domingo, 28 de novembro de 2010

Ainda o Rio: Padilha e a Favela Eterna

Complexo do Alemão, a nossa faixa de Gaza, segundo entrega até mesmo O Globo 


Segue a guerra civil no Rio de Janeiro. Guerra de domínio entre forças assimétricas, narrada como espetáculo - lindamente absurdo e absurdamente lindo, o velho conquistar corações e mentes. Nem adianta argumentar o quanto, racionalmente, essa retomada do controle total daquela área pelo Estado tenha nuances inaceitáveis - ou seja de um todo despropositado -, o que importa ali - e para quem projetou aquilo - é produzir o delírio um específico delírio na multidão. Enquanto isso, os intelectuais se degladiam por versões, análises, soluções, críticas. O discurso oficial, claro, tem seus intelectuais. Um deles, trata-se do sujeito que ganhou certa proeminência nessa área, o glorioso José Padilha, aquele mesmo, o autor da série Tropa de Elite - que em relação ao segundo fiquei em falta com os visitantes desta Casa no que toca uma crítica. Diante desse episódio desditoso e de recém alçada proeminência como especialista em violência urbana e Rio pela mídia nacional, eu não podia perder essa oportunidade e ir um cadinho além.


Não, eu não gostei do Tropa de Elite 2. Nem poderia gostar. Em toda sua pretensão de nos iluminar sobre a conjuntura atual do Rio, o filme não passa de um pastiche de filme hollywoodiano, obedecendo, inclusive, às suas premissas mais elementares: (I) O elogio permanente à violência, demonstrada como forma máxima da expressão humana; (II) A castração das personagens, assexuadas até quando se insinuam (aqui, nem isso), reles autômatos sem libido; (III) A invisibilização da questão social, o Trabalho inexiste, tampouco qualquer menção à sua exploração. Está tudo lá, a violência é o ápice da expressão, quem domina a técnica para emprega-la mais e melhor é justamente para quem os holofotes se voltam, não existe troca de libido - ou possibilidade de -, tampouco - e principalmente - não existe questão social: Onde é que estão os fundamentos econômicos de tudo aquilo? A favela é demonstrada como um amontoado de pequenos empreendedores explorados pelos aneis burocráticos do Estado - pior do isso, a favela é narrada como se sempre estivesse ali o que, por tabela, sempre estará. Sem embargo, uma naturalização imperdoável. 


De repente, toda a problemática do Rio de Janeiro, narrada pela voz estranhamente onipresente do ex-Capitão Nascimento - uma personagem inserida no plano, ao mesmo tempo, que consegue enxerga-lo de forma transcendental e assim nos explicar o que se passa, até quando corrige seus erros de avaliação -, é reduzida a um problema de gestão do mecanismo vigilantista-policial - e talvez de um certo gigantismo do Estado, destinado a produzir corrupção e explorar os empreendedores. Boa parte dessa perspectiva está presente em um artigo de Padilha publicado ontem no Estadão, sobre aquela crise: De repente, qualquer ligação da violência carioca com a luta de classes é produto da imaginação de uma certa "esquerda naïve" - e a esquerda naïve, sempre ela, serve como  meio de desqualificar toda a esquerda ou, de repente, de álibi para dizer que "essa história de luta de classes não existe". Outro ponto da sua argumentação é como toda a problemática social do Rio, de repente reduzida no número do IDH, não faz diferença alguma, afinal, baseado nele, existem cidades piores e menos violentas. Vamos ao texto:

Afinal, por que o Rio de Janeiro é assim?

Uma resposta, a da esquerda naïve, postula que a violência no Rio de Janeiro decorre da miséria e da luta de classes, e diz que para combatê-la é necessário acabar com as diferenças sociais, distribuir a renda e educar a população. Há também a resposta da direita naïve, que reduz a violência do Rio a um problema de repressão e diz que ela se explica pela falta de firmeza da polícia e das leis.
As duas respostas estão erradas, contradizem fatos conhecidos.
A primeira não dá conta de cidades que têm índices de desenvolvimento humanos (IDH) piores do que os do Rio de Janeiro e índices de violência menores. A segunda está na contramão da história, que demonstra que incrementos na repressão podem piorar os índices de violência. Foi assim no governo Marcelo Alencar, quando o Estado adotou a remuneração faroeste e passou a premiar os policiais em função do número de criminosos que “abatiam”. A partir daí, o número de autos de resistência, de policiais que declararam ter matado criminosos que resistiram à prisão, cresceu e continua absurdo até hoje.

Não, favelas não são um produto da natureza. Mesmo a mais rústica esquerdinha socialista - aquela que Padilha gosta de usar para comprovar suas teses - sabe disso e o próprio Padilha, talvez,  o intua também. Aquela população está em permanente atrito, na esfera econômica, com quem lhe oprime, mas manifestação disso nos campos social e político se estrutura mediante o grau de entendimento que ela tem e, antes de mais nada, como a produção desejante dela é concretizada nessa conjuntura. Negar isso é pressupor uma simetria que não existe ou dizer que essa assimetria é neutra, não produz efeitos, o que é igualmente patético. Buscar refúgio em um número tão abstrato quanto o IDH é outra falácia óbvia, ainda que se trate de um referencial que nos ajude a tatear no escuro, ele não pode - nem deve e, suspeito, nem temo como - ser usado como instrumento definitivo para explicar fenômenos sociais desse porte; estamos falando de um elemento que é calculado a partir da produção bruta per capta - sequer da renda salarial - e da mera quantidade de educação e de vida das pessoas. 


A questão é que para entender um fenômeno de violência, antes de mais nada, é preciso qualificar e não quantificar esses dados, além de considerar mais alguns outros, entendendo, por exemplo, como essa população, dividida em classes que se antagonizam, está fisicamente disposta na urbe. A violência nas cidades passa além de segurança no emprego ou reles segurança alimentar - embora parta delas -, mas por um fator não menos importante: Segurança e dignidade habitacional. A ausência da reles garantia de um teto e/ou a existência de espaços urbanos incapazes de permitir que a comunidade interaja verdadeiramente são fatores importantes na composição da violência, posto que o confinamento de grandes contingentes explorados ou excluídos em pequenos e precários espaços físicos, tende a acirrar as contradições e tensões existentes - que já não são pequenas -, retirando qualquer possibilidade de melhora da vida, realidade da qual só possa nascer uma cultura de violência. Embora possa surtir algum efeito, colocar a melhora da gestão da polícia como meta central de resolução desta problemática é um engôdo à serviço de uma ideologia de repressão - não muito diferente daquela cultivada pela "direita naïve", embora o referido cineasta se ponha, estrategicamente, ao centro e acima desse debate político.


Enfim, o script da Tropa de Elite 3 está escrito, para Padilha, a saída está na melhora da administração da violência legítima do Estado, o que exige a redução dos seres sensíveis e afetivos das favelas a autômatos quantificáveis - mas não qualificáveis em sua condição humana - e, uma vez mais, a invisibilização de qualquer relação disso com o que se passa na esfera econômica. Sua conclusão e seu modo de se portar diante do debate público são fruto de uma sofisticada construção intelectual sobre a qual, atentem para isso, se assenta a nova direita brasileira, ciosa pela retomada da totalidade da hegemonia, justamente neste momento em que a luta de classes nunca esteve tão evidente neste país. É esse combate que a esquerda precisa ter bem claro em mente, isto é, se a cegueira que as luzes lhe causaram permitam ver para além do racionalismo insuficiente.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

A Violência para muito além do Rio de Janeiro

foto ap
Ao longo de toda a quinta-feira, a operação militar realizada em algumas favelas cariocas com a finalidade de "combater o tráfico de drogas", com direito a confrontos semelhantes aos de uma guerra civil e uma boa quantidade de mortos e feridos, foi destaque nos telejornais - alguns, como o Jornal Nacional, narravam com demasiado entusiasmo o uso de alguns blindados da Marinha -, movimentou o Twitter, virou assunto na blogosfera e na imprensa mundial. Apesar das singularidades da situação carioca, não falamos de nada que destoe muito de como se estrutura a violência no mundo contemporâneo e do resto do Brasil. 


O impasse, no que toca às drogas, é claro: Proibições, sejam elas legais ou não, não neutralizam desejos, mas sim os desloca como nos ensina o velho Deleuze. Se existe um desejo por parte da sociedade, especialmente jovens, de consumi-las e - e isso é o que importa aqui - se no fim das contas disso resulta uma alta quantidade de viciados, a questão não se vincula de uma questão objetiva - apenas a natureza de tais substâncias -, mas também de uma questão subjetiva, por que tantos jovens estariam viciados em drogas? Porque desejam usa-las e desejam muito - e são os desejos que produzem nossas necessidades e não o contrário, pois se assim fosse, não teríamos como desejar o nosso próprio mal.


