sexta-feira, 30 de março de 2012

Estação Terminal Francisco Morato

A multidão lota a estação
É a última - ou, conforme se veja, a primeira - parada da Linha Rubi da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) - um segmento da antiga Santos-Jundiaí - que tem como outro extremo a Estação da Luz. Ontem, ela foi palco da maior revolta registrada contra a pane no sistema elétrico daquela linha que pôs abaixo o seu funcionamento: os passageiros, revoltados, arrebentaram a estação provisória, um arremedo de obra - cuja acessibilidade é zero - levantado rapidamente, e sem muito zelo, enquanto a velha estação passa por reformas. 

O resultado do episódio de ontem é a expressão do descaso pelo qual os usuários daquela linha - em geral, trabalhadores sub-remunerados que se deslocam para o Centro de São Paulo, a quarenta quilômetros de distância, todos os dias: panes na rede elétrica (embora menores do que esse, mas também incômodos), obras nas linhas que acontecem durante o horário de funcionamento (inclusive o horário de pico), problemas com os trens e toda sorte de acidentes (como a colisão de trens, ano passado, na Barra Funda).

Mesmo a aquisição de novos trens, pelo então governador José Serra, foi problemática: pois isso precedeu o investimento nos trilhos - o que força novas obras para adapta-los às máquinas adquiridas - e, sobretudo, a reconstrução da carreira dos funcionários da CPTM, além de uma necessária reforma na organização geral da linha. Enfim, foi como comprar uma frota de ônibus espetacular para rodar em ruas sem asfalto, dirigidos ainda por motoristas sem perspectiva salarial ou profissional.

Os problemas da CPTM já estavam bem claros ano passado, quando uma paralisação dos ferroviários, há quase um ano, deixou a região metropolitana de São Paulo um dia sem trens. Além da falta de planos para reformar, o secretário dos transportes Saulo de Castro Abreu Filho - ex-secretário de segurança pública nos tempos dos ataques do PCC - ainda demonstra uma insensibilidade crônica pelos problemas tópicos que surgem, sobretudo os de ordem laboral.

A revolta de ontem - que importou em destruição das catracas e da improvisação toda -, foi, portanto, o fecho de um estado de coisas que dá o norte para entender a situação dos trabalhadores em São Paulo: banidos para uma periferia distante, deslocam-se entre trinta e cinquenta quilômetros diariamente para trabalhar, circulando nas áreas nobres uniformizados e enquadrados, em um processo que os aparta - econômica, moral ou psicologicamente - da fruição do espaço urbano que sustentam - em um grau particularmente perverso, até mesmo para a catástrofe urbanística nacional.

Embora se pudesse dizer que surpreendeu a contraditória agilidade do Estado quando o assunto é enviar a tropa de choque ou, ainda, reconstruir o (arremedo) de estação em tempo recorde - como se não tivesse acontecido rigorosamente nada -, a verdade é que tudo isso é bastante óbvio. Os trens de São Paulo, com sua belíssima tarifa de R$ 3,00 por cabeça - e um bilhete único de estudante, na capital, que sequer vale durante as férias escolares - são uma fonte de arrecadação preciosa - e em dinheiro vivo - da qual não se deixa nem o bagaço - e ainda que isso atenda a toda sorte de interesses espúrios, é uma política desgraçadamente fracassada na medida que gera um profundo prejuízo graças a perda de produtividade.

Ainda assim, o suplício da viagem de trem alude a algo que, talvez, o sistema não prescinda: a humilhação e destruição física diária como forma de se ensinar a obedecer. Mesmo que isso signifique a perda de energia dos trabalhadores, talvez compense chegar a tanto para torna-los mais bovinos. Mas há um limite. Ontem, ele chegou: na poesia muda que se constrói em meio à polifonia do vagão lotado - que, como diz uma pichação sagaz na Barra Funda, sempre tem o seu lado de navio negreiro - fez-se a resistência.


sábado, 24 de março de 2012

Crise Mundial: Culpa e a Fé na Terra do Capital

Cristo Carregando a Cruz -- Bosch
Frequentemente, usamos um vocabulário tão obviamente teológico que não nos damos conta disso, seja na política ou, sobretudo, no Direito e na construção da Economia - a última quase que ela mesma um puro teologismo. Ao observarmos outras línguas, próximas ou nem tanto, nos damos conta desse processo com mais facilidade.


É só pensar na coincidência absoluta entre culpa e dívida na língua germânica - convergidas no vocábulo schuld - ou mesmo que, em grego, como nos relata Giorgio Agamben em recente artigo para o La Repubblica, até hoje, pistis é tanto fé quanto crédito, em um sentido financeiro usual mesmo - como em "banco de crédito".


Em ambos os casos, não é preciso ir muito longe para ver as relações: não é complexo, embora seja trabalhoso, relacionar os conceitos de culpa e de dívida. Crédito e fé, por sua vez, possuem uma relação um tanto mais clara, uma vez que o étimo que forma o primeiro vocábulo é o mesmo de crença ou credo -mas não deixa de ser curioso notar a coincidência absoluta na língua helênica que faz "banco de crédito" ser, também, "banco de fé".


Se somos uma sociedade concretamente guiada por uma dívida (culpa) infinita, pelas trocas assimétricas das quais o próprio Capitalismo se sustenta - de uma forma mais clara do que o Estado também faz por meio das leis -, é fácil considerar a importância de uma esquizoanálise, na medida em que se a culpa passa a ser um processo que se insere na área de coextensividade entre os ditos campos psicológico e social, não na dobra, mas quem sabe como elemento dobrante, duplicante.


O mesmo podemos dizer dos banqueiros, que no fim das contas, como bem aponta Agamben, são os sacerdotes modernos, pois são eles que controlam a fé (o fluxos, refluxos e influxos de crédito), o que torna o Capitalismo uma religião como dizia Benjamin - ou melhor, que ele também se organiza teologicamente. 


Erra Agamben, no entanto, ao dizer que "a feroz religião do dinheiro devora o futuro" ou que pela governança do crédito se governa o futuro dos homens: o futuro, por favor, é ele próprio governança, o poder financeiro - enquanto tentáculo do capital - não "sequestra por completo, a fé e o futuro, o tempo e a esperança", mas sim faz uso de todos eles para realizar sua operação como a religião o propriamente dita o fez.


