Pouca gente, é verdade, criticou Heidegger à altura. Talvez só Deleuze ao pensar o eterno retorno como o eterno retorno do diferente -- ou Benjamin, ao opôr as imagens históricas às essências da fenomenologia. O fato é que as ideias de Heidegger, como ocorre com os grandes pensadores, se naturalizaram nas esferas da nossa vida. Do mesmo modo que raciocinamos a partir das noções aristotélicas de proporção, sem muitas vezes sabermos quem foi Aristóteles, fazemos o mesmo com essa particular visão: uma destruição necessária para dar início a um novo. 

Que não se fale em Heidegger como um nazista: ele de fato o foi, até os acréscimos do segundo tempo, mas é provável que ele fizesse do nacional-socialismo um meio e não um fim ao contrário de, por exemplo, um Carl Schmitt. Esqueçam, pois, o nazismo e a arquitetura da destruição: o capitalismo atual é capaz de, no seu procedimento normal,  de destruir o "velho" e edificar um "novo". Quem gentrificou a velha Moscou não foram nem os invasores nazistas, tampouco o comunismo ateu, mas sim a nova economia capitalista dos anos 1990.

Ainda que um dos textos elementares do repertório heideggeriano seja, precisamente, um questionamento ao que seria a técnica moderna, ele, possivelmente, não problematiza corretamente o que desencava: ele ignora que a cisão da tekhné  dos gregos em "arte" e "técnica [moderna]", por seu turno, está intimamente conectada como a divisão do trabalho moderno, e a exploração capitalista, e como a própria tarefa da "destruição" jamais prescindirá de uma técnica [enquanto dispositivo]. 

Do mesmo modo, a busca da "essência" da técnica, dessa técnica moderna, não nos salvará de seus efeitos; ao contrário, será uma mera corrida em círculo cujo objetivo, por sinal, é morder a própria cauda: se der certo, nos devoramos, se der errado, continuaremos a dar voltas. Não será uma ciência da técnica que nos "salvará" e, assim, nos libertará desse dispositivo -- e a liberdade tampouco é uma questão de salvação.

A própria arte uma vez imaginada cindida da técnica, como hoje, é ela própria um engano: é pensar a arte como objeto de uma transcendência "maior". Não é que "livrar a arte da estética nos levará a algo que nos eleve o espírito -- o que nem faz muito sentido à luz da lógica, uma vez que imaginar isso seria como supor uma arte sem sentido --, mas de pensar a arte como a intervenção humana plena naquilo que ela tem como experiência mútua e coletiva.

O resultado prático disso, como sabemos, é a ideia de uma redenção semi-religiosa numa arte elitista, desvinculada, anestésica. E, na outra ponta, um uso sim dessa técnica nos termos de sua "essência" -- uma cristalização de sua existência, a despeito da narrativa ela mesma. É o que dá forma à imagem vazia da "pós-modernidade" e o "pós-modernismo".

Não é que o neoliberalismo atual "apague da história" -- ou relativize o protagonismo histórico de certas pessoas e coisas --, mas sim que no reino das essências e da a-historicidade, de um mundo a ser descoberto por interpretação, a tradição dos oprimidos evanesce. Como na política brasileira atual, quando jovens bem-intencionados elegem heróis e vilões em um momento mágico desvinculado de qualquer contexto histórico -- e logo mais, se decepcionam ou se surpreendem.

O poder tal e qual se faz dele hoje, na larga ou pequena escala, não se ampara em qualquer tradição, em qualquer forma de narrar a História, mas na supressão desta pelas essências necessárias -- e, por que não, pela necessidade essencial como esse mesmo poder é apresentado. O presidente [da república e os das empresas], o rei e tutti quanti sempre foram e sempre serão quanto tais, a respeito da sua investidura no carga, muito embora pessoalmente estejam investidos naquela persona jurídico-política: o rei, em si, não é eterno, mas o ofício de rei é eterno, é uma essência. O poder, mais do que tudo, depende desse congelamento e dessa suspensão.