Não adianta surgir com argumentos racionalistas que apontam esse desejo como algo absurdo, posto que usar drogas não seria fruto da real necessidade humana, o que faria com que caíssemos num vazio no qual quem consome compulsivamente drogas é iludido, ignorante ou imoral - em suma, eu sugiro que abramos mão de Kant uma vez mais, camaradas. Deseja-se muito consumir certas substâncias porque vivemos numa sociedade cuja dinâmica impele grupos imensos de nossa sociedade a tanto, do mesmo modo que grandes quantidades de pessoas estão viciadas em comida, álcool, tabaco, internet e outras drogas perfeitamente lícitas. 


Portanto, não é sequer o escapismo o cerne da questão, mas sim como o Capitalismo, em sua particular forma de nos disciplinar física, psicológica e socialmente, faz com que as pessoas construam válvulas de escape na qual externam, de forma violenta, seu desejo reprimido, o que por vezes equivale a um vício, a um comportamento compulsivo. Em alguns casos, chegamos à fuga da realidade, no qual o consumo de álcool, maconha, cocaína e outras substâncias mais, acabam se tornando objeto dessa compulsão. No caso das drogas ilícitas, isso move um mercado, ou melhor, um compartimento seu, que articula tais demandas. O Mercado depende da lei, mas pode funcionar a despeito dela. Surge o tráfico e ele abastece tais usuários, movimentando uma boa quantidade de recursos, envolvendo os aneis burocráticos e movimentando, vejam só, até o mercado de armas de forma residual à sua atividade principal.


Em um país como o Brasil, onde suas grandes cidades são a expressão perfeita e acabada, em termos urbanísticos mesmo, da enorme desigualdade social - que opera enquanto processo dinâmico - reinante, essa conjuntura chega a um estado alarmante. Num lugar como o Rio de Janeiro, cuja história e geografia colaboram para piorar a situação, a coisa pega fogo. As favelas ficam nos morros, o tráfico mantém o controle dessas regiões e o Mercado - sempre ele - articula uma nova situação, a demanda de segurança nessas comunidades é suprida pelo surgimento das milícias - na península itálica do início do século 19º foi o mesmo: Os soldados desgarrados do exército napoleônico roubavam, estupravam e matavam, até que homens de bem se organizaram e passaram a vender serviços de segurança privada, foram-se os soldados, e a futura Máfia passou a vender serviços de proteção...de si mesma. 


Por outro lado, a erosão não só do controle do Estado como do próprio espaço público, por forças privadas completamente imprevisíveis, criam uma situação preocupante nas favelas, em relação a qual não se pode raciocinar com maniqueísmos vários. O fato é que o tráfico só é confrontável por meio de ações de inteligência no que toca a lavagem de dinheiro, ainda que ele só seria derrotado realmente no dia em que as drogas fossem liberadas mesmo, por, digamos, perda total do objeto.


A questão em tela, portanto, não pode ser vista como confronto ao tráfico, isso não passa de um álibi: Estamos diante de uma batalha pela retomada de certo espaço territorial perdido pelo Estado, em relação ao qual ele não prescinde por conta das Olimpíadas - não é, portanto, sequer criminalização da pobreza no combate ao tráfico, posto que não é combate ao tráfico, é luta pela hegemonia territorial pura e simples. Isso não necessariamente é ruim, mas evidentemente não é a solução do problema - nem o maior deles que envolvem essa questão -, assim como não é menos perigosa a maneira como o militarismo pode ser usado no imaginário das pessoas. De todo modo, que fique claro: o abismo aqui é muito maior e já foi aberto bem antes e diz respeito ao esgotamento social e psicológico que o nosso sistema econômico produz. 

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Os Pontos Corridos e a Semi da Sul-Americana

Felipão, peça chave até no Campeonato que já perdeu
O Brasileirão de 2010 segue tão melancólico quanto os melancólicos de esquerda e/ou saudosistas do futebol arte que integram a primeira divisão da nossa imprensa esportiva. O fato de Fluminense e Cruzeiro, clubes na disputa direta pela taça deste ano, enfrentarem um Palmeiras sem muitas chances levanta suspeitas: O Corinthians, arquirival verde, está na disputa pelo título e depende que seu nêmesis, mesmo não tendo mais o que ganhar neste Brasileirão - e ainda com o álibi de estar na disputa da Sul-Americana -, não entregue - como pode ter feito o São Paulo que tomou de 4x1 do Fluminense na última rodada. Por outro lado, Juca Kfouri e outros segue fazendo apologia ao sistema de pontos corridos. O problema é dos clubes, que não éticos, que entregam seus jogos para ferrarem com seus rivais, não do sistema. Parece até a União Soviética dos anos 80, onde a culpa pelo fracasso do Socialismo, em última instância, era do povo ou a Rússia dos anos 90, onde o fracasso do Capitalismo também é culpa do povo - ironia do destino, o mesmo Gaidar que liberalizava geral nos anos 90 era o mesmo que calava os críticos do bolshevismo nos anos 80 na sua função de censor. Ou, futebolisticamente falando, parece até aquele caso daqueles treinadores que pegam um elenco  sem bons alas, bota a turma para jogar para jogar no 3/5/2 e depois reclama dos jogadores. Não, o problema do Brasileirão não é só o calendário que mais atravessado impossível, é também do sistema mesmo, ganha quem souber ser mais morno durante longos oito meses - e isso, pelo visto, Muricy sabe fazer melhor do que ninguém, apesar de ter exagerado na dose no ano passado.

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Na Copa Sul-Americana, o Palmeiras, em um jogo horrível, bateu o Goiás por 1x0 fora - golaço de Marcos Assunção, o melhor jogador de um time que contratou Valdivia e Kléber a peso de ouro, mas que funciona a base das cobranças de falta, chutes de fora de área e do toque refinado do veterano volante, que veio quase de graça. É verdade que Deola e Tinga estão bem, Gabriel Silva tem futuro e Luan e Edinho estão suando a camisa, mas falta alguma coisa de qualidade nesse time verde, algo que precisará sobrar em termos de raça para levar esse título. Esse elenco atual do Goiás é o seu pior dos últimos dez anos. Do lado de lá da chave, LDU e Independiente fizeram um jogão e os argentinos voltaram com um 3x2 para seu país, depois de estarem perdendo por 3x0. É incrível como times argentinos crescem em torneios continentais, o Independiente amarga as últimas posições do seu nacional, mas conseguiu enfrentar de igual para igual o bom time da LDU em Quito, conseguindo um ótimo placar.

domingo, 21 de novembro de 2010

A Pontifícia, a Opressão e o Movimento Estudantil

Semana passada, a PUC de São Paulo teve dias agitados: Enquanto sua reitoria foi ocupada, seus e-groups andaram agitados pelo burburinho que envolvia uma outra discussão por e-mail, ocorrida durante a época das eleições, mas que se agravou bastante nas semanas que se seguiram, na qual uma estudante de quinto ano do Direito sofreu ofensas classistas e racistas. Na Ocupação, os estudantes se debatiam contra a política de mensalidades daquela Universidade, que desde os ajustes decorrentes do corte de verbas públicas para a universidades privadas nos anos Collor, da guinada da Igreja e, por fim, de uma crise subsequente em 2004, levaram a uma lógica de aumento das mensalidades e de seleção de ingressantes basicamente pecuniária, o velho entra quem pode pagar - e bem -, salvo os poucos prounistas (algo em torno de 10% dos estudantes da Faculdade de Direito, das outras, desconheço o número exato) que entram nas cotas desse conhecido programa do governo federal, o que permite que pessoas como a Meire, negra e de origem humilde, andem pelos corredores na condição de estudante - não de forma incólume, como podemos perceber: Os estudantes negros (pagantes ou não) e os bolsistas formam um corpo estranho em um meio cada vez mais homogêneo, contra o qual ocorre uma reação. 


Enfim, esses fatos de repercussão pública são apenas a ponta do iceberg do que assistimos no nosso dia-a-dia, são apenas pontas mais salientes de todo um estado de coisas daquele que já foi o principal centro de pensamento e agitação política de São Paulo - provavelmente do país - nos anos 70-80, se duvidar, pesquise a biografia de boa parte das figuras mais influentes do PT, por exemplo, basicamente, a maioria passou pela Gloriosa. As duas prefeitas paulistanas egressas do PT, Erundina e Marta, tiveram passagem pela Casa, uma enquanto Professora, a outra enquanto aluna. José Dirceu, José Eduardo Cardozo são graduados no Direito, Mercadante foi professora da FEA e por duas vezes presidiu a associação de professores. Tudo isso, num momento no qual o Concílio do Vaticano II soprava bons ventos que, curiosamente, encontravam ressonância cá nos confins do Império Cristão. Atribuir as atuais mudanças pelas quais passam a PUC a problemas meramente administrativos-financeiros é falsificação histórica, pois nega a inegável inflexão política pela qual ela passou; vamos ser sinceros, cobrar quase três salários mínimos de cada estudante é um esforço semelhante ao de buscar saídas de financiamento - público, inclusive - para aquela Universidade.