Ainda que intua isso, o menor dos problemas é o fato dos banqueiros exercerem esse sacerdócio, mas sim o dele existir. Pouco importa se quem o ocupará são os padres, yuppies ou  dirigentes comunistas, tampouco adianta dizer "fora banqueiros!", sendo que para longe de Keynes, os banqueiros não são parasitas, mas sim uma engrenagem do sistema - sua atividade, muito pouco nobre, decorre da organização e das reorganizações da dita "economia real" [risos]. 


Spinoza, que Agamben leu e entendeu de uma forma um tanto confusa, já nos trazia uma boa explicação para isso no seu Pensamentos Metafísicos, ao estabelecer um critério de distinção entre o concreto e o imaginário: aquilo que é adquirido pela dívida é concreto, mas a própria dívida é ela mesma imaginária, ficcional - eis aí a chave para entender a dominação no ocidente, a tentativa de fazer passar o imaginário por concreto e eliminar toda imaginação (para que não se reconheça ela mesma).


Se a insolvência é concreta e se dá por inércia, o pagamento da dívida é imaginário e exige uma modulação de comportamento, uma intervenção no desejo alheio normalmente operada pela norma legal. Não é, por certo, a mera força que garante o adimplemento das dívidas existentes pela face da terra, mas sim a sujeição voluntária: e como poderia haver sujeição voluntária sem culpa? Sem autopunição e autopenitência?

O bom pagador - ou o bom cumpridor de leis, o cidadão de bem - é, antes de mais nada, um adorador de flagelos e suplícios, que se sujeita a todas as agruras da vida para arcar com a dívida infinita: como o anzol com carne mais longo do que a corrente que ata cães a um trenó, habilmente manuseado pelo cocheiro, sua existência é apenas um ardil para produzir movimento como o mestre deseja. 


O problema é, ao contrário do que grande parte do movimento socialista sempre denunciou, tanto menos o opressor e do que o paranoico masoquista, que na busca pelo seu prazer perverso a todos arrasta para um mar de sofrimentos - como um grande abraço de afogado. Criar uma práxis que subverta isso é, antes de mais nada, constituir uma educação para o prazer, para a satisfação e para a vida.





  

terça-feira, 20 de março de 2012

Sobre o Direito ao Corpo

Blond Girl On a Bed (1987) -- Lucien Freud
No presente momento, uma série de debates fundamentais - como aquele sobre a descriminalização do uso das drogas, sobre a permissão do aborto ou sobre a eutanásia  - gira em torno do que se convém chamar de direito ao corpo. A grande questão, que se desdobra em tantas e se espraia na praça pública é o seguinte: sob o ponto de vista jurídico, até que ponto é possível gozar de autonomia sobre o próprio corpo e até que ponto se pode intervir no corpo de outrem pelo bem comum? Antes de mais nada, façamos um breve digressão.

Os positivistas e demais ideólogos da modernidade, por evidentes razões estratégicas, dirão que um direito existe quando ele é reconhecido no ordenamento jurídico, grafado na forma de norma constitucional ou legal. A eles interessa dizer isso porque o discurso jurídico precisa parecer monopólio do Estado,  isto é, não pode haver espaço para polifonia alguma - e, por tabela, toda mudança legal que ceda anéis para os desvalidos e minorias precisa parecer uma outorga, um ato de bondade e superioridade do Poder Soberano.

Com efeito, diremos aqui que um direito existe quando ele é reivindicado, é válido quando o dever - correlato, simultâneo e imediato - que disso decorre consegue identificar um objeto para imputar-lhe uma obrigação  e, por fim, é efetivo quando produz uma prática relacional contínua de coexistência. Não há, nunca houve e, possivelmente, jamais haverá outorga: o soberano não é piedoso, ele é apenas e tão somente prudente. Os direitos são forjados na luta e é isso que a História, e a análise de como se constrói um discurso jurídico, nos ensinam.

O discurso jurídico cinde a realidade que enuncia em duas, criando relações que pouco tem a ver com liberação, pois cada direito conquistado remete a um dever para algo ou alguém, isto é, a uma relação de dívida na qual - temporariamente ou não, infinitamente ou não, flexivelmente ou não - haverá sujeição. Não à toa, o cristianismo e o marxismo - os dois projetos mais profundos de renovação do Homem já concebidos - se viram diante do dilema de como abolir o Direito, embora eles mesmos tenham terminado se quedando à linguagem jurídica.

Mas é usando a linguagem jurídica que clamam as multidões desde muito tempo, como nos prova a tragédia de Antígona, inadvertidamente usada para provar um direito natural - como se pudesse haver  um direito antinatural -, os gritos da plebe romana ou os prantos dos desalojados do Pinheirinho. De lá para cá, pouco mudou, revoluções vieram e se foram, a política continuou não conseguindo se realizar por si própria: e talvez essa disfuncionalidade explique como o Direito resistiu e se desenvolveu até hoje.

Voltemos ao direito ao corpo: o presente debate decorre de uma concepção de que o Estado possui prerrogativas assentadas em uma pretenso domínio de uma dita realidade objetiva para, assim, regular como os sujeitos dispõem sobre seus próprios corpos. Mas ao afirmar esse direito, imputa-se um dever difuso: não apenas em relação ao próprio Estado, mas também para a dita sociedade. Como todo direito, aquele de dispor sobre o próprio corpo não deixa, ironicamente, de implicar  na disposição sobre outros corpos - para que esses não disponham de si de modo a, por meio disso,  não disporem de outrem.

Uma aplicação unilateral desse direito reivindicado repete o que havia no Velho Regime: o senhor  é intocável, mas pode tocar em outrem que, por tabela, assume a posição eterna de escravo. Supor uma via dupla de tanto - de forma constitucional e social, portanto - termina sempre próximo ao centro de gravidade da cidadania hegeliana: o cidadão como senhor dos seus direitos e escravo de seus deveres, logo, como dono de seu corpo e, contraditoriamente, sujeito a ter nele inscrito as ordens do sistema, o que remete a uma mediação por uma ordem superior que lhe transcende e, ao mesmo tempo, na  qual ele se realiza, o Estado.

