terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Como o Carnaval Paulista (Não) Acabou


     
Pau quebrou no Sambódromo? À noite o SBT faz uma edição ishperta e diz q foi só uma bolinha de papel.




Com esse tweet inacreditável de Soninha Francine, ex-um monte de coisas e recém-serrista para todo o sempre, foi o único desfecho possível para o interminável carnaval paulista - que não terminou mesmo, uma vez que o quebra-pau entre as escolas de samba, causado pela tensão gerada por mudanças de última hora (e mal-contadas) dos jurados, obstruiu o processo de apuração das notas.

É um exercício de surrealismo em uma intensidade única, derivado de um surto paranoico coletivo e extremo. De repente, o carnaval roubado das ruas, transformado em competição e enchido de regras e proibições, chega a um nível de violência psicológica tamanha que só poderia resultar, na forma de catarse, em uma pancadaria generalizada. 

Como desgraça pouca é bobagem, enquanto eu tuitava que São Paulo tinha virado algo como um filme de Buñuel - ou do último Almodóvar, para ficar em um exemplo mais recente - surge esse tweet acusando o SBT de ter editado (oi ?!) o vídeo em que José Serra, no episódio mais tragicômico da política nacional, é flagrado fingindo ter se ferido gravemente quando, na verdade, algum lhe tacou uma perigosa e inconfundível bolinha de papel.

Sem mais: se você não superou a história da bolinha de papel, faça um favor a si mesma e passe a sua vez, porque mesmo os adversários de Serra já trataram de apagar isso de sua própria memória por vergonha alheia. 

Isso, infelizmente, é um bocado o retrato do São Paulo contemporânea, que te angustia até o momento em que não te faz gargalhar como um louco - como se você assistisse a Salò de Pasolini refilmado tal e qual uma pornochanchada.

O irônico, e o que seria a História sem suas ironias, é que mesmo a tentativa radical de enquadrar o carnaval e torna-lo um fantasma de si próprio, ainda que por vias tortas, termina em um carnaval involuntário. Sei lá, mas acho que ainda bem.

atualização das 19:17: e depois foi declarado que a Mocidade venceu o desfile, dizer mais o quê de tudo isso.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

A Guerra Civil no Império e a Ameaça ao Irã

Primeiro como tragédia, depois como farsa: As guerras médicas.
Neste exato momento, o Irã está cercado. Uma boa quantidade de navios de guerra está estacionada ou se dirigindo ao Golfo Pérsico, enquanto muitos países da União Europeia já não estão comprando petróleo do Irã, seja por retaliações de Teerã ou por decisão própria. Nem preciso dizer que as potências ocidentais estão se movimentando para forçar uma guerra que, aliás, pode arrebentar a qualquer momento com consequências terríveis. Essa situação cabe uma rápida digressão. 

Quando o século 21º estava nascendo, o amanhã à la Jetsons - isto é, uma mistura de comercial de margarina com futurismo - que os americanos desenhavam como o porvir do Globo, dentro da sua hegemonia total, ruía silenciosamente: o estouro da bolha da Internet foi um desastre que pôs em xeque a new economy - mostrando o descompasso entre capitalismo cognitivo e economia do conhecimento - e as apostas de Clinton. Isso produziu uma movimentação de bastidores que trouxe de volta ao jogo os republicanos e seu belicismo, qualquer coisa potencializado com os ataques de 11 de Setembro. 

Dizer que o 11 de Setembro causou a guinada da política externa americana é ingênuo. É esquecer, por exemplo, que um dos primeiros atos do governo Bush foi bombardear o Iraque. O atentado ao World Trade Center, se muito, apenas retardou a segunda guerra contra o Iraque e criou um combate que não existiria, dessa vez, no Afeganistão. Talvez tivéssemos o tão sonhado confronto com o Irã no lugar de algumas dessas guerras, talvez alguma loucura na Coreia do Norte.