A ocupação aconteceu, ironicamente, enquanto eu estava num grupo de estudos assistindo ao monumental Terra em Transe. Aparentemente, ela se deu na esteira de uma manifestação contra o aumento das mensalidades, cujas reivindicações foram negadas pelo conselho de administração - dois Padres que representam a Igreja e o Reitor - que desembocou na entrada deles naquele órgão -; ela terminou entre a noite de sexta e a madrugada de sábado, depois de um dia e meio. O que não só pode - como deve - ser questionado é maneira como ocorreu sua construção, afinal como mecanismo de pressão não resta dúvida que se trata de um ponto que pode ser válido, ainda que extremo. Não é segredo para ninguém que, não raro, o movimento estudantil comete erros e aqui foi um deles. A politização feita em relação a uma pauta consensual como essa - cuja discordância está no elitismo atroz ou entre aqueles que têm um um inominável rabo preso com a hierarquia - foi ruim e o processo de pressão, construído em cima da hora, novamente se perdeu em partidarismos e clichês. A forma repentina - e inexplicável - como ela começou foi a mesma de seu término. 


Isso tudo levanta uma questão central. Se por um lado a burocratização das universidades brasileiras, processo nascido na ditadura e consolidado a seguir, torna os corpos administrativos acadêmicos em verdadeiros anéis burocráticos incapazes de responder ou, ao menos, de entender as demandas, por outro lado, o Movimento Estudantil está preso num modo de agir cristalizado, decorrente de uma leitura marxista equivocada: Parte-se de uma leitura iluminista, na qual as pessoas não fazem algo por que desconhecem o que se passa ou são impedidas de sabê-lo ou, em último caso, porque são inibidas por mecanismos policialescos-repressivos - e o que quem escapa a isso teria necessariamente um problema moral, resultando em vitimizações ou perseguições -, o que é um erro comum aos pensadores da tradição de esclarecimento, que de certa forma ainda está em Marx, muito embora ele tenha dado passos importantes para fora disso - mas que passa batido no ME, posto que o leninismo residual não assimilou a temática da Ideologia Alemã por motivos lógicos, afinal, Lenin morreu antes de sua publicação. No fim as contas, isso acaba se expressando de um modo mais radical no marxismo vulgar.


Claro, o elemento chave que acaba escapando a essa forma de análise é o Desejo. A lição que Spinoza nos legou, Reich redescobriu e o Deleuze e Guattari trouxeram à baila com maestria no Anti-Édipo é que mesmo os sistemas mais terríveis são fruto do desejo das pessoas, da produção de seu inconsciente. A omissão diante do descalabro também se motiva por isso, o desejo de estar alheio, de não se envolver de não se comprometer. Por que os explorados não fazem greve o tempo inteiro, se o mecanismo que lhes oprime não cessa? Falta a compreensão que a economia política é uma economia libidinal, não somos autômatos que produzimos e trocamos formalmente coisas, a produção e a circulação do produto na forma de mercadorias é, antes de mais nada, uma permanente interação de afetos. Compreender essa coextensividade entre os campos do desejo e o social é central, mas isso escapa ao que está posto no ME, que é dos meios mais conservadores que se pode conceber. Isso faz com que a não-participação dos estudantes na vida (e na política) acadêmica, fenômeno cada vez mais recorrente, se torne algo próximo de uma contradição indissolúvel para a esquerda acadêmica. É necessário incluir, mas não se abre mão de suas concepções e práticas, além do fato de que as pessoas devem estar enquadradas em um certo padrão, do contrário, não servem. 


Por outro lado, uma direita universitária passa a se afirmar com força, e não é dentro de um crítica liberal ao esquerdismo, mas na figura de uma direita raivosa, sem consciência social e que, não raro, se articula com os anéis burocráticos que administram as Universidades - na PUC não é diferente, na USP também não -, mas esses setores sabem manusear com cada vez mais habilidade o desejo. Enquanto a esquerda está presa num racionalismo insuficiente - que chega ao autoritarismo por não saber como lidar com questões como a sujeição voluntária, portanto, ao autoritarismo não como política, mas como sintoma de pane -, essa direita se impõe pelos preconceitos, por uma intervenção clara e direta no imaginário geral, construindo fantasmas plausíveis e alimentando esperanças vãs, em troca do seu bilhete para ascender à primeira divisão partidária. Em cursos com um projeto ideológico firmado, como na maior parte das humanidades (à esquerda, naturalmente), ocorre uma desmobilização bem grande, enquanto em cursos como o de Direito, onde isso não ocorre, surge uma polarização entre esses dois projetos estudantis - o mesmo acontece em disputa para DCE's, como na própria USP e UFRS. No nosso contexto, isso se cruza com os interesses da Igreja e os interesses de sobrevivência de uma burocracia acadêmica, enquanto os estudantes ficam no fogo cruzado. Nessa ambiente de degeneração, casos de discriminação e agressividade se constroem nas rachaduras formadas. O espanto da sociedade em relação aos absurdos que se passam no meio Acadêmico é o escândalo decorrente na fé cega no potencial do Esclarecimento. É esse o quadro complexo que temos em mãos agora.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Cesare Battisti e a Transição no Brasil

(Battisti: prisioneiro político há três anos no Brasil)


O João Villaverde, com a maestria que lhe é peculiar, trouxe de volta ao debate uma questão que ficou no ar durante o último período eleitoral: O caso do militante italiano Cesare Battisti, condenado em seu país por crimes políticos cuja autoria até hoje permanece duvidosa e preso, já há alguns anos, no nosso país depois de uma verdadeira saga, que passa pelos seus anos de exílio na França, a bisonha revogação da Doutrina Mitterrand no Governo Chirac, sua fuga para o México e, depois, sua chegada ao Brasil, onde acabou preso depois de algum tempo, movimento do qual segui-se todo um cavalo de batalha da direita brasileira contra sua presença - a figura do militante de esquerda que pegou em armas era, naquele momento, o item a se destruir, seja pela potencial candidatura Dilma ou pelas feridas em aberto dos tempos da nossa ditadura - e, claro, um imbróglio diplomático com a Itália, sedenta por punir Battisti, transformado em bode expiatório de um país que se esvai em uma grave crise institucional.  


Depois de um julgamento melancólico e irracional do STF, que passou, bisonhamente, por cima da competência do Ministério da Justiça, decidindo que Battisti, embora com o status de refugiado político, deveria ser mesmo exilado - o que, em decisão imediatamente subsequente, referendou o óbvio de que a palavra final sobre isso é do Presidente da República. De lá para cá, passou um ano e Battisti permaneceu trancafiado a despeito da atuação incansável e brilhante de seu advogado, o ilustre constitucionalista Luís Roberto Barroso. O Presidente Lula, que preferiu manter a questão em suspenso durante a longa noite do período eleitoral recentemente encerrado, agora não só se depara com um quadro no qual juridicamente a sua autonomia para decidir é pacífica como também navega politicamente em águas tranquilas.


O Estadista é aquele político que domina sua arte com proficiência mesmo - e principalmente - nos momentos extremos, sabendo dosar as decisões de governo de modo a saber quando e como pode ousar, sempre tendo em mente que se o corpo político sofrer uma tensão extrema, ele estoura - e que disso nada resta -, mas que ele não pode se acomodar durante um longo período sem força-lo em nenhum momento, posto que aí, ele produz o mal justamente inverso, a atrofia das instituições, da prática política e do pensar. Lula soube manusear isso como ninguém, sua larga experiência sindical lhe deu o senso de extensão em matéria de política que a dialética vulgar - e não raro idealista - de grande parte da nossa esquerda, em sua inconsequência, jamais foi capaz de entender, no entanto, Lula não é (nem poderia ser) Deus, e em muitos momentos, errou a mão justamente quando conciliou em questões inconciliáveis por ter lido a conjuntura errado e visto confronto onde não havia. Sua hesitação aqui não foi seu maior erro, mas está entre seus mais graves e pode ainda ser o seu pior.