No nosso sistema legal não deixa de existir direito à dispor sobre o próprio corpo, porém, como isso é exercido se dá dentro de uma escala de mediação jurídico-estatal que determina o modo como se dará essa disposição - dentro dessa via de mão dupla constitucional. A presente reivindicação ateste certa insatisfação quanto a isso, suscitando, por meio de discurso jurídico que volta-se à transformação da lei, que os termos nos quais se dá esse exercício precisam ser reajustados.

Mas ainda que a luta por mudanças legais na direção de uma coexistência para melhor seja perfeitamente válida, a questão é que dentro da perspectiva do Estado não há liberdade porque aquilo que é inerente ao Direito, sobretudo quando traduzido em um sistema legal e pretensamente monista, hierarquizante e centralizador, implica sempre em uma teia de servidões interdependentes. 

Por mais que seja importante e, até mesmo, premente lutar por mudanças legais nesses termos, ao fazê-lo dentro de uma perspectiva na qual o Estado é premissa do raciocínio é atestar a constatação de é permitido fazer apenas aquilo que o poder soberano não objeta - pois o mandamento de inspiração iluminista de que é permitido fazer tudo que não é vedado tem pés de barro, já que a matriz do Estado é precisamente sua capacidade de dividir, segregar, deixar de fora. 

Positivistas mais sofisticados como Bobbio chegaram a admitir isso na medida em que, dentro de sua teoria da supremacia constitucional, afirmava que se é próprio da lei civil permitir  fazer tudo que ela  não proíba, por outro lado, a norma da Constituição [do Estado] contém normas cujo cumprimento é estritamente obrigatório  - isto é, tudo que está nelas é dever e nada que esteja nela há de se cumprido, aprioristicamente o que serve como explicação lógica da hierarquia piramidal delas sobre as primeiras: a matriz do sistema é a sua capacidade axiomática, o que determina o que fica de fora ou simplesmente é incluído como excluído.

Ainda que se possa argumentar que é possível, e talvez necessário para escapar à captura estatal, construir uma jurisprudência - no sentido romano - fundada no pluralismo jurídico e alheia ao Estado - o que é sim possível pela natureza da linguagem jurídica -, ainda assim, a capacidade de realizar a potência do próprio corpo ainda estará condicionada à dívida - e ao desejo de transgressão bem como os recalques causados pela escala de vedações e obrigações mútuas, isto é, na negação da integridade do corpo.

Como dispor do próprio corpo se ele está alienado de si, partido e duplicado pelas relações jurídicas? E por que pretender falar em disposição do próprio corpo traduzido na forma de linguagem jurídica? O fato é que a linguagem jurídica particiona o corpo a começar pelo deslocamento do desejo, em outras palavras, trazer o debate da livre disposição ao próprio corpo - isto é, da autonomia mais elementar que pode existir - para o campo do direito é quimérico: o direito de livre disposição do próprio corpo esbarra no fato de que onde há linguagem jurídica - pior ainda, um Estado que produz um intrincado sistema legal -. a indisponibilidade dos corpos é condição necessária. 


O constitucionalismo moderno - ou pós - esbarrará sempre no fato de que a ordem que ele instaurou no passado - e que sustenta hoje em dia - é e sempre será uma forma de diluição da polaridade senhor-escravo em uma universalização da segunda condição com a passagem do mando para um sistema sem nome - e o capitalismo contemporâneo não poderia ser outra coisa senão a forma concreta mais semelhante ao deus sem nome dos antigos hebreus.

Uma autonomia dos corpos demanda irmos para além do Estado e, também, de qualquer forma de organização que faça uso da forma jurídica como linguagem: é preciso caminhar para o campo da afirmação pura - algo que Paulo sintetizou de um modo particularmente feliz no "amai a todos como a si próprio", pois subverte a linguagem da lei eliminando seu pólo prescritivo -, as relações ancilares inerentes ao Direito serão sempre inimigas da realização plena da potência dos homens.










domingo, 18 de março de 2012

A Última Missão do Herói do Ar Moreira Lima

Moreira Lima, foto de Stefano Martini
O major-brigadeiro Rui Moreira Lima é uma figura singular não só pela sua potente lucidez que demonstra aos 92 anos de idade: herói da Força Expedicionária Brasileira - pela qual participou de 94 missões durante a Segunda Guerra Mundial - e resistente contra o golpe de 64 - o que lhe valeu 17 anos sem poder voar -, ele agora volta à cena para uma última missão: lutar pela aprovação de uma Comissão da Verdade efetiva.

A trajetória do major-brigadeiro traz à tona uma questão pouco abordada: como o Golpe de 64, acima de tudo, resultou na resolução, da pior maneira possível, de uma guerra interna dentro das próprias Forças Armadas Brasileiras, que desde sua profissionalização durante o advento Republicano, se postavam como um elemento de mediação quase transcendental, o poder moderador dos Bragança feito instituição armada.

Nas fileiras das Forças Armadas se manifestaram os mais diversos e possíveis setores da sociedade brasileira: positivistas puros, comunistas, nacionalistas, liberais, fascistas. Se não havia dúvidas que o Brasil deveria seguir a linha reta do progresso, o mesmo já não poderia se dizer de qual seria a forma certa de marchar em direção a ele. 64, portanto, não foi apenas um golpe de Estado, mas um processo interno das FFAA na resolução de uma guerra interna que ficou exposta, a bem da verdade, desde a Intentona nos meados dos anos 30.

Se 64 operou essa apodrecimento nas FFAA, a fala de Moreira Lima rompe a consonância e prova que ainda há, por incrível que pareça, pluralidade ali. O que é perigosíssimo para o consenso militar pós-64, que embora tenha resistido à democratização, hoje enfrenta uma nova geração de militares pouco afeita a continuar carregando o ônus de uma Ditadura em relação à qual não tem responsabilidade alguma.

É um fio de alegria porque a dissonância de Moreira Lima rompe, inclusive, com o consenso que serviu de substância a forja da presente Comissão da Verdade: que quase não sai, mas saiu com uma aprovação ampla no Congresso - que de tão ampla restou rasa, basta ver sua letargia atual.


