domingo, 18 de março de 2012

A Última Missão do Herói do Ar Moreira Lima

Moreira Lima, foto de Stefano Martini
O major-brigadeiro Rui Moreira Lima é uma figura singular não só pela sua potente lucidez que demonstra aos 92 anos de idade: herói da Força Expedicionária Brasileira - pela qual participou de 94 missões durante a Segunda Guerra Mundial - e resistente contra o golpe de 64 - o que lhe valeu 17 anos sem poder voar -, ele agora volta à cena para uma última missão: lutar pela aprovação de uma Comissão da Verdade efetiva.

A trajetória do major-brigadeiro traz à tona uma questão pouco abordada: como o Golpe de 64, acima de tudo, resultou na resolução, da pior maneira possível, de uma guerra interna dentro das próprias Forças Armadas Brasileiras, que desde sua profissionalização durante o advento Republicano, se postavam como um elemento de mediação quase transcendental, o poder moderador dos Bragança feito instituição armada.

Nas fileiras das Forças Armadas se manifestaram os mais diversos e possíveis setores da sociedade brasileira: positivistas puros, comunistas, nacionalistas, liberais, fascistas. Se não havia dúvidas que o Brasil deveria seguir a linha reta do progresso, o mesmo já não poderia se dizer de qual seria a forma certa de marchar em direção a ele. 64, portanto, não foi apenas um golpe de Estado, mas um processo interno das FFAA na resolução de uma guerra interna que ficou exposta, a bem da verdade, desde a Intentona nos meados dos anos 30.

Se 64 operou essa apodrecimento nas FFAA, a fala de Moreira Lima rompe a consonância e prova que ainda há, por incrível que pareça, pluralidade ali. O que é perigosíssimo para o consenso militar pós-64, que embora tenha resistido à democratização, hoje enfrenta uma nova geração de militares pouco afeita a continuar carregando o ônus de uma Ditadura em relação à qual não tem responsabilidade alguma.

É um fio de alegria porque a dissonância de Moreira Lima rompe, inclusive, com o consenso que serviu de substância a forja da presente Comissão da Verdade: que quase não sai, mas saiu com uma aprovação ampla no Congresso - que de tão ampla restou rasa, basta ver sua letargia atual.


Naturalmente, seu funcionamento desperta o mais profundo ódio na direita nacional, que vê na desconstrução da ditadura pela qual ela conspirou, golpeou a ordem e sustentou por duas décadas, o seu grande calcanhar de aquiles - ou o maior impeditivo para ela pensar em voltar ao comando do país de forma direta e franca, com um partido e um nome assumidamente conservador.


Basicamente, a grande polêmica se situa em relação à possibilidade de punição dos torturadores, em relação à qual se alega, de acordo com decisão do STF, a tese de que a expressão crimes conexos aos políticos cobriria toda sorte de crimes cometidos pelos "dois lados" - uma falácia óbvia que, inclusive, valeu condenação do Brasil em corte internacionais.


A questão, ao meu ver, não seria de discutir punições, mas é fato que a reles leitura da Lei de Anistia percebe-se o evidente: 


(1) ela não é, nem se pretendeu a ser lei de autoanistia, isto é, jamais se voltou para os crimes que o Estado cometeu no período, até porque ele não os admitiu; 
(2) a própria Lei de Anistia, em seu texto, excetua explicitamente os crimes de sangue, portanto ela foi restrita e se voltou única e exclusivamente aos considerados crimes políticos; 
(3) os crimes cometidos não têm natureza penal estrita, pois foram cometidos por agentes do Estado, de forma massiva e sistemática, logo, não estamos falando de crimes contra a humanidade.

Portanto, contorcionismo lógico são setores que se põem a favor do penal se dizerem, de repente, contra a punição de torturadores, o que é bem diferente de assumir uma postura ética contra o punitivismo, por sua inefetividade - e ainda que eu seja contra a punição penal, não posso me furtar de denunciar esse tipo de escapismo que nada tem a ver abolicionismo, mas com a verdade face de qualquer punitivismo (precisamente, a seletividade). 


O que está em jogo, no entanto - e Moreira Lima o sabe muito bem - é a memória histórica denegada. Inclusive em relação à história das Forças Armadas brasileiras, que arcam como todo por uma herança maldita de sua velha cúpula - e da atual, por inércia e corporativismo. O rompimento do consenso nas fileiras militares, inclusive, abre o precedente para que o cômodo e anestésico consenso político-partidário atual caia por terra. 



3 comentários:

  1. Dr. Hugo (hehe),
    Preliminarmente (hehehe):
    "Se 64 operou essa apodrecimento nas, a fala de Moreira Lima"
    Acho que você quis dizer "apodrecimento nas FFAA", não é?
    " desperta o mais profundo da direita nacional"
    Acho que você quis dizer "mais profundo ódio", né não?
    No mérito (hehehehehe):
    1) Quanto ao ódio da direita, acho que tem outra coisa: tenho a forte impressão de que quem joga molotov na comissão da verdade só o faz para ter chance de falar mal do PT. Digo-o porque os "argumentos" desse pessoal nunca são propriamente argumentos, são antes manifestações de ódio à Olavo de Carvalho (Reinaldo Azevedo ainda seria mais contido). Quer dizer, a insanidade chegou a tal ponto que esse povo acha que vale TUDO para falar mal do PT, inclusive defender a ditadura.
    Pode apostar que, se fosse alguém do PSDB a tocar a instalação da Comissão da Verdade (principalmente FHC), as mesmíssimas pessoas que hoje ficam vomitando "petralhas comunistas terroristas fascistas chavistas" estariam louvando aos 4 cantos a coragem desse grande estadista ao querer esclarecer um período triste de nossa história e trazer alívio às famílias que perderam entes queridos para um regime que perdeu a noção de direita e esquerda e torturava arbitrariamente. (Porque, você sabe, para defender qualquer coisa da esquerda, é essencial dizer que a coisa em questão independe de posição política, é apartidária, técnica ou o que for.)
    2) O corporativismo das FFAA tem sua razão de ser (da qual discordo): a idéia é que apagar a memória é melhor para não manchar a imagem da instituição – afinal, é questão de tempo até pessoas esquecerem. O problema é que isso é um baita tiro no pé, e, como tem ficado gradativamente mais claro, essa teimosia está "manchando a imagem da instituição" ainda mais.

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    1. Sim, HWB, obrigado pelos reparos - e Freud há de explicar porque eu cometi o ato falho de sonegar FFAA e ódio do texto ;-)

      Sobre os pontos:

      1) Mais ou menos isso. Em termos de classe média brasileira, é fato que bateriam menos em FHC do que em um petistas, mas - e isso é importante -, bateriam muito mais em Lula do que em Dilma. Ainda assim, uma Comissão da Verdade de verdade, como é o objeto do post, geraria mal-estares da parte de quem fosse, sobretudo entre aquela fatia gorda do eleitorado conservador - mas duvido que isso ultrapasse mais do que um terço dele, embora a participação da mídia contra poderia reforçar o caldo, mas não o suficiente para impedi-la.

      2) Acho que o corporativismo das FFAA tem muito a ver com um velho oficialato que realmente defende o Golpe de 64 e, não se esqueça, com oficiais de patente média um tanto acomodados e presunçosos - somado à falta de instrução relativa dos soldados, sobretudo do Exército (basta comparar as nossas tropas com as de Colômbia e Venezuela para ver como elas são muito menos instruídas).

      abraços

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    2. "e Freud há de explicar porque eu cometi o ato falho de sonegar FFAA e ódio do texto"
      Engraçadinho. :^D

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