É preciso que Lula antes de completar seus oito anos de governo - que foi sim o melhor da nossa História -, tendo, ainda por cima, feito sucessor - ou melhor, ter conseguido realizar o feito de alçar uma mulher, ex-presa política e torturada à Presidência da República -, tome uma decisão à altura das conquistas sociais que realizou e, mesmo com certo atraso, não cometa o grave equivoco histórico de corroborar com a transformação definitiva de Battisti no boi de piranha de políticos delirantes sejam da direita ou da esquerda italiana, todos sócios da crise pela qual passa aquele país, tampouco de um certo setor da direita brasileira, cuja irracionalidade veio à tona nessas eleições. Se a História é feita pelos vencedores, que Lula mostre de vez quem a venceu para não deixar mais dúvidas quanto a isso - e assim ajude a sepultar um passado que ainda anseia por escalar, tal como morto-vivo, a sua cova que permanece, misteriosamente, ainda aberta.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

O Dia da República e o Brasil no Mundo

Hoje, no dia da Proclamação da República, enquanto nos vemos com as incertezas, dúvidas e balões de ensaio midiáticos sobre a futura composição dos ministérios do Governo Dilma, mais uma Cúpula do G-20 terminou frustrada e mal explicada - justamente aquela que marcou a última atuação do Presidente Lula em um grande fórum internacional e contou com a presença da Presidenta eleita Dilma Rousseff, já tendo em vista os acertos finais da amigável troca de bastão e dos ajustes finais do terceira etapa do projeto petista. É muito provável que da viagem, cujos frutos já eram previsíveis, tenham sido trazidas decisões acerca dos rumos da política externa, da política econômica e, quem sabe, definições importantes sobre os ministérios. 


O impasse que antecedia e motivava a Cúpula de Seul, a guerra cambial, se manteve, Alguma declaração em defesa da adoção do câmbio flutuante de forma generalizada foi feita assim como foi permitida a adoção de mecanismos de controle de capitais para os países prejudicados pela guerra cambial - em tese, uma vitória para o Brasil, mas nada que nós já pudéssemos fazer e talvez agora façamos de forma legitimada. Os americanos levaram a cabo a política de emissão de dólares que caminha para se tornar o maior (dentre tantos) erros do Governo Obama, os chineses estão pouco preocupados com isso e vão se defender a despeito de qualquer um. A posição dos chineses é clara, se quiseram se sentar e discutir uma moeda supranacional e uma nova arquitetura financeira global - como já propuseram os russos recentemente -, ótimo, senão, vai ser isso mesmo, Dólar e Yuan permanecerão parcialmente "amarrados" e os chineses vão lucrar com a desvalorização da moeda americana, valorizando sua moeda apenas se surgirem eventuais (e possíveis) pressões inflacionárias.


É fato elementar entre fatos elementares que um economia global demanda uma reserva monetária global, uma régua geral paras as trocas internacionais ao invés do uso de uma moeda nacional, seja ela qual for, mas os EUA estão pouco interessados nisso: Na visão míope dos estrategistas de Obama, aceitar qualquer proposta nesse sentido seria um sinal de fraqueza intolerável para sua opinião pública e, além do mais, ter o dólar como moeda global é um meio de dar mais "espaço de manobra" para os EUA exercerem sua política fiscal - mas lhes passa desapercebido que a cada dia que passa, a economia americana é relativamente menor ao Mundo e que mais medidas irresponsáveis tendem apenas a enfraquecer mais e mais o Dólar, caminhando para um cenário desolador nos próximos anos, no qual, o sistema global, por meio de um choque muito maior do que esse, elaborará uma saída para o padrão-dólar. Em suma, Obama, que tinha tudo nas mãos para ser o protagonista da construção de uma nova ordem global, tropeça na sua própria mesquinhez e falta de visão política, sendo pautado por adversários que querem esmaga-lo ao mesmo momento em que despreza potenciais aliados.


Para os grandes da Europa a situação não é menos grave. Países como Alemanha ou França sempre se beneficiaram do Euro internamente, mas com a desvalorização do Dólar - e consequente sobrevalorização do Euro -, a pressão internacional sobre a Zona do Euro está se tornando insuportável, assim como a situação dos sócios menores do bloco, - notadamente Portugal, Grécia, Irlanda e, em certa medida, Espanha - se torna insuportável para eles, podendo provocar uma contaminação sistêmica em todo bloco, posto que os déficits comerciais crônicos que o Euro lhes legou diante de seus "parceiros" europeus mais competitivos agora se maximiza com uma moeda hipervalorizada em relação ao Mundo. O atual governo de Portugal está num beco sem-saída e já cogita abandonar o Euro; muito embora se trate de um pequena economia, hoje, qualquer pequena pedra que se retire do monte seria o suficiente para provocar um evento em cadeia que desabe, de vez, o sistema europeu.


Da nossa parte, o Governo em transição protocolar não pode nem deve abrir mão de  imprimir uma política cambial dura, sob pena de ocorrer um desastre. O cenário atual é absolutamente artificial: Nos próximos anos, entrará uma quantidade considerável de divisas no país em virtude do Pré-Sal, da Copa do Mundo, das Olimpíadas, o que, somado à emissão de dólares por parte do governo americano, provocarão uma valorização ainda maior do Real. Dessa forma, é necessário administrar o mecanismo de juros com rédea curta - embora seu valor atual não seja tão discrepante em relação ao aquecimento da economia como já foi um dia - e taxar com dureza o que entrar. A situação global é grave e não há outra coisa a fazer senão manter uma política externa de fortalecimento do sistema multilateral, embora, é preciso anotar que o Brasil é um dos países com mais potencial para emergir fortalecido da atual situação. Por outro lado, dosar corretamente os ministérios, refrear as pressões de aliados e lobbies dentro do próprio governo é fundamental.

domingo, 14 de novembro de 2010

A Televisão e o Novo Brasil

A Televisão é o meio de comunicação chave para entender a política e a sociedade de um era que está por terminar. Seu poder é imenso: Um aparelho que transmite sons e imagens em movimento simultaneamente, em forma de monólogo do transmissor para o receptor e que não demanda, curiosamente, ser instalado em praças públicas, mas pode - como deve - perfeitamente estar alocado confortavelmente nos lares das pessoas. O modo de comunicação que a Televisão executa não é novo, trata-se do que o Cinema faz, apenas com a pequena - e agudamente profunda - diferença de que ela, ao contrário das telas de cinema, pode ser colocada no mais íntimo espaço privado de convivência, longe das massas e das praças públicas.


A Ideologia caminha lado a lado com o conceito de imagem e, por óbvio, habita o campo da imaginação; ideias (na verdade, figuras elevadas ao expoente) articuladas discursivamete como forma de revelar o que interessa e esconder o que não importa para a execução de um projeto de poder - a televisão, por natureza, opera como uma máquina essencial para a difusão da ideologia, cortando fluxos de imagem que desaguam no ambiente familiar. E se a ideologia nasce sob os auspícios da Revolution, a Televisão ganha proeminência nas sociedades industriais tardias e nas sociedades pós-industriais; de Washington a Pequim, de Londres a Buenos Aires, a Televisão, o sistema de televisão, é edificado em ritmo alucinante.


O custo da Televisão faz com que, em tese, grande parte do mundo não se justificasse sua instalação. Nem por isso a segunda metade do século 20º deixa de ser marcado por um esforço brutal em expandir o sistema de televisão. A participação do Estado ou das grandes corporações está clara e é pressuposta nessa expansão. Com o Brasil não é diferente, surge um modelo que ao mesmo tempo em que está nas mãos do Estado, se dirige a famílias de oligarcas da comunicação social e que aqui, por sua vez, reproduzem um novo tipo de oligopólio e se articula na promoção dos interesses - não só comerciais, mas também políticos e sociais - das grandes corporações. 


O pioneirismo de um Chateaubriand (foto) se dá num momento de incertezas, quase pré-histórico, da frágil experiência democrática que, mais tarde, saberíamos ter sido apenas um pequeno hiato entre o Estado Novo e a Ditadura Militar. O sistema brasileiro toma corpo com os cortes feitos pela Ditadura Militar que modela quem dá as cartas na mídia tradicional e determinará quem serão os encarregados pela difusão da notícia. Foi a modelagem definitiva de quem fazia parte do "time" - do aparato do oligopólio midiático - e quem teria o maior quinhão na exploração da jóia da coroa, notadamente, a TV.


Não resta a menor dúvida da importância de uma Rede Globo na construção de um Brasil que interessava à Ditadura. Aquele Brasil mostrado segundo o padrão Globo de qualidade para milhões e milhões de pessoas era, na verdade, a criação de um Brasil que interessava ao status quo ou, no máximo, ao acessos de lampedeuzianismo da elite. Pouco importa se a TV nas mãos está nas mãos do Estado, o oligopólio toma por impossível que a oposição, chegue, alguma dia ao poder; anos mais tarde, quando Hugo Chávez não renova contratos de concessão na Venezuela, a luz vermelha se acende no Brasil, durante anos alimentou-se um modelo todo concentrado na mão do Estado, mas não se supunha que um dia, os ocupantes do poder não seriam necessariamente seus aliados - e naquele momento, quem ocupa o poder no Brasil é o jovem governo petista.


A TV foi e continua sendo um meio que, do ponto de vista comercial, jamais representou grande coisa. As familias que se beneficiam das concessões estatais, na verdade, tinham nas mãos um instrumento que lhes garantia ganhar dinheiro por outros fins, o poder da informação, o da construção e da desconstrução de mitos, que lhes permitia certa proeminência e negócios promissores em outras áreas, desde que cumprissem o seu dever. O Brasil pré-Lula ainda é marcado pela proeminência de uma TV Globo, com o SBT, uma rede de entretenimento aparentemente inofensiva operando em um nicho de mercado e a Record, uma canal antigo, cuja concessão foi negada à Central Única dos Trabalhadores para ser dada a - aparentemente  - inofensiva Igreja Universal do Reino de Deus - que, acabou por construir um modelo que visava ao topo da comunicação televisiva. 