Naturalmente, seu funcionamento desperta o mais profundo ódio na direita nacional, que vê na desconstrução da ditadura pela qual ela conspirou, golpeou a ordem e sustentou por duas décadas, o seu grande calcanhar de aquiles - ou o maior impeditivo para ela pensar em voltar ao comando do país de forma direta e franca, com um partido e um nome assumidamente conservador.


Basicamente, a grande polêmica se situa em relação à possibilidade de punição dos torturadores, em relação à qual se alega, de acordo com decisão do STF, a tese de que a expressão crimes conexos aos políticos cobriria toda sorte de crimes cometidos pelos "dois lados" - uma falácia óbvia que, inclusive, valeu condenação do Brasil em corte internacionais.


A questão, ao meu ver, não seria de discutir punições, mas é fato que a reles leitura da Lei de Anistia percebe-se o evidente: 


(1) ela não é, nem se pretendeu a ser lei de autoanistia, isto é, jamais se voltou para os crimes que o Estado cometeu no período, até porque ele não os admitiu; 
(2) a própria Lei de Anistia, em seu texto, excetua explicitamente os crimes de sangue, portanto ela foi restrita e se voltou única e exclusivamente aos considerados crimes políticos; 
(3) os crimes cometidos não têm natureza penal estrita, pois foram cometidos por agentes do Estado, de forma massiva e sistemática, logo, não estamos falando de crimes contra a humanidade.

Portanto, contorcionismo lógico são setores que se põem a favor do penal se dizerem, de repente, contra a punição de torturadores, o que é bem diferente de assumir uma postura ética contra o punitivismo, por sua inefetividade - e ainda que eu seja contra a punição penal, não posso me furtar de denunciar esse tipo de escapismo que nada tem a ver abolicionismo, mas com a verdade face de qualquer punitivismo (precisamente, a seletividade). 


O que está em jogo, no entanto - e Moreira Lima o sabe muito bem - é a memória histórica denegada. Inclusive em relação à história das Forças Armadas brasileiras, que arcam como todo por uma herança maldita de sua velha cúpula - e da atual, por inércia e corporativismo. O rompimento do consenso nas fileiras militares, inclusive, abre o precedente para que o cômodo e anestésico consenso político-partidário atual caia por terra. 



segunda-feira, 12 de março de 2012

Cai Ricardo Teixeira

Teixeira no perfil da Piauí: o começo do fim
E sediar a Copa do Mundo, por vias tortas, deixou a sua primeira herança bendita para o Brasil: Ricardo Teixeira, presidente da CBF, renunciou ao cargo. O controverso Teixeira, oligarca de primeira hora do futebol brasileiro, deixa um legado que pode parecer ambíguo a um primeiro (e desatento) olhar, mas que, na verdade, é pouco equívoco: sua importância histórica é o de ter sido o condutor da erosão do futebol brasileiro, parasitando sua potência cultural no processo que o tornou esse pastiche mercantil.

Nada de má consciência, o problema de Teixeira não está em ter sido, como dirigente, um mau exemplo para a cristandade, mas de ter levado a cabo um processo que, com desvios morais ou não, foi politicamente desastroso para o país e para o futebol. Foi pôr o Brasil em função de um mercado internacional inclemente, como mero exportador, enfraquecendo os clubes e tornando a Seleção uma marca qualquer que, de amistoso caça-níquel a amistoso caça-níquel, se converte em um fantasma.

A problemática da realização da Copa no Brasil, atrasos de obras, ameaça de uso do seu poder para prejudicar jornalistas e determinados órgãos da mídia que não lhe eram simpáticos e afins,  o levaram a inesperada queda. E não preciso muito: Dilma não fez força para que caísse, mas também não lhe serviu de arrimo, coisa que Lula, por uma infinidade de motivos, fez. E isso foi o suficiente para que Teixeira, que balançava desde os anos 90, caísse.

Se era um velho sonho de Lula trazer a Copa para o Brasil, o que o fez aturar Teixeira por tanto tempo, o custo disso para o derretimento do futebol brasileiro foi altíssimo. E Teixeira, achando-se o dono da situação e ameaçando a todo momento melar a competição, morreu como peixe, pela boca: ele achou pairar sobre os interesses econômicos da Copa, quando ele próprio tornou-se um problema, amplamente denunciado pela imprensa internacional e falando pelos cotovelos como na épica entrevista à Piauí.

Sua saída, alegando motivos de saúde, e a posse de José Maria Marin, malufista de carteirinha, ex-governador de São Paulo nos anos 80 - tendo assumido brevemente no lugar de Maluf, de quem era vice -, se não é animador, também não marca qualquer tipo de rearticulação da ordem, mas sim uma solução tampão.Agora, mais do que nunca, o horizonte de possibilidades em relação à democratização do futebol brasileiro se reabre. Ela certamente não virá dos céus, como a queda de Teixeira, não veio, mas é o cenário mais favorável em tempos. Embora a luta seja bem dura.




sábado, 10 de março de 2012

Poder Constituinte, Vida e Direito


"Maldição sobre o passante que insultar essa suave cabeça pensativa. Será punido como todas as almas vulgares são punidas — pela sua própria vulgaridade e pela incapacidade de conceber o que é divino. Este homem, do seu pedestal de granito, apontará a todos o caminho da bem-aventurança por ele encontrado; e por todos os tempos o homem culto que por aqui passar dirá em seu coração: Foi quem teve a mais profunda visão de Deus" (Ernest Renan sobre a estátua de Spinoza em Haia [acima])



Uma das questões fundamentais que se impõem quanto ao pensamento jurídico é, sem sombra de dúvida, aquela que trata da dobra entre o poder constituinte e o poder constituído - o que diz respeito à própria persistência desse poder constituinte, uma vez fundado o Estado. Essa duplicação fantástica diz muito sobre o que se tornou o Direito, isto é, para qual direção ele foi voltado  pelo projeto da Modernidade - sobretudo no que toca à insistência em eliminar qualquer manifestação de pluralismo jurídico, a começar pelo plano teórico, convertendo todo o Direito em mero direito estatal, para contê-lo nas paredes rígidas do Estado e da Lei, além de esconder a obviedade de que só a rebeldia controla efetivamente o poder.