O "desvirtuamento" da filosofia não está em qualquer esquecimento do ser, ou em qualquer equivalente ao pecado original, mas na retomada da filosofia enquanto culto à morte -- o mesmo devidamente banido por ataques variados, em Marx e Nietzsche, mas talvez antes já por Hegel. Não é questão que somos permanentemente sujeitos à angústia, mas que a vida é plena. E, assim, a morte trazida como sombra permanente da vida, causa de uma angústia ou ansiedade incomensurável, é uma falácia pronta ao domínio: eis a clássica sacada de Deleuze, a partir de sua leitura de Spinoza, que o laço íntimo entre o déspota e o sacerdote é o fato que ambos precisam inspirar paixões tristes.

Se vivêssemos, ainda, a era da tristeza, talvez estivéssemos tuberculosamente poéticos: não estamos, somos deprimidos, depressivos cercados de comprimidos. Marx percebeu uma tendência assombrosa de destruição criadora no capitalismo já no seu tempo. O nazismo levou isso à esfera do planejamento científico. Heidegger queria até mais. Queria fazer disso uma perfeição -- e o fez, com a destruição como norma padrão da nossa economia política, neoliberal.

A própria revolução não aparece como aquilo que ela é -- o eterno retorno, a eterna revolta do potente, do diferente do transformador: ela se torna um depressivo, e irrealizável, marco zero, no qual tudo precisa ser destruído, desconstruído ou destituído para poder recomeçar. O Nada passa a ocupar a ribalta. Marx perde a barba e, ironicamente, ganha as feições de quem o teria jogado num campo de concentração, caso ele fosse algumas décadas mais velho.  É a mesma lógica que nos frustra "à direita", vendida como solução universal. 

De repente, a solução dos nossos problemas está na ruptura constante de laços, de amizades, de modos de vida. A experiência em comum, e o co-pertencimento, perdem importância diante de uma capciosa forma da destruição. Buscar uma alternativa ao mundo-que-aí-está não pode ser tomado como preciosismo intelectual, ou filosófico, mas sim por meio de uma aliança fundamental como a vida: isso exige (re)conhecer o que nos mata em vida. Sim, o mundo vai mal e talvez esteja para acabar, mas não sem luta -- nem alegria.



terça-feira, 7 de outubro de 2014

O Porvir do Brasil IV: O Que Resta das Urnas?

Siqueiros: do Porfiriato à Revolução
O que dizer das nossas eleições gerais? Terminados o primeiro turno das eleições majoritárias e as eleições legislativas, temos um saldo curioso. É inevitável pensar em como as manifestações de 2013 entram nessa narrativa. Ou, mais ainda, como os avanços sócio-econômicos entram na jogada. O fato é que Congresso brasileiro eleito é o mais conservador desde 1964. Enquanto isso, Aécio Neves, o candidato presidencial mais conservador dentre os três com chances reais de eleição, subiu assombrosamente nos últimos dias de campanha e chegou ao segundo turno.

O 2014 brasileiro, pelo menos quanto às suas eleições, está para seu rebelde Junho de 2013 como as eleições francesas de 1969 estiveram para o Maio de 1968. Para se ter uma ideia, a eleição presidencial francesa de 69 foi a mais reacionária do pós-guerra, na qual o candidato mais "à esquerda" era um stalinista que ficou em terceiro lugar. 

Nada de espantoso, eu mesmo falei isso há mais de um ano, mais que isso dá [muito] a pensar, dá.

Irrupções do desejo semelhantes ao Maio de 1968, naturalmente, se explicam pela excedência material em choque com uma estrutura política ultrapassada. No caso brasileiro, isso é óbvio. O cobertor do sistema político local, que já se sabia curto, se tornou insuficiente face às novas demandas materiais trazida não só pelos avanços sócio-econômico como, sobretudo, pela revolução desejante: os pobres foram autorizados a desejar. Tais irrupções, no entanto, não desencadeiam processos reformistas ou revolucionários apenas por si. 