A integração dos mercados globais via capitalismo, a afirmação do inglês como língua franca e quetais não trouxeram, comos os americanos esperavam, uma espécie de ordem global onde Washington lideraria acima das próprias regras do jogo, imune às crises. Essa percepção vem muito antes das agências de risco rebaixarem os títulos americanos em Obama, é algo que já aterrorizava os tecnocratas de Bush e o fez ir à guerra. Mas se os EUA, pela força de suas tropas, era livre para fazer o que fez, nem por isso, ele deixaria de arcar com as consequências.

O fato é que, hoje, não há mais guerras, logo não existem mais os ganhos que podem ser extraídos delas. Trata-se de uma impossibilidade. O final das fronteiras transforma toda guerra em uma guerra civil. A semelhança entre os dois termos nas línguas ocidentais de hoje esconde, por sua vez, uma profunda diferença: se a guerra é o confronto armado entre corpos coletivos - seja a cidade antiga, o reino medieval ou Estado moderno -, a guerra civil é um processo destrutivo de confrontação interna, de autofagia - talvez por isso os gregos designavam a primeira como polemós e a segunda como stasis.

As guerras que os americanos promoveram, no Afeganistão e no Iraque, com Irã e Coreia do Norte na mira - quem sabe, a própria Venezuela - não só não trouxeram ganhos para os EUA como desequilibraram o sistema mundo e, por tabela, seu próprio país. O estouro das contas públicas americanas, pelas duas guerras em que se meteu simultaneamente, ainda é subestimado como esse fator de desequilíbrio, mas se esquecem os incautos que o aumento do endividamento da nação emissora de moeda hegemônica não é lá um bom sinal - e que emissão de dinheiro não é exatamente uma saída, ainda mais em larga escala.

Pois bem, não temos nem dois meses que os EUA se retiraram do Iraque, depois de uma vitória militar seguida de uma derrota política: seja pelo desgaste econômico e político interno ou mesmo, vejam só, por ter legado em Bagdá um governo xiita pró-Irã. Enquanto isso, Washington prossegue seu empreendimento no Afeganistão, após a vitória simbólica do assassinato de Osama Bin Laden, mas sem muitos ganhos efetivos - ainda mais pelo fato de que o país passa a depender mais e mais de cessões para a Rússia, aliada estratégica para o trânsito de tropas americanas e aliadas pela Ásia Central.

Somemos isso à atual situação do mundo árabe, onde há um ano revolta multitudinárias puseram em xeque toda sorte de tiranias e temos um cenário interessante. Washington, apesar de todos os recentes fracassos, mantém uma doutrina nacional no mundo global e ignora, inclusive, o quanto a economia da guerra só traz ganhos, hoje, para as próprias corporações bélicas. Washington quer recuperar o terreno perdido à força e acha, ainda, que pode ter retornos econômicos com isso - fora os lobbistas locais, que sabem bem o que estão fazendo dentro de sua atividade parasitária.

Quando falamos em Primavera Árabe, por sinal, falamos de um levante da multidão local contra uma forma de governança, independentemente de sua posição frente aos EUA ou ao globo. Isso explica porque houve levantes contra as ditaduras de Mubarak no Egito e Ben Ali na Tunísia - aliados do Ocidente - e, ao mesmo tempo, derrubou-se Kadafi na Líbia e ameaça-se com violência o clã Al-Assad na Síria.  

O que muda é a atitude americana frente a revoltas com motivações parecidas: enquanto na Tunísia e no Egito o processo revolucionário foi procrastinado - ou mesmo, no caso egipício, chegamos ao ponto de ver o apoio descarado a uma ditadura militar que serve, por sua vez, para tutelar o andamento das coisas -, na Líbia e na Síria, financiou-se mercenários contra os ditadores locais. 
   
Um fator importantíssimo que atravessa essa confusão toda é Israel. Quando falo em Israel aqui, não me refiro a judaísmo, sionismo ou nada do tipo, mas antes de mais nada ao complexo bélico-industrial local que capturou a política daquele país desde a primeira guerra do Líbano. O país é parasitado por aquele setor e essa percepção, finalmente, chegou à população israelense que se manifestou, massivamente, nas ruas há poucos meses, à moda de seus vizinhos árabes e dos europeus. 