Existe uma anedota pela qual o filósofo do direito argentino Genaro Carrió, em seu Sobre Los Limites del Lenguaje Normativo, estabelece uma crítica interessante ao conceito de poder constituinte originário: alguns militares procuram um certo Dr. K. para lhe pedir um parecer sobre uma questão capciosa; seriam eles legítimos para, uma vez desfechada a revolução que pretendem realizar, redigir uma nova Constituição tomando a função de poder constituinte originário? 


Depois de muitos volteios, a conclusão do Dr. K é de que o dito poder constituinte originário é, antes de mais nada, uma impropriedade, uma legitimação retroativa para uma Constituição já feita, pois não poderíamos falar em um poder na medida em que nada foi constituído, ou melhor que nenhuma competência foi determinada. Logo, não é campo de estudo da ciência do direito se prestar a estudar um fenômeno.

Kantianamente, Carrió está tão preocupado com o exercício e operação do poder que precisa delimita-lo com precisão. Ao elevar tal preocupação ao extremo, ele chega a uma conclusão acidentalmente libertária: o poder o é, justamente, por ter sido constituído, logo, ele não é constituinte - mais do que isso, o poder se apodera (divide, segrega e afasta, não constitui, não é uma propriedade sua). Por vias e motivos totalmente outros, a filosofia da imanência contemporânea chegará a uma conclusão parecida, o poder não constitui, ele é um constituído pela mesma vida que ele, no entanto, busca capturar.

A falácia que Carrió ecoa nessa ocasião é repetir um corte epistêmico à la Kelsen - cujo nome, não à toa, começa com o mesmo K do seu Dr. imaginário e que se postou da mesma maneira sempre que chamado a colaborar com trabalhos de redação de constituições -, isto é, considerar que direito só é fundado no momento em que há um Estado constituído para, assim, eliminar a possibilidade de qualquer pluralismo jurídico. Só interessa ao jurista o Direito traduzido em ordenamento legal.

A questão, no entanto, é histórica: como afirmar que o Direito é linguagem necessariamente estatal se seu surgimento precede, cronologicamente, a origem do Estado? Ou como negar que a Constituição, por sua vez, não passa de um contrato em escala gigantesca - levado a cabo   por uma burguesia que não conhecia forma melhor de resolver seus problemas-, o que torna os trabalhos de sua redação tão jurídicos quanto sua existência? Isso tudo nos remete ao que interessa: Ou melhor, o que diabos é o Direito?

Delimitar o Direito como sistema de normas somente produzidas pelo Estado é pouco e conveniente. Seria como negar que as próprias mudanças legislativas - desde a criação de leis ou a ineficácias de certas normas - ocorrem pela manifestação ativa da multidão, reivindicando seus direitos - isto é, fazendo uso de linguagem jurídica. Usar de linguagem é fazer o próprio Direito - e linguagem jurídica existe desde Roma, onde - salvo anacronismos que podem transformar bigas em automóveis e cavalos em motores elétricos - não havia Estado ou Constituição.


Um direito é passível de existência apenas no momento em que alguém o reivindica - e ao fazê-lo imputa um dever a algo ou alguém, o que também pode se operar pela via inversa, com a autoimposição de um dever -, ele valerá se o que foi reivindicado seja possível e será eficaz, por fim, apenas no momento em que determinadas contingências transformem a forma de comportamento que ele intenta em prática, naturalmente por assentimento mútuo - o que, para o bem ou para mal, está intrinsecamente ligado à servidão voluntária.

O Direito termina por ser essa linguagem que duplica o mundo que enuncia, construindo relação atributivas fundadas na pressuposição da existência de uma dívida - finita ou infinita, móvel ou não. O Direito dá origem às leis, mas com elas não se confunde, fazê-lo é se debruçar a um projeto que busca tirar a legitimidade dos múltiplos discursos jurídicos para reduzir a polifonia ao monólogo normativo estatal. A Constituição, portanto, é uma das possibilidades decorrentes do uso da linguagem jurídica. 

Voltando a questão da possibilidade de um poder constituinte originário, se dizemos que ele existe, é porque alguém já o constituiu, ele não poderia ser uma fonte transcendente de nada. Mesmo que aceitássemos uma ambiguidade em torno da palavra "poder" [potestas] - e a possível confusão com "potência" [potentia]  -, é certo que da potência realizada surge o ato e não qualquer espécie de poder. Não há efetivamente cisão, há um mesmo processo em curso.

Aliás, a maneira como Kelsen e o próprio Carrió veem a questão do poder constituinte é mais oportuna ainda: o dito poder constituinte originário, não-jurídico, é absolutamente livre e determina uma forma de poder que é condicionada. Repete-se aqui o teologismo que debatíamos por aqui mesmo há pouco e que designa, convenientemente, que o exercício do poder parte de uma entidade sem nome, não-nomeável e que a todos e tudo nomeia para assim podê-los ordenar. Eis o poder constituinte originário: uma entidade que atribui infinita e irresponsavelmente sem ser atribuída por nada (e por ninguém) ou mesmo poder ser atribuída de qualquer coisa.

É um verdadeiro mal passo o ponto em que Carrió cita Spinoza, comparando seu conceito de Deus - e por tabela a relação entre natureza naturante e natureza naturada - com a relação entre o poder constituinte originário e o poder constituído - e isso decorre de um detalhe tão pequeno quanto elementar: Spinoza nomeia Deus e isso faz toda a diferença, sobretudo porque se tratar de um pensador judeu. 


Nomear Deus - ao enunciar o famoso Deus sive Natura, isto é, Deus ou Natureza - é a pedra de toque da teoria spinozana da imanência, pois a partir disso, é rompida a vedação hierárquica que justifica uma fonte transcendente para o poder, colocando-o no mesmo plano por qualificação. Deus está nominado por ser nominável, por nunca ter havido razão para não tê-lo sido. Ele está no mesmo plano daquilo que ele nomina.

Portanto, a dobra da qual falamos inicialmente - a relação entre poder constituinte e poder constituído - não encontra suas sementes em Spinoza, muito pelo contrário: ela é desdobrada por ele, uma vez que Deus é realmente nominável - embora imaginariamente ele possa não ser -, assim a transcendentalidade que serviria para justificar o mundo da Lei - por vedação hierárquica - torna-se meramente especular, ficcional. 