Uma revolta contra o sistema, quando desacompanhada de uma tática e estratégia reformista ou reformadora, tende a encontrar um termidor na normalização -- muitas vezes "democrática", no sentido eleitoral.  E isso não torna essas ebulições "reacionárias" ou"de direita". Nem impede que, no longuíssimo prazo, boas coisas possam acontecer em virtude daquilo. Mas elas não trazem o paraíso de imediato, às vezes até libertam demônios difíceis de esconjurar. É a vida.

Agora, o fundamento de Junho de 2013, embora permaneça em disputa sobre sua origem, repousa num fato incontestável: apesar do crescimento pequeno do PIB, o fato é que o aumento da renda do trabalhador, o emprego, o crédito para os consumidores e os programa sociais estavam lá, alavancando as condições gerais de vida. A figura do brasileiro típico, na sua origem, etnia, cor de pele, pela primeira vez ganhava [algum] protagonismo. A composição de classe mudou, às custas de arranjos pragmáticos dentro do mesmo sistema político e isso gerou abalos.

O problema é justamente o discurso que o Estado assumiu para "organizar" o processo: criar um país de classe média. A classe ascendente deveria, então, ser classe média. E classe média não corresponde à faixa de renda, classe social própria no sentido marxista ou nada do tipo, ela é -- sobretudo no capitalismo cognitivo --, uma forma de pensar e, sobretudo, de sentir. A gradual construção do ex-pobre como classe média implica em um novo regime desejante, um controle.

No mais, a questão central da tese dilmista do país de classe média é um só: a classe média é, talvez, a única das classes que não deseja ser si mesma. Ela quer ser rica, revolucionária e fazer um outro mundo, se tornar índio qualquer coisa, menos continuar a ser classe média. Um país de classe média é, antes de tudo, um país de insatisfeitos. As nossas peculiaridades políticas -- a ausência da cidadania, a falta de anticorpos para o autoritarismo de Estado -- e até urbanísticas brasileiras -- o concentração de demográfica em certas cidades, o trânsito, a falta de transporte público, a precariedade no campo etc -- colaboram para acirrar ainda mais isso.

O impulso que move um Aécio, longe de ser qualquer programa nacional, é basicamente um plano construído desde cima pelo grande capital, o qual encontra na sociedade um respaldo no sentido da negação do que está posto: o que não quer dizer que, no entanto, isso se transforme em sustentação política durante um eventual governo, muito pelo contrário. Mas é um movimento sem dúvida poderoso do ponto de vista eleitoral.

Objetivamente, o entourage aecista vê no arrocho -- o "ajuste" -- um bom caminho, afinal o "salário mínimo" estaria alto demaisO custo da política de austeridade na Europa, na qual conquistas sociais bem mais antigas e profundas se sobrepõem, apresenta um custo altíssimo. No caso brasileiro, os efeitos disso seria desastroso, sobretudo se combinado com uma espécie de oligarquismo antigo: como na relação negativa de Aécio com a mídia mineira e a internet, a sua posição anti-índios e pró-latifúndio ou sua proximidade com o que há de mais retrógrado no mundo do futebol.

O trabalhismo de Dilma criou armadilhas para si mesmo, a exemplo do trabalhismo original, quando pôs a execução de um grande projeto à frente do método político e, sobretudo, da democratização da sociedade. Precisará assumir um discurso que ponha os direitos -- e a nossa esquecida cidadania -- à frente de qualquer economicismo, caso queira vencer uma eleição que será apertadíssima. É o caminho que lhe resta.

A crise política brasileira, transformada em política de crise, no entanto, é problema posto para muito além de 2014. Não é a questão que, de repente, algum ingovernável acene para a liberdade, mas que o desgoverno -- que é governo, muito governo, mas tanto que não ocorre -- apareceu no horizonte. É necessário luta, tática e estratégia, senão pior do que tá, fica.