Por outro lado, canais de TV de famílias alinhadas como a Bandeirantes - que sobrevive até hoje numa posição minoritária - e a Manchete - da família Bloch - já falida, jamais conseguiram se afirmar nesse cenário. As TV's estatais nunca conseguiram fazer a tão sonhada passagem para um esquema público - mais ou menos como a BBC -, a TV Cultura de São Paulo, sucateada por quase duas décadas de governos tucanos e a TV Brasil - tratada em segundo plano pelo Governo Federal - são exemplos disso.


A derrota do candidato global, José Serra, em 2002, marca a ascenção, pela primeira vez na história, de um não-aliado da Globo ao Poder, muito pelo contrário, falamos do detestado Lula, que foi por ela prejudicado nas eleições de 1989. Ainda assim, o Ministério das Comunicações permanece sob controle de aliados da Globo, como demanda a realpolitk lulista e sua renovação de concessão é operada de modo mais suave do que pode ser supor; um evento, no entanto, se opera nas sombras e representa um golpe para uma Globo já em declínio de audiência: A Record ganha mais uma concessão de TV, nos moldes daquele que a Globo mantém a Globonews, o que é a gota d'água após ter perdido a disputa pelo direito de transmissão das Olimpíadas de 2012 para a própria Record


Em um jogo no qual a benevolência do Estado é fundamental, uma Globo que já perdia sua parcela de audiência vai à guerra; A Globo não está, como não esteve, disposta a renegociar o seu estatuto, a despeito de seu progressivo encolhimento e, nas eleições de 2010, sua atuação é como de um Luís XVI da pós-modernidade, dada a maneira que entrou no front pró-Serrista, disposta a construir a trama mais pífia que fosse para atacar Dilma Rousseff, na campanha - e à Record coube tão somente a tarefa simples de desmontar sofismas, apontar contradições evidentes e assim herdar o espólio político das eleições; não a Record não precisou inventar que o balão de água que quase atingiu Dilma era, na verdade, coca-cola, do mesmo modo que a Globo transformou uma bolinha de papel num perigoso rolo de fita crepe, num acesso de ridículo e irracionalidade.


Ao passo em que o Plano Nacional de Banda Larga se desenha e a importância das redes colaborativas cresce, uma Globo que sabe o quanto seu poder se dilui na Internet - do mesmo modo que a Record - perde assim uma considerável força para negociar saídas que lhe deem a primazia dos bons negócios das últimas décadas de proeminência da TV. A célebre primeira entrevista da presidenta eleita Dilma Rousseff é para a Record, não para a Globo. Recado dado, os próximos anos serão turvos para a televisão dos irmãos Marinho. Do outro lado, o SBT de Silvio Santos, se esvai tardiamente com escândalos que permeiam todo o grupo, o que abre espaço para novas mudanças no mundo da televisão.


A democratização dos meios de comunicação, porém, permanece em aberto e os brasileiros continuam à mercê de alguns poucos canais de TV abertos, em torno dos quais se estrutura um jogo de poder político-partidário pesado que pode ter uma severa influência daqui a quatro anos. 

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Brasileirão e Sul-Americana na Reta Final

Restam quatro rodadas para o Brasileirão mais disputado da era de pontos corridos e, contra tudo e contra todos, Corinthians e Fluminense se mantiveram na luta pelo título enquanto o Cruzeiro emparelhou mesmo com o grupo - mas bateu no teto depois de alcança-los. Eu ainda apostaria no Cruzeiro nessa reta final, é um time mais completo que o Corinthians e com a roda menos presa do que o Fluminense. Temos ainda o Botafogo numa quarta posição que ganhou novamente status de classificatória para a Libertadores... só que pela metade: Se o campeão da Sul-Americana for brasileiro, invariavelmente, teremos apenas um G-3 saído do Brasileirão - o que, reitero, é um equívoco da Conmembol, ainda que seja menor do que o anterior, no qual reduzia uma vaga do Campeonato Brasileiro logo de cara, só pelo fato do Inter ser o atual campeão. As chances de um brasileiro ser campeão da Sul-Americana são boas. Palmeiras e Goiás fazem uma semi-final e pegam o vencedor de LDU - em primeiro lugar no Campeonato Equatoriano - contra o tradicional - porém em crise - Independiente, em suma, teremos um finalista brasileiro de qualquer jeito e, levando em consideração o espírito copeiro de Felipão, o Palmeiras tem até boas chances de levar a taça mesmo.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Cúpula do G-20 de Seul -- Início

Teve início hoje a Quinta Cúpula do G-20 realizada na capital sul-coreana, Seul. Em um primeiro momento, a simples realização de uma cúpula envolvendo as vinte maiores economias do mundo já ilustra um novo mundo em emergência (e de emergentes também): O arranjo internacional pós-Guerra Fria que apresentava a liderança estratégica incontestável dos EUA com a presença subsidiária das potências econômicas da Europa, o Japão e o Canadá - somados à Rússia pelo seu poder militar residual da URSS - caiu mesmo por terra. Mais do que esse processo, que já se avizinhava de maneira clara nos anos 90, a Crise Econômica Mundial, que eclodiu nos EUA e contaminou todo o sistema mundo, catalisou o processo de transformação de maneira aguda. No atual momento, a conjuntura mundial se expressa pela grave crise político-econômica dos EUA e o questionamento em relação ao futuro da União Europeia, ao passo que China, Índia e Brasil se impõem cada vez mais neste cenário - e de forma mais específica, o principal tópico da cúpula será a guerra cambial em curso, na qual os EUA, para manter sua política fiscal irresponsável, desvaloriza sua moeda (por sinal, ainda a principal moeda do Globo), o que traz junto o Yuan chinês, ameaçando de maneira grave o equilíbrio da balança comercial europeia e, inclusive, da brasileira. Trata-se de uma reunião tensa que irá trazer à baila de um dos problemas mais complexos do nosso, a construção de um arranjo político econômico internacional para uma realidade na qual o Dólar Americano se inviabiliza enquanto moeda hegemônica por conta dos próprios rumos do país que lhe emite. 


Lula chega fortalecido à Cúpula, seja pela situação do Brasil diante do mundo ou pela vitória que seu projeto político novamente obteve nas urnas - e seu trófeu, Dilma Rousseff, sua sucessora feita, marca sua presença no último grande evento internacional com Lula na chefia de Estado do Brasil. Não há pouco o que negociar e o assunto chave da cúpula, como dito, nos interessa direta e profundamente. Um Real sobrevalorizado resulta, irremediavelmente, em uma balança comercial menos favorável e, consequentemente, em menos espaço de manobra para o Estado induzir o crescimento econômico ou mesmo bancar projetos sociais essenciais. É inegável que o ajuste que o Brasil necessita passa por uma série de ajustes internos que o Governo não pode mais protelar, mas o componente externo também representa uma parte fundamental da história. Os chineses, fortalecidos pela crise e, ao mesmo tempo. em um período de alteração na correlação de forças interna - com a ascensão do grupo de Xangai - são figuras essenciais na reunião. Obama estará em xeque, tanto pelo resultado amplamente desfavorável nas eleições legislativas quanto pela posição dos EUA no Mundo - que ele contribui em manter em fragilização, dada a total inércia com a qual o seu Governo conduz a política externa, tornando-se cada vez mais incapaz de ser o protagonista da reconstrução do sistema mundial, posição que parecia irremediavelmente sua quando derrotou os republicanos há dois anos. É questão de manter os olhos bem fixos no que se desenrolará pelos próximos dias na capital sul-coreana.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

A Bola da Vez: O ENEM

O sistema educacional brasileiro, especialmente no que toca ao ingresso à Universidade, é terrivelmente falho e, sobretudo, valoriza demais a mimese e o controle emocional e dá pouco valor para a criatividade e a capacidade de interpretação dos estudantes - além de ser marcado pela ideia absurda de um corte entre o ensino médio e o ensino superior, expressão máxima de uma lógica estamental, que ainda encontra voz e vez em nossa elite em pleno ano da graça de 2010 e vê a Universidade como uma fábrica de mero status que não pode nem deve ser acessada por qualquer um. Tudo isso dentro de um esquema de classe e, sobretudo, de interesses empresariais no que toca à indústria do Vestibular.