Se Deus tem nome e ele corresponde à própria Natureza - e ele é causa e efeito de si mesmo, confundindo essência com existência -, temos a imanência como real, o que se aplica também à Política e ao Direito, tornando a liberdade uma construção concreta, pois deixa de haver poder intocável e o próprio poder passa a ser apenas uma possibilidade de organização.

É possível, a partir daí, pensarmos uma liberdade absoluta pelo ingovernável ou pelo inominável, pois o sistema das nomenclaturas é imaginário. Se tudo pode ser nomeado, significa que as coisas podem deixar de sê-lo, nomear - e em seguida identificar ou se identificar torna-se uma opção. Aí, torna-se possível, inclusive, (contra-) ordenar o ordenante e neutraliza-lo ao passo que se sua forma de manda se sustenta pela possibilidade de nos nomear, nós podemos devolver-lhe na mesma moeda.

Isso é mais do que adentrar a questão das afirmações plenas e indomáveis das multiplicidades - de modos, de diferenças - que constituem  a  Natureza. Como ordenar um tumulto, uma legião ou uma multidão? As afirmações rebeldes e malditas da multiplicidade só podem ser desfeitas senão fazendo as singularidades que a compõem confessarem - isto é, assumirem - um nome. Depois de Spinoza, pior ainda, a própria máquina inquisitorial perde a intangibilidade de seu mecanismo axiomático.

Não à toa, Kant, que lhe é posterior, busca por meio da teoria da causa primeira recolocar a filosofia no caminho seguro e inofensivo da tradição. Cortes epistêmicos em locais e momentos estratégicos voltam a aparecer, filosoficamente legitimados, para não incomodar o poder: o que dizer da norma hipotética fundamental do kantiano Kelsen (que atribui normativamente sem ser atribuída ou ser atribuível)?

No mais, Spinoza se presta, ao falar em natureza naturante e natureza naturada, a estabelecer uma complexa operação metafísica na qual ele tenta explicar a relação entre potência e ato, não entre relações de poder - o poder, em seu esquema teórico, no fim das contas é um artifício que pode ser manuseado por razões estritamente estratégicas e práticas, à maneira de Maquiavel.

O que há é um enorme potência revolucionária que é a vida afirmada feita irrupção do desejo revolucionário - que produz, entre outras coisas, o Direito como saída desesperada para a resolução de uma velha questão: a realização da política. É um pouco do que Negri fala em em seu Poder Constituinte, embora coloque isso como uma dicotomia entre poder constituinte e poder constituído, além de insistir no uso da primeira terminologia - enquanto dentro de nossa análise é fundamental tanto distinguir rigorosamente poder de potência quanto trazer para o campo da ciência do direito.


No primeiro caso, o risco estratégico de insistir no ardil do poder constituinte é reconhecer que o poder constitui, o que além de quimérico, ainda serve aos seus anseios de captura - inclusive referendando, conscientemente ou não, a lógica da outorga, isto é, das conquistas sociais como concessões - e de legitimação retroativa - só se fala que algo foi poder constituinte originário, uma vez tendo uma determinado poder sido estabelecido (isto é, um Estado tendo sido parido ou, que seja, sido reconfigurado). 


Considerando ainda que a produção constitucional é ela própria produção jurídica, o que é apenas parte de um processo revolucionário - precisamente aquela que diz respeito ao seu enquadramento (resulte em um Estado ou não, afinal não a relação mútua), mas não deixa de sê-lo. Uma ciência jurídica precisa, portanto, se voltar para isso - e ser cientista do direito não é advogar pela primazia daquele saber prática como forma definitiva dos conflitos humanos, mas de compreender sua função, movimento do qual fatalmente decide-se sobre sua utilidade (aceitar o ardil ideológico da modernidade que confunde estrategicamente Direito com Lei, portanto, não é um bom começo).


Mas Negri está certo sobre a subsistência da potência revolucionária frente a constituição do poder. E falemos, pois, em constituição do poder e não no contrário, fato que se dá quando o momento revolucionário é trespassado por uma formatação jurídica que o leva a constituir contratualmente, processo do qual resultará uma peculiar potestas (na forma de máquina teológico-política definitiva, no caso da modernidade) que atuará não constituindo, mas sim dividindo - a começar a potência humana da sua realização plena em ato.


O que há é uma potência desejante libertadora, cupidez plena, pervertida em seu início e tornada constituição do poder até seu desfecho em poder constituído - como na Rússia revolucionária que foi da explosão libertadora do desejo aos complôs, massacres e julgamentos falsos que fizeram ascender Stalin nos anos 20 até seu coroamento nos anos 30. O poder, no entanto, como um cão que persegue o próprio rabo sem jamais alcança-lo, é produto perverso da mesma Vida que busca capturar (seja pela disciplina e/ou controle): toda resiliência do poder atual se volta para a capacidade da Vida se reinventar e escapar dele. 


É desdobrando esse processo de perversão que podemos encontrar pistas para a tão sonhada emancipação.

segunda-feira, 5 de março de 2012

São Paulo, a Birita e as Proibições

Bons tempos de Jânio, pelo menos a farsa tinha graça
Enquanto as negociações seguem a todo vapor para a montagem dos palanques municipais pelo estado bandeirante - sobretudo em sua mui cobiçada capital -, eis que desponta na opinião pública um projeto de lei do luminar legislativo Campos Machado (PTB) que visa, dentre outras coisas, proibir a venda de bebidas alcoólicas (bem como seu porte) em locais públicos. 

Para além do caráter farsesco e diversionista - como é próprio desses templos das banalidades chamados assembleias legislativas -, o referido projeto ainda traz a carga proibicionista, recalcada e mal-humorada que tem dado a tônica na política paulista nos últimos tempos. É como um retorno a Jânio, só que sem auto-ironia e carregado de politicamente correto - em suma, é possível rir do projeto, mas não por conta dele.

