O sistema educacional brasileiro, especialmente no que toca ao ingresso à Universidade, é terrivelmente falho e, sobretudo, valoriza demais a mimese e o controle emocional e dá pouco valor para a criatividade e a capacidade de interpretação dos estudantes - além de ser marcado pela ideia absurda de um corte entre o ensino médio e o ensino superior, expressão máxima de uma lógica estamental, que ainda encontra voz e vez em nossa elite em pleno ano da graça de 2010 e vê a Universidade como uma fábrica de mero status que não pode nem deve ser acessada por qualquer um. Tudo isso dentro de um esquema de classe e, sobretudo, de interesses empresariais no que toca à indústria do Vestibular.
O ENEM, Exame Nacional do Ensino Médio, representou, nesse contexto, um pequeno porém profundo avanço, quer seja porque o modelo da prova - ainda que ele fosse melhor antes, quando tinha 63 questões - que dá algum valor para a interpretação e para a criatividade em detrimento da decoreba, pelo fato de representar uma base nacional razoável pela qual se pode aferir o nível do ensino médio nas variadas regiões e condições e, sobretudo, pelo fato de ser um exame federal que é aplicado em relação àquilo que é aprendido no Ensino Médio só que voltado para o ingresso na Educação Superior - rompendo com esse corte arbitrário entre os dois níveis de ensino .
Aliás, o ENEM se mostrou uma ferramenta bastante útil, servindo como base para a seleção do Prouni e passando, progressivamente, a uniformizar o processo de ingresso nas universidades federais - e é aí, creio, que a porca torce o rabo. O ENEM se tornou, sob o atual Governo, uma chave interessante para consolidar o avanço da inclusão universitária, o que incomoda uma direita medieval que domina a oposição - tanto que tem a desfaçatez de descer baixo como o DEM desceu no caso da ADin contra as cotas sociais e étnicas; aqui não falo de um partido qualquer de oposição, mas sim da segunda maior agremiação dela, tão influente que indicou o inesquecível candidato a vice-presidente da chapa de José Serra, Índio da Costa.
O ponto é que, de repente, não mais do que repente houve um problema na aplicação da prova. Isso acontece pelo segundo ano consecutivo, depois do lamentável vazamento do ano passado, este ano aconteceu um problema em menos de 1% das provas. Claro, não há porque não se criticar o Ministério da Educação por essa falha (reiterada), mas não há como nivelar o que aconteceu este ano com o que houve ano passado, além do fato da maneira como a mídia corporativa repercutiu a notícia foi muito pouco esclarecedora e espetacularizadora - é como se todas as provas, de repente, estivesse toda errada. Infelizmente, acreditar que isso é mero mau jornalismo ou apenas pensar nisso como um partidarismozinho é ingênuo; para além de qualquer crítica ao Ministro da Educação e ao Governo, o que está posto é uma crítica ao ENEM e não à sua aplicação, tampouco é proporcional ao que aconteceu.
O problema, que está na forma de aplicação do ENEM e não no exame em si, torna-se, de repente, problema do ENEM como um todo e, sendo ele meio e não fim, mira-se na política de inclusão para a qual ele serve como instrumento - em suma, aquilo que Serra fez durante toda a campanha, defender uma política excludente de forma indireta, pelos silêncios e pelos subterfúgios. Sempre que fugia pela tangente ao ser perguntado sobre o Prouni, Serra surgia com a história do "Protec", bolsas para inclusão em "ensino técnico", mas nem refutava ou, ao menos, conseguia explicar o posicionamento do DEM nessa ação contra o referido programa de inclusão. Em suma, mais um dos silêncios gritantes de Serra. A mídia, por sua vez, merece o troféu Weslian Roriz por sua defesa obstinada de uma causa irracional.
P.S.: Esclarecedora a twitcam do Idelber sobre o assunto.
No segundo parágrafo, ao escrever "auferir", acredito que a real intenção tenha sido dizer "aferir".
ResponderExcluirCorrigido, obrigado.
ResponderExcluirO grande problema de nosso sistema educacional é na raiz: ele é totalmente baseado em duas ideias equivocadas:
ResponderExcluir- A ideia da "tabula rasa", em que toda criança tem o cérebro vazio e que só a "colocação" de ideias, feita pela escola é que vai preparar o aluno para a vida.
- A ideia de que inteligência é "acúmulo de conhecimento". Isso faz com que se supervalorize a memória e estimule a decoreba.
Nosso sistema educacional, além de se basear nestas ideias, ele é totalmente e exclusivamente projetado para satisfazer as exigências do mercado de trabalho. É uma exigência burocrática.
Crer que o sistema educacional brasileiro forma caráter é como acreditar em duendes.