O ENEM, Exame Nacional do Ensino Médio, representou, nesse contexto, um pequeno porém profundo avanço, quer seja porque o modelo da prova - ainda que ele fosse melhor antes, quando tinha 63 questões - que dá algum valor para a interpretação e para a criatividade em detrimento da decoreba, pelo fato de representar uma base nacional razoável pela qual se pode aferir o nível do ensino médio nas variadas regiões e condições e, sobretudo, pelo fato de ser um exame federal que é aplicado em relação àquilo que é aprendido no Ensino Médio só que voltado para o ingresso na Educação Superior - rompendo com esse corte arbitrário entre os dois níveis de ensino .


Aliás, o ENEM se mostrou uma ferramenta bastante útil, servindo como base para a seleção do Prouni e passando, progressivamente, a uniformizar o processo de ingresso nas universidades federais - e é aí, creio, que a porca torce o rabo. O ENEM se tornou, sob o atual Governo, uma chave interessante para consolidar o avanço da inclusão universitária, o que incomoda uma direita medieval que domina a oposição - tanto que tem a desfaçatez de descer baixo como o DEM desceu  no caso da ADin contra as cotas sociais e étnicas; aqui não falo de um partido qualquer de oposição, mas sim da segunda maior agremiação dela, tão influente que indicou o inesquecível candidato a vice-presidente da chapa de José Serra, Índio da Costa.


O ponto é que, de repente, não mais do que repente houve um problema na aplicação da prova. Isso acontece pelo segundo ano consecutivo, depois do lamentável vazamento do ano passado, este ano aconteceu um problema em menos de 1% das provas. Claro, não há porque não se criticar o Ministério da Educação por essa falha (reiterada), mas não há como nivelar o que aconteceu este ano com o que houve ano passado, além do fato da maneira como a mídia corporativa repercutiu a notícia foi muito pouco esclarecedora e espetacularizadora - é como se todas as provas, de repente, estivesse toda errada. Infelizmente, acreditar que isso é mero mau jornalismo ou apenas pensar nisso como um partidarismozinho é ingênuo; para além de qualquer crítica ao Ministro da Educação e ao Governo, o que está posto é uma crítica ao ENEM e não à sua aplicação, tampouco é proporcional ao que aconteceu. 


O problema, que está na forma de aplicação do ENEM e não no exame em si, torna-se, de repente, problema do ENEM como um todo e, sendo ele meio e não fim, mira-se na política de inclusão para a qual ele serve como instrumento - em suma, aquilo que Serra fez durante toda a campanha, defender uma política excludente de forma indireta, pelos silêncios e pelos subterfúgios. Sempre que fugia pela tangente ao ser perguntado sobre o Prouni, Serra surgia com a história do "Protec", bolsas para inclusão em "ensino técnico", mas nem refutava ou, ao menos, conseguia explicar o posicionamento do DEM nessa ação contra o referido programa de inclusão. Em suma, mais um dos silêncios gritantes de Serra. A mídia, por sua vez, merece o troféu Weslian Roriz por sua defesa obstinada de uma causa irracional.


P.S.: Esclarecedora a twitcam do Idelber sobre o assunto.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Administrativas: A Blogosfera Puquiana e mais Algumas Dicas

Depois do João e do Tsavkko, que acompanhamos e pelos quais somos acompanhados já há um tempo, do bom e velho Taquaral que também está na área, o Ivan Sampaio é outro puquiano que também resolveu vir para o lado de cá da blogosfera, depois de ter se cansado de ficar só tuitando e resolveu montar seu blog, o desmontador de verdades - espero ter boas discussões e trocar umas boas ideias com ele por aqui. O Taquaral e o Ivan entram na nossa lista de blogs. Para além dos muros puquianos,  também entra na parada o Pádua Fernandes, que eu conhecia já há algum tempo lá do Alexandre Nodari, mas só recentemente descobri que tem um blog bem legal. Para completar as novas conexões do nosso buteco, entra também o espetacular Linkillo  que eu não sei como não estava na minha lista ainda. Também tirei alguns blogs que estavam parados há algum tempo. Bem, por ora, é isso.

domingo, 7 de novembro de 2010

As Eleições, a Questão Nordestina e São Paulo

Deus e o Diabo na Terra do Sol 

Domingo passado, encerrou-se o mais longo, tenso e violento presidencial desde 1989 com a vitória da petista Dilma Rousseff sobre José Serra. Esperava-se, enfim, que o término do pleito fosse sacralizado e que de algum modo o candidato derrotado - que levou o debate aos limites da perplexidade - reconhecesse a vitória da adversária e, pelo menos em algum momento da campanha finda, agisse como um político de evergadura presidencial e fizesse uma fala sensata. Não foi o que aconteceu. Ao invés de dizer adeus, Serra estava completamente inconformado com uma derrota incontestável e fazia um inacreditável discurso revanchista - algo impossível de imaginar que viesse da parte de um Lula, derrotado por três vezes em pleitos presidenciais, que nem o próprio Serra fez em 2002 e que Alckmin também não fez em 2006.

Isso só foi a cereja do bolo de um político que, até mesmo nos dizeres de Paulo Nogueira - um sujeito que considera FHC o maior presidente da nossa história -, sofre de uma ambição desumana de ser presidente mesmo contra a vontade dos brasileiros. Durante a campanha, ao invés de debater o que realmente estava em jogo - e do que discordava verdadeiramente da política petista -, em suma, a política externa não-atlantista, os rumos do Pré-Sal, a Política de Emprego (a qual se negou a fazer qualquer comentário mesmo em debates) e o seu projeto para o Plano Nacional de Banda Larga, Serra simplesmente suspendeu o debate para estimular- ou também permitir que estimulassem, se escorando num discurso violento que estimulava - preconceitos latentes na nossa sociedade - que, no entanto, vinham arrefecendo -, notadamente, questões morais como o aborto e o casamento gay.

Essa cereja do bolo não trouxe poucas consequências, o fato de Serra não ter tido a grandeza política de fazer um discurso de união nacional, de tocar a bola para frente e de dirimir eventuais rusgas - não, ele atacou com um discurso desastrado, atrasado e de mal-vontade - fez com que o clima tenebroso desse interminável campanha persistisse ao longo da semana passada. A mídia corporativa, aliada de Serra de primeira hora por  interesses óbvios, seguiu fazendo seu papel de arcar com a parte dura dos ataques e desqualificações ao PT - amparada na muleta da liberdade de imprensa, que usa, há tempos, para fazer política partidária - apresentando um Brasil "dividido" entre norte e sul após a derrota - Dilma teria vencido por conta daqueles estados cheios de pobres, atrasados e desidiosos. É como se, de repente, Serra não tivesse tido um voto no grande norte e Dilma nada no sul ou se Serra não tivesse vencido por pouco onde venceu e Dilma não tivesse goleado onde ganhou.

Pior do que isso, fora o Estadão que se dignou a mostrar um mapa eleitoral dividido em municípios - que ainda assim traz lá suas distorções - a figura do mapa brasileiro dividido em estados como se a nossa eleição fosse como as indiretas eleições americanas, onde quem ganha em um estado - nem que seja por um voto - leva todos os seus delegados pairou como a prova dessa "divisão" - como bem nos lembra o sempre atento Idelber Avelar alertado em cima do lance pelo perspicaz Alexandre Nodari via twitter. O resultado disso, claro, é provocar uma onda de insatisfação, inconformismo e agressividade em quem votou em Serra, o que, conjugado com preconceitos já existentes contra o Nordeste, provocou um clima bizarro e artificial de guerra, cujo ponto mais alto foi o caso da estudante de Direito da FMU, Mayara Petruso, que fez ofensas racistas e defendeu o assassinato dos nordestinos em sua página no Facebook. Isso sem falar que tópicos ofendendo os nordestinos que chegaram aos trending topics do Twitter. 

Vamos aos fatos, nada desse movimento é racional. Retorno ao nosso ponto de partida: Para a Presidência da República, são considerados os votos de todos os brasileiros que estejam em idade eleitoral e tenham a devida documentação. Não existem pernambucanos ou gaúchos na eleição presidencial, apenas brasileiros que votam em domicílios eleitorais gaúchos ou pernambucanos. Simples assim. Se um candidato venceu porque teve uma votação maior aqui do que acolá, paciência. No entanto, nem foi isso que aconteceu, haja vista que mesmo que o Nordeste fosse riscado do mapa - como sugeriram algumas figurinhas ao longo da semana passada - ainda assim, Dilma teria vencidoÉ evidente que isso não se trata de um caso isolado, candidatos a cargos políticos importantes tem uma enorme responsabilidade a respeito do que dizem e, sobretudo, do que deixam de dizer, a única pessoa que poderia ter cessado com esse clima pós-eleitoral seria o próprio Serra, mas ele não fez, ele deixou esse fluxo de intolerância seguir.