O ethos disso não é propriamente um direitismo claudicante, mas um desgosto pela liberdade que não é incomum também à esquerda do espectro - e se de um lado ele tira o  gosto pelo punitivismo, do outro ele tira uma recém-adquirida obsessão pelas denotações, pelos termos, pelos gestos e não por seus significados (enfim, isso que aconteceu com parte significativa da esquerda brasileira quando ela começou a papagaiar o liberalismo americano).  

E esse politicamente correto vai bem além de implicações moralistas, ele se aprofunda e curva a política ao judicialismo e à overdose jurídica, nos legando um cenário no qual os tribunais passam, gradativamente, a ocupar a centralidade que cabe à praça pública na medida em que todas as demandas passam a ser traduzidas no binarismo da linguagem jurídica - e aí as coisas saem do campo da potência e da vontade e caem no vazio da lei, onde tudo se torna relações de servidões mútuas e totais, mediadas pelos juízos da razão.

Machado, candidato a vice-prefeito da capital na chapa de Alckmin em 2008 e deputado estadual longevo com seu curral eleitoral seguro, certamente nada tem a ver com os desvarios da esquerda, mas ele se serve disso. Um estado mais recalcado e triste certamente interessa ao seu projeto, seja no que toca aos seus efeitos práticos ou na distração pública que coisas como isso produz.

No fim, resta uma massa disforme que passa batida nessa geleia geral da nossa política de hoje, onde para o nosso bem, daqui a pouco, estaremos comendo sopa de alface sem sal, tudo em nome de um jogo de espelhos que certamente visa ao mascaramento de coisas bem mais sérias - ou parafraseando Zizek numa anedota, se em alguns lugares as coisas são sérias, mas ainda não catastróficas, por aqui, elas são catastróficas, mas certamente não são sérias.






domingo, 4 de março de 2012

Sobre a Identidade: o Nome de Deus

A Criação de Adão -- Michelangelo

Bruno Cava, para variar, nos brindou com mais um belo texto em seu blog, fruto das discussões que participou acerca do conceito de identidade no Ocupa Teoria - e de algumas conversas que tivemos. Identidade é muito sobre o que tratamos e polemizamos há tempos, já que a própria construção platônica - ou seja, o ramo tradicional da filosofia, embora eu prefira "sedentário" - se assenta sobre ela. Identidade é a condição de ser idêntico, isto é, nutrir um vínculo interior com algo igualmente revelado (na verdade, concebido). O processo de identificação decorre de um outro movimento que demanda a nomeação das coisas, isto é, identificar é organizar uma multiplicidade qualitativamente, estabelecendo um rótulo que delimita sua potência de agir, mas se opera em teias, juntando isto a aquilo e assim por diante (isto é como aquilo, logo precisa, ou é passível, agir até aqui e não até ali).

Quem somos? é, não à toa, uma questão tão recorrente, mas ela esconde a submissão a uma paixão triste. Não fosse isso, porque a preocupação em definir nossa existência e a quem isso interessaria, se pôr um limite em nós mesmos não parece muito vantajoso? Isso suscita a presença e atualidade o Poder enquanto instância que faz sombra à vida. Em primeiro lugar, não há poder sem mecanismos de identificação. Uma ordem precisa de um destinatário definido, ordens têm dificuldades para lidar com multiplicidades, por isso precisam, antes de mais nada, reduzi-las a termo - normalmente em uma linguagem binária como é, p.ex., a linguagem jurídica. Ordens, no entanto, são meios, portanto, falamos de um ordenante invisível e evidente como o deus de Victor Hugo.

Vejamos, a tradição judaica, enunciar o nome de deus é uma falta grave, pois isso seria uma subversão da ordem, uma vez que é o Pai que nomeia o Filho. Isso suscita o óbvio: os velhos hebreus já percebiam que uma estrutura de Poder se assenta sobre sua capacidade de nomear outrem, pois é impossível ordenar o inominado ou o inominável, a multiplicidade pura, o fluxo não codificado ou indecodificável - nesse sentido, desde as tarefas regulares do Estado em identificar seus súditos até a pretensão da tortura se unem em torno do mês fim, é preciso dizer nomes. Se o teológico - ou, no caso, o proto-teológico - sempre foi uma construção abstrata voltada para gerir coisas bem concretas por meio de simbolismos, inaugurava-se ali uma noção fantástica em forma de dobra.

Acerca dessa dobra, podemos dizer: (i) o Poder precisar ter a capacidade de nomear a tudo e a todos e (ii) o Poder não pode ser nomeado, pois aí ela estaria inserido em um plano de imanência na qual a sua pretensa hierarquia seria impossível - em um exemplo bem brasileiro, podemos dizemos que o STF é quem declara o que é constitucional ou não, mas não há outro entre que possa deliberar acerca da constitucionalidade de suas decisões, logo, suas decisões pairam sobre todos juridicamente, uma vez que não podem ser nomeadas e embora sirvam para nomear a todos (as pessoas e os atos).

Caminhando um pouco mais para o futuro e para o oeste, quando Platão se presta a desenvolver seu sistema, negando o desejo e disfarçando o papel criador do filósofo sob o manto da transcendência, ele tem uma preocupação eminentemente política: resolver as questões da democracia, que ele vê como nociva, hierarquizando saberes e desenvolvendo a instância da mediação - uma pré-teoria do Estado, digamos, uma teoria de órgão para o corpo, isto é, dar um status supremo à boulé (o conselho supremo de Atenas) para que ela capture de vez a irrupção do desejo já traduzida na forma de problemas (isto é, proboulema, as moções que os cidadãos submetiam à boulé).

A experiência jurisprudencial romana, por sua vez, nos legou uma linguagem misticamente bipartida: se eu digo que vou escrever, faço uma afirmação concreta da minha potência e do meu desejo, se eu digo que tenho o direito de escrever, tudo muda, pois eu estou dizendo que eu posso em virtude de que alguém deve permitir ou criar meios para que eu consiga fazê-lo. Tudo isso parte de um pressuposto místico de que alguém deve algo para mim, de forma finita ou não, isto é, há uma servidão deduzível de uma dita essência das coisas.