Na minha opinião, todo os sistema educacional brasileiro deveria ser derrubado e inventado do zero, pois manter os erros que existem, vai continuar prejudicando gerações e gerações.
E não são um excesso de provas de decoreba (a do ENEM é uma delas) que vai resolver o problema da educação. É como cortar o mal pelo caule. A raiz continuará desenvolvendo os problemas de nossa educação.
Marcelo,
ResponderExcluirSem dúvida que o problema é bem anterior e mais profundo, mas o que eu coloquei é que esse corte de instâncias entre o Ensino Médio e o Superior consiste em um dos grandes problemas do nosso sistema educacional - mas discordo totalmente do ENEM enquanto prova de decoreba, ele é uma prova de interpretação e pode ser bem desenvolvida; mas adiante, poderia ser criado um mecanismo de admissão no qual fosse permitido o estudante usar o melhor resultado dos três últimos ENEMs (como quase acontece hoje para computar nota para a Fuvest). De um modo ou de outro, precisamos de provas de admissão.
abraços
Pequenos Pontos.
ResponderExcluirGostei bastante do post Hugo.
Obviamente se comparado com outras provas de admissão em universidades o ENEM está anos luz a frente em matéria pedagógica. O problema é que com essa análise comparativa fica fácil elogiar quase qualquer coisa.
Ex: O trabalho semi-escravo de boias frias em SP é muito melhor que o trabalho escravo das populações ribeirinhas no Pará, que por sua vês é muito melhor que a situação escrava dos eunucos em algumas partes do mundo, que é ainda muito melhor do que a situação dos servos diretos das divindades de locais no pacífico sul onde a vida dos servos serve apena ao sacrifício para honrar tais divindades...
Essa lista não tem fim. Meu ponto é o ENEM é uma prova, por definição prova é uma tautologia. A unica coisa que é capaz de provar é que os que nela são aprovados são capazes de resolvê-la.
Mas ainda que vc diga que um exame é um mal necessário, o que na conjuntura atual concordo com vc, o ENEM tem outro grande problema, que certamente faz o Paulo Freire se revirar no túmulo.
O ENEM é uma prova exatamente igual para todo o território nacional. Evidentemente trata-se de uma reprodução do que a pedagogia freiriana tanto combateu; que era essa pretensa unidade no conhecimento. Como se um amazonense tivesse que aprender os mesmos conteúdos e interpretar textos e fatos da mesma maneira que um Pernambucano, um Goiano ou um Carioca.
Nesse sentido estou com o velhinho e não abro. A idéia mais inovadora do ponto de vista pedagógico é a idéia de Tema Gerador. Foi isso que permitia ao Paulo Freire em apenas 30 horas concluir a alfabetização de pessoas que o Estado em 4 anos não conseguia. É o conhecimento que se volta para a realidade social factual das pessoas. Isso, lamentavelmente não cabe numa prova aplicada a nível nacional.
Obviamente o ENEM tem seus méritos, tendo em vista o contexto do qual partimos. Mas acho que está muito longe de ele ser um grande feito.
Acabe me alongando mais do que queria.
Abraço
Ivan Sampaio
Blog: http://desmontadordeverdades.blogspot.com/
Ivan,
ResponderExcluirBem, em um primeiro momento, eu creio que a analogia entre o trabalho escravo e o semi-escravo não é boa, ela não capta nem de longe o que está sendo comparado - convenhamos, comparar ao absurdo não é uma boa linha argumentativa. Escravidão e semi-escravidão, pelo menos no Brasil, são meios de exploração que não tem comparação com exames vestibulares seja pela sua intensidade ou pelo fato de serem economicamente desnecessárias na época em foram aplicadas na nossa sociedade - hoje, mais ainda -, diferentemente das provas de ingresso.
Queria quer sim, queria quer não, não existe vaga para todo mundo no ensino superior. Isso não deveria ser sim, mas é sim. O caminho é ampliar gradualmente vagas, o que não exclui, num horizonte não-utópico de médio prazo, provas de ingresso e, nesse sentido, o caminho é trabalhar com provas que exijam mais criatividade e o ENEM é um primeiro passo nessa direção. Ou isso ou imaginar a inclusão dos estudantes do ensino médio automaticamente nas universidades, o que, por conta de toda uma construção histórica acaba sendo tão absurda quanto a política de exclusão do DEM.
Ao meu pensar, é fundamental que a prova seja a mesma para todo o Brasil. O nosso Corpo Político é, em um primeiro momento, o país mesmo e ter uma prova nacional é um meio de comparar deficiências em regiões ou realidades (escolas privadas e públicas, técnicas ou comuns) diferentes. Fazer provas diferentes é fragmentar a lógica do sistema e ajudar a mascarar maus resultados de estados como São Paulo, onde, a despeito da grana circulante, o que é feito em termos de educação é desastroso.
abraços