Para mim, isso não é uma questão simples, afinal, ela me afeta diretamente: Sou pernambucano e vim morar em São Paulo aos três anos de idade, de lá para cá já vão seus vinte anos, mas a sensação de forasteirismo é permanente numa paisagem que ao mesmo tempo acolhe (porque precisa), submete - porque precisa, mas precisa de uma determinada forma -; Nordestinos vieram para ser o contingente de trabalhadores da industrialização pesada de São Paulo no pós-Guerra, num movimento que não é fruto da aliança entre o estudante e o operário, mas sim entre o coronel pouco afeito a ideias extravagantes de Reforma Agrária e de Capitães da Indústrias ciosos por buchas de canhão; de todo modo, é patente que a discriminação contra nordestinos apesar de existir, é muito menor hoje do que era há dez anos atrás por exemplo. Isso é uma questão que está se tornando latente e, ao contrário do que algumas pensam, quando um certo preconceito está se tornando velado, é porque ele está arrefecendo: Se um pessoa discrimina negros e não diz publicamente é porque foi construída alguma moralidade naquela sociedade que admite que alguém externe. Na medida em que esse ódio recua para a esfera privada, ele tende a desaparecer. Eis aí a enorme importância da Escola e, acima de tudo, de quem tem fala pública como políticos que se supõem com evergadura de estadista ou meios de comunicação em massa.

Também não adianta vir com caminhos fáceis para explicar o que é São Paulo e como ela se relaciona com o resto do país. Estou há tempo de mais por aqui para saber que São Paulo é um paradoxo, ou melhor, o paradoxo de uma cidade - que a despeito dos agrupamentos urbanos anteriores do litoral foi aquilo que, de fato, deu no estado de São Paulo atual - formada ao mesmo tempo pelo projeto do universalismo cristão dos jesuítas e do imperialismo sem concessões dos bandeirantes. Essas duas linhas acabaram, pelas circunstâncias históricas, unidas numa dupla hélice que, no entanto, tem como fundamento comum a ideia de que São Paulo é o território necessário para ocupar o resto do país, ainda que elas se contradigam na maneira como isso vai se dar e para onde isso vai se direcionar: Se os jesuítas tinham um projeto acolhedor, no qual cabiam todos desde que aceitassem abrir mão de sua identidade anterior para se tornarem sujeitos-cristãos, os bandeirantes se viam diante de um projeto, uma meta implacável para a qual não havia sujeitos ou potenciais sujeitos, mas sim objetos que bifurcariam na figura dos instrumentos - os objetos úteis - e dos obstáculos - os objetos inúteis a se destruir.

Isso prevalece até hoje, apesar de todo o tempero intelectual do racionalismo, das ciências e tudo mais. Essa lógica bipartida, claro, poderia ser posta abaixo por um projeto, mais do que civilizador, cultural, desde que haja vontades políticas organizadas para tanto, assim não se faria mais perguntas como "teriam os nordestinos se tornado obstáculos?" Ou "seriam ainda assim instrumentos úteis?" Ou isso não está em questão, afinal, "eles são cristianizáveis, digo, civilizáveis, não são?" O pensamento provinciano de São Paulo que não consegue sair dessas variáveis me parece terrivelmente inscrito no modo de funcionamento do PSDB. O que será que pensariam "os tucanos paulistas" sobre o mineiro Aécio Neves? O projeto petista, mesmo que tão marcado pelo universalismo cristão - diretamente, aliás -, consegue escapar - às vezes sonhar em - escapar às linhas estanques disso, ainda que seja um projeto nascido em São Paulo, o que aponta para a chave para o desligamento desse mecanismo, seja pelo que faz no plano nacional ou no próprio plano paulista - ou já esqueceram da ousadia de eleger não só uma mulher como uma nordestina como prefeita de São Paulo? O ponto é que esse pensamento paulista tradicional continua - como continuará por algum tempo ainda - a variar entre sua faceta mais humanista e a mais hardcore, precisando, no entanto, de uma atuação direta dos grandes agentes para reprimir seus instintos mais desumanos, mas é evidente que só a superação definitiva disso, abraçando definitivamente a brasilidade - o reconhecimento da importância desse mutualismo transregional, que envolve as trocas econômicas, sociais e culturais - é que é a saída para esse impasse.

P.S.: Muito bacana o movimento organizado pelo Eduardo Guimarães do "São Paulo é de Todos".


Imagens: 1) Carta de Deus e o Diabo na Terra do Sol de Gláuber com montagem feita aqui 2) Carrancas do São Francisco 3) Mudança do Sertanejo -- J. Borges; 


 

sábado, 6 de novembro de 2010

O Novo Congresso Nacional

Para além da fragmentariedade e do esvaziamento habituais do nosso sistema eleitoral, as eleições legislativas deste ano produziram pelo menos três fenômenos interessantes: O aumento da bancada governista, o aumento da bancada evangélica e a mais profunda mudança de perfil da história do nosso Senado. Trocando em miúdos, a Presidenta eleita terá a maioria confortável que Lula não teve, questões de direitos civis devem ser tratadas com mais mal-vontade ainda - sim, o terrorismo da campanha serrista teve ainda o mérito de produzir um aumento sem muita qualidade da base governista, favorecendo os pequenos partidos evangélicos pró-Lula -, mas teremos um Senado bem melhor do que o anterior - talvez o melhor da nossa história...

Sobre o primeiro ponto, ainda que não haja uma correspondência exata entre os partidos e os parlamentares, 310 dos 513 deputados federais eleitos são de partidos que participaram da coligação que elegeu Dilma Rousseff - enquanto apenas 136 são de partidos que estiveram na coligação de Serra, ainda que se ressalve o fato de que nessa conta entra o PTB de Roberto Jefferson, que teve uma participação controversa do início ao fim dessa campanha, sem ele, estaríamos falando de apenas 115 deputados.  Tirando os 15 deputados verdes - que não têm posição clara nessa história toda - e os 3 do PSOL - que farão oposição ao Governo pela esquerda -, vemos algo entre 70 e 49 deputados de partidos (a variável aqui diz respeito ao PTB) que não integraram nenhuma coligação presidencial (ou nenhuma relevante) e representam o que há de mais fisiológico na política nacional, tendendo a votar com o governo em troca de emendas parlamentares. No Senado, o PMDB fez 16 cadeiras e se manteve com 20 na dianteira da casa; o PT fez 11 senadores e terá 13 no total, são as duas maiores bancadas daquela Casa. No total, são 2 senadores do PSOL, 49 senadores governistas, 20 da oposição e 10 de outros partidos (na verdade, as bancadas do PP e do PTB) que deve se dividir.

Em outras palavras, o governo conseguirá passar tudo aquilo que ele entende por correto no âmbito da gestão formal do Estado, mas certamente esbarrará em limitações no que toca reforma agrária - que só sai de acordo a demanda atual caso a Presidência chame para si a responsabilidade do jogo - ou questões de direitos civis. Grosso modo, as igrejas evangélicas têm se organizado cada vez mais partidariamente e foi também com a aliança desses então micropartidos que Lula em 2002; uma figura como Crivella, debaixo do guarda-chuva do Governo Lula, apoiou medidas de desenvolvimento econômico e de incorporação de direitos sociais ao passo que se manteve - naturalmente - numa posição conservadora aos direitos individuais, em suma, tudo leva a crer que o combate a fome e a miséria deve continuar avançando ao passo que temas como casamento gay e descriminalização do aborto devem ficar mais distantes.

O crescimento de PR, PRB e PSC nessas eleições são, em grande parte, fruto da propaganda desastrada de Serra, que ao tentar desconstruir a figura pessoal de Dilma e do PT por meio de uma retórica fundamentalista, pode ter tirado votos também do PT no legislativo, mas não tirou da base lulista, em outras palavras, Serra provavelmente colaborou para o aumento da base situacionista - às custas até mesmo de seu partido, cuja base parlamentar diminuiu, apesar de ter chegado ao segundo turno da eleição presidencial - fortalecendo os partidos evangélicos; Dilma assim terá uma base parlamentar grande, mas heterogênea, que acompanhará a pauta do Governo - que dita, na prática, o ritmo do Legislativo  -no âmbito social, mas tenderá a vetar pautas no âmbito individual. O desempenho petista, muito embora tenha lhe valido o primeiro lugar na Câmara, foi bem abaixo do que se esperava, em parte pelo clima das eleições, em parte por falhas na campanha mesmo e em outra parte pela falta de palanques fortes nas disputas para governador. Eu me surpreendi também com a perda de deputados por parte do PSDB, esperava a estabilidade da bancada em torno dos 65 cadeiras anteriores, mas a perda de quase 20% delas foi espantoso - o mesmo não se pode dizer do DEM, cuja decadência já é favas contadas eleição a eleição.

