quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Bolsonaro e o Discurso do Rei

Aroeira

Um homem só é rei porque os seus súditos se comportam perante ele como um rei -- Slavoj Zizek


A liderança de Bolsonaro causa choque e temor. Mas não só em seus antagonistas. Os seus próprios eleitores querem isso, sentem isso, pedem isso, mas no lado oposto, voto de protesto e fúria, sem razão e contra ela. Na segunda-feira, dia trinta de julho, ele, o líder nas pesquisas eleitorais nas quais não constam o nome de Lula, foi ao Roda Viva da TV Cultura repetindo uma série de barbaridades como de costume -- da defesa da ditadura e da tortura, passando pela negação do racismo, até chegar culpabilização da higiene das mulheres pela mortalidade infantil (!).

Desta vez, contudo, Bolsonaro falou com mais autoridade do que costume para uma bancada passiva, fria, pouco ágil -- a qual no máximo esboçava algum absurdismo. Muitos apontaram a fragilidade dos entrevistadores. No entanto, a bem da verdade, o Roda Viva que acossou Manuela D'Ávila, foi antipática com Boulos, morna com Ciro e doce com  Marina e, sobretudo, com Alckmin é aquela que, se utilizando de um discurso liberal, permitiu Bolsonaro falar à vontade. Todos os Roda Vivas com os (pré) candidatos constituem uma série coerente entre si.  

A série que buscava inquirir os presidenciáveis brasileiros era, na ideologia e nos discurso, um uníssono que vê a esquerda como ameaça, renega normalizando a extrema-direita e aponta a direita do establishment como solução -- e a introdução da extrema-direita no debate serve tanto para colocar o bode na sala para se amenizar a direita tradicional como, ainda, para capturar o sentimento de indignação e catalisa-lo para um ponto inofensivo ao sistema, bem longe da esquerda -- ou pior: de uma esquerda extra-partidária.

A esquerda liberal -- se é que se pode dizer isso --, perdida na defesa da "liberdade de expressão de Bolsonaro", e a direita liberal, disposta a tudo para neutralizar qualquer esquerda, inclusive naturalizar a fala de um candidato de extrema-direita, de certa maneira se unem numa mesma estratégia impotente, cuja ação, direta e colateralmente, nos conduz, aqui no Brasil como em boa parte do mundo, ao avanço e a volta de variadas formas de extremas-direitas.

O projeto liberal de direita que comanda o país, contudo, produziu a própria sobrevida de Bolsonaro: até a intervenção militar do Rio, a bolha de intenção de votos dele parecia ruir, indo para baixo dos 15%, mas depois dela, ele volta ao patamar dos 20%, ensaiando uma nova queda. Por sinal, a mesmíssima intervenção militar perante a qual Bolsonaro se diz contra, defendendo medidas de violência mais radicais, o que lhe faz se favorecer do clima de populismo punitivo sem se comprometer com os resultados da -- fracassada -- intervenção de Temer.

Bolsonaro que, por seu turno, é enfrentado por essa mesma esquerda liberal que lhe dá legitimidade de fala apenas no aspecto cultural e comportamental, o que em si é justamente o que o candidato quer. Ora, para além do fato se Bolsonaro deva ou não ser ouvido, não resta dúvidas de que seria absurdo alguém convidar o Maníaco do Parque para dar entrevistas na condição de patinador -- embora ele o  tenha sido de fato, mas a operação ideológica que ocorre com Bolsonaro, no entanto, impede que nós o vejamos dessa forma. 

Como então ouvir, e deixar falar, Bolsonaro defendendo crimes contra a humanidade explicitamente, em rede nacional, numa televisão pública e educativa?

Não, Bolsonaro não oferece nenhuma resposta estrutural a nenhum problema sério do Brasil, mas catalisa na forma de violência, e de violência contra os mais fracos, os pobres, oprimidos, a indignação contra o sistema -- mas a violência de Bolsonaro é inofensiva ao Poder, à oligarquia nacional. Bolsonaro é, portanto, o freio de mão do sistema, ele não é o establishment, mas é também manobrado por ele. Tudo isso causa um bojo de normalização da sua presença no debate público.

Tampouco é o discurso liberal, ou uma vertente de esquerda sua, que irá derrotar Bolsonaro. Nem o liberalismo de direita, que critica greves e insatisfações, nem um liberalismo de esquerda que não ofende as estruturas econômicas ou institucionais de como se exerce o poder, repetindo um politicamente correto inócuo. 

As chances do ex-capitão do exército vencer realmente ainda são distantes, mas sua presença no segundo turno vai se tornando uma possibilidade cada vez mais crível, uma vez que nem o discurso ou a prática do establishment têm a capacidade de neutralizá-lo -- sua impotência é mais um problema interno de sua organização, não mérito de seus adversários --- e do outro lado tem interesse em mantê-lo no páreo, devido suas disputas interiores.

Sobre o último ponto, Bolsonaro é o bode na sala que normaliza Alckimin e, ao mesmo tempo, capta uma indignação que organizada seria revolucionária. Do outro, Bolsonaro é alguém que fustiga e a priori tira votos de Alckmin. Nesse jogo entre a direita e à esquerda do sistema, Bolsonaro é uma bomba prestes a explodir e que os concorrentes ficam jogando um para o outro, como num desenho animado -- e pode ser que exploda ambos.

Enfim, Bolsonaro é uma peça fraca no jogo, justamente por isso está onde está, mas as forças que o alavancam não são ocasionais. Assim, os riscos dessa tremenda, e subestimada, armadilha em que estamos caindo são enormes.