terça-feira, 7 de outubro de 2014

O Porvir do Brasil IV: O Que Resta das Urnas?

Siqueiros: do Porfiriato à Revolução
O que dizer das nossas eleições gerais? Terminados o primeiro turno das eleições majoritárias e as eleições legislativas, temos um saldo curioso. É inevitável pensar em como as manifestações de 2013 entram nessa narrativa. Ou, mais ainda, como os avanços sócio-econômicos entram na jogada. O fato é que Congresso brasileiro eleito é o mais conservador desde 1964. Enquanto isso, Aécio Neves, o candidato presidencial mais conservador dentre os três com chances reais de eleição, subiu assombrosamente nos últimos dias de campanha e chegou ao segundo turno.

O 2014 brasileiro, pelo menos quanto às suas eleições, está para seu rebelde Junho de 2013 como as eleições francesas de 1969 estiveram para o Maio de 1968. Para se ter uma ideia, a eleição presidencial francesa de 69 foi a mais reacionária do pós-guerra, na qual o candidato mais "à esquerda" era um stalinista que ficou em terceiro lugar. 

Nada de espantoso, eu mesmo falei isso há mais de um ano, mais que isso dá [muito] a pensar, dá.

Irrupções do desejo semelhantes ao Maio de 1968, naturalmente, se explicam pela excedência material em choque com uma estrutura política ultrapassada. No caso brasileiro, isso é óbvio. O cobertor do sistema político local, que já se sabia curto, se tornou insuficiente face às novas demandas materiais trazida não só pelos avanços sócio-econômico como, sobretudo, pela revolução desejante: os pobres foram autorizados a desejar. Tais irrupções, no entanto, não desencadeiam processos reformistas ou revolucionários apenas por si. 

Uma revolta contra o sistema, quando desacompanhada de uma tática e estratégia reformista ou reformadora, tende a encontrar um termidor na normalização -- muitas vezes "democrática", no sentido eleitoral.  E isso não torna essas ebulições "reacionárias" ou"de direita". Nem impede que, no longuíssimo prazo, boas coisas possam acontecer em virtude daquilo. Mas elas não trazem o paraíso de imediato, às vezes até libertam demônios difíceis de esconjurar. É a vida.

Agora, o fundamento de Junho de 2013, embora permaneça em disputa sobre sua origem, repousa num fato incontestável: apesar do crescimento pequeno do PIB, o fato é que o aumento da renda do trabalhador, o emprego, o crédito para os consumidores e os programa sociais estavam lá, alavancando as condições gerais de vida. A figura do brasileiro típico, na sua origem, etnia, cor de pele, pela primeira vez ganhava [algum] protagonismo. A composição de classe mudou, às custas de arranjos pragmáticos dentro do mesmo sistema político e isso gerou abalos.

O problema é justamente o discurso que o Estado assumiu para "organizar" o processo: criar um país de classe média. A classe ascendente deveria, então, ser classe média. E classe média não corresponde à faixa de renda, classe social própria no sentido marxista ou nada do tipo, ela é -- sobretudo no capitalismo cognitivo --, uma forma de pensar e, sobretudo, de sentir. A gradual construção do ex-pobre como classe média implica em um novo regime desejante, um controle.

No mais, a questão central da tese dilmista do país de classe média é um só: a classe média é, talvez, a única das classes que não deseja ser si mesma. Ela quer ser rica, revolucionária e fazer um outro mundo, se tornar índio qualquer coisa, menos continuar a ser classe média. Um país de classe média é, antes de tudo, um país de insatisfeitos. As nossas peculiaridades políticas -- a ausência da cidadania, a falta de anticorpos para o autoritarismo de Estado -- e até urbanísticas brasileiras -- o concentração de demográfica em certas cidades, o trânsito, a falta de transporte público, a precariedade no campo etc -- colaboram para acirrar ainda mais isso.

O impulso que move um Aécio, longe de ser qualquer programa nacional, é basicamente um plano construído desde cima pelo grande capital, o qual encontra na sociedade um respaldo no sentido da negação do que está posto: o que não quer dizer que, no entanto, isso se transforme em sustentação política durante um eventual governo, muito pelo contrário. Mas é um movimento sem dúvida poderoso do ponto de vista eleitoral.

Objetivamente, o entourage aecista vê no arrocho -- o "ajuste" -- um bom caminho, afinal o "salário mínimo" estaria alto demaisO custo da política de austeridade na Europa, na qual conquistas sociais bem mais antigas e profundas se sobrepõem, apresenta um custo altíssimo. No caso brasileiro, os efeitos disso seria desastroso, sobretudo se combinado com uma espécie de oligarquismo antigo: como na relação negativa de Aécio com a mídia mineira e a internet, a sua posição anti-índios e pró-latifúndio ou sua proximidade com o que há de mais retrógrado no mundo do futebol.

O trabalhismo de Dilma criou armadilhas para si mesmo, a exemplo do trabalhismo original, quando pôs a execução de um grande projeto à frente do método político e, sobretudo, da democratização da sociedade. Precisará assumir um discurso que ponha os direitos -- e a nossa esquecida cidadania -- à frente de qualquer economicismo, caso queira vencer uma eleição que será apertadíssima. É o caminho que lhe resta.

A crise política brasileira, transformada em política de crise, no entanto, é problema posto para muito além de 2014. Não é a questão que, de repente, algum ingovernável acene para a liberdade, mas que o desgoverno -- que é governo, muito governo, mas tanto que não ocorre -- apareceu no horizonte. É necessário luta, tática e estratégia, senão pior do que tá, fica.





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