Sobre o Senado, em um primeiro lugar, temos muito a comemorar e isso diz respeito a quem saiu de lá. Mais do que uma casa de oligarcas que pouco ou nada colaborou para o desenvolvimento do país, a nossa Câmara Alta tornou-se nos últimos anos um reduto de figuras folclóricas, grotescas e ciosas por aparecer na mídia a qualquer custo, geralmente batendo no Governo Lula. Enquanto figuras como Heráclito Fortes, Mão Santa, Arthur Virgílio, Sérgio Guerra e quetais (todos derrotados, menos o último que estrategicamente se candidatou a deputado) se utilizavam dos holofotes de maneira bisonha, outros como Eduardo Azeredo articulavam nas sombras coisas como o AI-5 digital (Azeredo acabou não sendo indicado ao Senado, em seu lugar entre Aécio Neves...). Outros, como um Romeu Tuma (falecido recentemente não sem antes ser derrotado nas urnas) apoiava taticamente um Governo que não representava sua forma de ver o mundo. Bons nomes continuam por lá, como Paulo Paim do PT-RS - que conseguiu a reeleição -, enquanto Gleisi Hoffmann foi a primeira senadora eleita do Paraná, Marta Suplicy, ex-prefeita de São Paulo e ícone na luta pelos direitos civis venceu em São Paulo, enquanto no Nordeste, praticamente todos os estados elegeram senadores de esquerda ou progressistas - exceto pela reeleição do inefável Agripino Maia. No Norte do país, a eleição de Vanessa Grazziotin sobre Artur Virgílio foi, sem dúvida, o fato mais relevante.


Por fim, elas por elas, o resultado das eleições foi positivo, ainda que estejamos bem longe de resolver a problemática do funcionamento do Legislativo e do vício de sua relação com o Executivo. A Reforma Política que se avizinha pode melhorar o sistema eleitoral, mas pouco importa se não houver, antes de mais nada, uma reforma do sistema político-partidário, obrigando que o princípio democrático seja cumprido internamente, exigindo prévias e processos de escolha de candidatos de forma transparente. O Senado segue sendo, em si, um problema, embora materialmente ele tenha dado um considerável salto de qualidade - em um país onde os municípios são considerados entes federados, é equívoco supor que precise existir uma Câmara Alta com representantes dos estados e do Distrito Federal, o que além de ser um má justificativa, também só produz mais burocracia no Processo Legislativo. Dilma terá uma relativa tranquilidade para governar, mas olhemos para os limites disso.










quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O Fantasma de FHC

Presidente do Brasil no longo período que compreende 1995 a 2002 e governante de fato durante do desgoverno de Itamar FrancoFernando Henrique Cardoso é uma das principais figuras da política nacional no último quarto do século 20º e nesse início de século 21º. Não resta dúvida que ele, junto com Luís Inácio Lula da Silva, foram os dois principais personagens do Brasil contemporâneo, produtores de grande parte de seus defeitos, contradições e virtudes - ainda que eles tenham colaborado em diferentes gradações para cada um desses itens. FHC deixou um legado de institucionalização dos direitos civis e de concretização da democracia enquanto realidade histórica (e não mais apenas jurídica) ao mesmo tempo em que nos legou o esvaziamento do próprio projeto contido na Constituição de 88 em nome de um suposto realismo político - cujo fim era substituir o Estado Varguista por um mercadismo moderado - mostrou-se um tremendo erro que minou suas possibilidades de se tornar o patriarca indiscutível do novo Brasil; a concatenação de erros vista em seu Governo levou desde a candidatura Serra em 2002 - que estava longe de ser sua primeira opção - e à vitória de Lula naquele pleito, o que ao contrário de se realizar enquanto fracasso, deu no projeto que governou o Brasil por oito anos e o fará por mais quatro. 


FHC, de príncipe dos sociólogos passou ao espectro incômodo que assombra o palanque dos seus correligionários a cada eleição. Não custa lembrar que o PT venceu três eleições não só expondo seu próprio projeto como apontando as falhas dos anos FHC - e, por motivos óbvios, as duas últimas eleições foram marcadas por essa comparação e foram amplamente favoráveis aos petistas. FHC sabe disso e sua vaidade - assim como a incapacidade fazer autocrítica dos tucanos - foram apenas aumentando a quantidade de erros cometidos - em suma, as desditas discursivas e práticas daquela agremiação. O resultado: A dantesca eleição presidencial de 2010. A recente entrevista dada por FHC à Folha é um exemplo disso: O discurso que fica pressuposto na fala tucana, mas que não pode ser dita - e ele traz à baila como uma criança birrenta - se caracteriza pelo anacronismo de suas premissas e por sua inviabilidade eleitoral - embora, num caso ou em outro, tais sombras sejam os invisíveis evidentes dos pretensos planos de governo de Alckmin e Serra -, o que se expõe seu ocaso intelectual e político assim como a crise de seu partido.


Entre falácias que relativizam as linhas que Serra ultrapassou na recente campanha, os pontos  em que demonstra certo ressentimento pela maneira como foi tratado - ou melhor, escondido - durante o processo, os ponto em que critica Lula pelos defeitos que também tem - piorados, afinal, o que são as infrações eleitorais que o atual mandatário cometeu se comparadas à Emenda da reeleição que beneficiou o próprio FHC? -, resta a exposição das crenças econômicas que o ex-Presidente guardou como dogmas, mas que à luz do sucesso do Governo Lula, da conjuntura mundial e de suas próprias desditas, são fantasmas absurdos. Um ponto, em especial, merece ser observado: Como a análise que FHC fez do Pré-Sal expõe o que Serra fugia da cruz a todo momento na campanha - mas era um consenso entre o tucanato - e como isso traz à baila muito da concepção de visão de mundo deles. Vamos lá:



Nesse campo, o seu governo quebrou o monopólio da Petrobras e implantou o modelo de concessão. A fórmula proposta por Lula, de partilha, para o pré-sal, que traz novos privilégios à Petrobrás, é melhor?
Não posso responder, porque não vi a discussão. Preocupa-me esse modelo porque força uma supercapitalização [da Petrobras] sem que se saiba bem qual será o modelo de venda desse petróleo. Essa forma de partilha proposta é uma estatização do risco. O risco quem corre é o Estado, ao contrário do modelo de concessão.
O que estamos fazendo é uma dívida. Isso obriga a sobrecapitalizar a Petrobras. Parece que não temos mais problemas de poupança no Brasil. Entramos numa ilusão tremenda nessa matéria. O Tesouro faz a dívida com o mercado e empresta para o BNDES ou para a Petrobras. É como se não precisássemos mais poupar. Mas a dívida está aí. Essa questão o PSDB não politizou.


"Risco", aqui, é a possibilidade de prejuízo, o que, em outras palavras, significa que existe possibilidade lucro; não correr riscos é não tentar obter rendimentos do Pré-Sal. Você pode - e até deve- auferir os riscos da atividade de extração de petróleo, poderia até mesmo se opor a isso por uma objeção ética-ecológica que não considera o petróleo como prioridade em um horizonte próximo - apesar desse raciocínio ter problemas pragmáticos -, mas aceitar o óleo negro como matriz energética das próximas décadas - como fazem os tucanos - e assim se esquivar da tarefa de socializar esses lucros, trata-se de um erro. É a privatização dos espaços públicos a qual se refere Negri, aqui, dos recursos energéticos públicos e da possibilidade de destinar esses recursos para, inclusive, poder subverter a própria lógica da energia suja. 


FHC de fato não vê o Mercado como uma esfera definitiva, mas ele ainda alimenta uma crença relevante nele - a gloriosa esfera de trocas de fluxos de valores econômicos - como elemento racionalizador e civilizador das relações humanas, como se o Mercado não fizesse outra coisa senão apenas articular os fluxos decorrentes ao sistema produtivo ao qual ele se refere, indispondo, portanto, da capacidade paranormal de ajusta-lo. Isso é mais simples do que parece, o Mercado, em um Capitalismo, articula também os resíduos negativos que o sistema causa: Da violência urbana produzida pelo desemprego, surge um nicho que envolve empresas privadas de segurança, seguros mercantis e quetais, tornando a criminalidade um bem necessário para a existência e funcionamento desse novo ramo. Se lembramos aqui da erosão da escola pública e sua relação com o mercado de escolas comerciais - ou mesmo da falência do SUS e sua relação com os famigerados planos de saúde -, a grande fratura na qual se assenta o pensamento de FHC vem à baila: O Mercado não é capaz de dirimir contradições reais, nunca será, o papel de Estado sustentador de um esquema mercadista só produz uma articulação de uma porta giratória entre Estado-Mercado que destrói a esfera pública - e consequentemente o próprio espaço privado -, inviablizando a construção de um espaço comunitário. A própria democracia politicamente desenhada é a democracia esvaziada logo mais. Trata-se de uma falácia que também ronda certas alas do PT, ainda que de maneira mais moderada, afinal, o projeto petista sabe, no fim das contas, da função do Estado - como instrumento da multiplicidade do coletivo que Lula entendeu tão bem - nessa conversa toda. FHC está preso em uma falácia absurda e junto ele leva um PSDB inepto - o povo brasileiro, no entanto, não aceitou ser também prisioneiro desse sonho (felizmente).


(imagem retirada daqui)