Se o direito moderno é estatal e absoluto, certamente isso decorre do fato de que a teoria da justiça da filosofia helênica - organizada como forma de selecionar multiplicidades, enquadrando o desejo - passa a falar a língua do juridiquês romano e aceita o deus sem nome hebreu. A dívida torna-se infinita, não porque assim o é nosso grande credor, mas sim porque não temos como pedir ou exigir perdão de um credor absoluto que é o supremo inominável nominador e, não se esqueçam, quem nos nomeou. Ele pode enunciar ordens para nós e nós não temos, efetivamente, como lhe dirigir a palavra. Se pairam dúvidas se há mesmo o deus sem nome, na prática, não resta dúvida que há um Estado que faz suas vezes. 

Como toda servidão é voluntária, nos acomodamos com isso e pagamos um preço alto que é submetermos nosso desejo, desde muito, aos avatares do inominado. Tanto que por mais que gostemos das revelações de Wikileaks, não deixamos de ver aquilo tudo como um pecado muito grande: tudo bem de sermos identificados, pode parecer ruim, mas há boa intenção nem que seja só nos fins, mas desfazer o mistério da operação divina de identificação - que é meio caminho andado para passar a nomear seu agente, jogando seus avatares no mundo mortal - nos é assustador.

Na Internet, vivemos a primeira experiência em larga escala na qual a identidade era relativizada - nesse sentido, a Internet é literalmente cínica, pois, como os velhos cínicos, que decorriam de Sócrates, mas eram alheios e antagônicos aos platonismos, máscaras são só meios para atuarmos na patética representação que Platão quis converter as nossas vidas, para ironiza-la. Sem um dispositivo de identificação absoluta, o Poder topa com um cenário que lhe escapa pelos dedos, daí essa busca insistente por mecanismos disciplinares ou mais flexíveis de fichamento dos usuários da rede.

O mesmo podemos dizer sobre a luta das minorias: ninguém é uma minoria (mulher, homossexual, pobre etc), mas o é tornado por meio da identificação, o que produz efeitos reais. Quando essas minorias se levantam, naturalmente o fazem de forma identitária, usando-se do vínculo com aqueles com o quais estão vinculados na desdita. A diferença entre um grupo emancipador e um grupo sectário é que o primeiro compreende que a identidade é um ente imaginário e não real, que a luta é para fora e rumo ao Oceano, para devir multidão, enquanto o segundo quer se fechar na Ilha na qual ele mesmo foi exilado.

Lutar contra a identidade não é, portanto, questão de optar entre ela e o anonimato - como observa bem Bruno, usando-se do perspectivismo -, mas sim, complemento, por meio de uma teoria suficientemente cínica* que consiga fazer uso dessas diversas máscaras pragmaticamente - como faço quando escrevo este blog com minha identidade civil numa época em que aqueles que pertencem à minha geração se calam por medo do controle (jurídico, econômico, moral etc) ao qual ela é submetida. Ao mostrar desprezo pelas amarras que a sociedade me impõe quando escrevo em nome próprio, não afirmamo a identidade, mas sim a sobrecarrego, por não me render às expectativas que o dispositivo de identificação pretende me incutir quando me identifica.

E tudo isso é parte da nossa tarefa positiva de trazer à baila como todos esses jogos de espelho patéticos só servem para esconder que, no fim das contas, o exercício do Poder se volta unicamente para a auto-satisfação do seu operador paranoico, uma criança mimada e ela mesma medrosa.


quinta-feira, 1 de março de 2012

Sucessão Paulistana: Serra está lá, e Daí?

Há poucos dias, José Serra foi anunciado candidato a prefeito de São Paulo. Isso, a despeito do estardalhaço todo da mídia, não é novidade alguma, muito pelo contrário, novo é agir como se isso fosse algo surpreendente: os candidatos do PSDB à prefeitura de São Paulo se resumem a Serra e Alckmin - assim mesmo, alternadamente - desde 1996. 

Aliás, pulando 1998 - quando o falecido governador Mário Covas disputou e conseguiu sua reeleição - são Serra e Alckmin os únicos dois nomes que se revezam na disputa da prefeitura de São Paulo, do governo paulista e da Presidência da República. Tirando o governo do estado, onde os tucanos sempre têm vencido, os fracassos se somam em nível federal e, na capital bandeirante, só houve sucesso em 2004, com o próprio Serra.

O PSDB perdeu a oportunidade de se renovar, que fosse, pelo menos em seus nomes. Tudo seguiu o mesmo enredo, Aécio segue sem fazer oposição, a conversa em São Paulo continua a passar pelas duras negociações de bastidores entre Serra e Alckmin - e, no fim das contas, FHC precisa sair do descanso para resolver a confusão de alguma (ou qualquer) forma.

E Serra sai para disputa com sentimentos conflitantes. Já declarou, à boca pequena, que sua candidatura é um problema - uma bifurcação que aponta para uma derrota vergonhosa ou uma vitória de pirro que o afastaria de Brasília -, às vezes se anima com a possibilidade de que, com uma eventual vitória, possa tomar impulso para disputar com Aécio a indicação presidencial para 2014 e, não raro, solta que pode terminar no PSD de Kassab, caso vença e não lhe apoiem dentro do PSDB na disputa pela Presidência.

Talvez esse seja um dos casos mais emblemáticos do exaurimento do arranjo política do pós ditadura - ou melhor, daquele nascido de sua oposição e afirmado com sua queda. Sobre esse processo, basta ver todo o protagonismo, nas negociações pré-candidatura, de uma figura torpe como Kassab - um prefeito que não conseguiu cumprir metas elementares de governo - para se ter ideia do estado de coisas em que vivemos.

Existe, no caso paulistano, um jogo de fundo muito mais interessante do que as curiosas composições, recomposições e decomposições partidárias: é a questão da gestão dos espaços públicos e a relação da especulação imobiliária com isso. Uma candidatura, em um cenário hipercompetitivo como esse, custa caro. E qual o preço que cobrarão esses prestativos financiadores?

Nesse jogo, a figura de Serra, um sujeito marcado pelo gosto de destruir correligionários e a ambição sem limites, só torna mais desagradável o que já não era bom. Criticar Serra não pode ser um subterfúgio para uma crítica a esse processo em geral, mas não pode deixar de ser feito. 

P.S.: Serra tecnicamente ainda não é o candidato do partido. Ele passará por uma prévia para legitimar seu nome, mas já sabemos o resultado disso.