Esse mesmo complexo-militar israelense encontra-se em xeque desde que foi contido, na última guerra do Líbano, por um estranho consórcio no qual as tropas do Hezbollah, apoiadas pela ditadura laica dos alauítas sírios e da teocracia xiita do Irã, conteve o exército de Israel impondo um limite para seu expansionismo. 

É o mesmo complexo bélico-industrial que, como nos prova Wikileaks, move mais os EUA do que lhe serve de tentáculo avançado no Oriente Médio. Ele precisa de uma guerra para dissolver tensões internas, a exemplo das potências mundiais pré-Primeira Guerra, e precisa parar o Irã que ameaça tirar seu monopólio nuclear na região - o que criaria uma paz armada que afetaria seus negócios. 

O clero de Teerã, quanto mais pressionado, mais avançará. Primeiro porque mesmo quando foi eleito um governo moderado, há poucos anos, liderado pelo reformista Mohhamad Khatami o Ocidente não demonstrou qualquer boa vontade em negociar. Depois, porque se ele parar agora com seu programa nuclear, não existe garantia alguma que o Ocidente cesse as hostilidades - onde estão as armas de destruição em massa de Saddam Hussein?

Aos russos a guerra assusta bastante. Não obstante seus problemas internos, a maior ameaça à estabilidade russa nos últimos vinte anos tem sido o Cáucaso e proximidades, seja a dura guerra na Tchechênia ou mesmo a perigosa aliança que a Geórgia fez com Ocidente - o que causou um confronto pesado, porém rápido, durantes os Jogos Olímpicos de 2008, com êxito para Moscou. Sem a presença de um governo confiável no Irã, a região fica mais exposta. Por mais que Teerã tenha uma posição ambígua, os persas não são aliados para se jogar fora, coisa que não poderia se dizer de um governo fantoche, naturalmente.

Tanto pela limitação de recursos humanos do lado de Israel, quanto pelos limitados recursos bélicos do Irã, é possível que uma guerra muito cruel seja deflagrada rápida e abruptamente na região. Ambos os lados precisam lançar mão de ataques duros que causem danos consideráveis no adversário. Com  a situação ainda nada estável do Iraque e, sobretudo, da Síria, não é exagero dizer que o conflito possa se espalhar pela região inteira.

Se em 2010, o Brasil de Lula e Amorim foi responsável, junto à Turquia, por adiar o conflito no Irã. Agora, o recuo da política externa de Dilma em relação a Teerã abre espaço para que o processo bélico avanço. Sem um esforço conjunto e transversal dos movimentos de indignados que lotam as praças do Globo - passando até mesmo pelos cadavéricos Estados-nação -, assistiremos a uma carnificina que sequer trará o lucro esperado para os seus idealizadores. 

O mundo globalizado não admite mais vitoriosos em guerras, pois nas guerras civis só há derrotados. O custo dessa farsa nos será muito caro.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Carnaval, Democracia e os Problemas no Capitalismo 2.0

La Vendritice di Essenze  - Longhi
Domingo de Carnaval faz pensar em tanta coisa. Inclusive em todo esse estado de coisas que nos cerca, todos esses problemas. Aliás, na democracia, o problema sempre foi a multidão e a insistência da Vida em resistir ao poder, escapando de seus tentáculos, desdobrando seus axiomas e sua axiomática. Literalmente. A palavra problema vem do grego "proboulema" e alude aos projetos de leis desenvolvidos pelas assembleias - eklésias, palavras de onde vem tanto "assembleia" quanto "igreja" em português - e submetidas à Boulé, a câmara alta ateniense - que continua a existir na democracia, ainda que de forma mais razoável -  cuja origem etimológica remete à ideia de vontade.

Cada proboulema se punha como uma questão perturbadora e monstruosa para a estrutura de poder da Pólis, uma verdadeira encheção de saco, principalmente porque eles se multiplicavam em turbilhão. Eram proboulemas, proboulemas e mais proboulemas até chegarmos à problema como expressão de questão que impõe sua resolução de forma pungente, como impedimento à continuação de algo. Em suma, a própria origem do conceito de problema decorre da luta política e possui um solo bastante material e concreto - muito antes de qualquer filosofia primeira, metafísica ou ontologia. A multidão insistente como causa dos problemas e a vontade como sua solução.

E não nos iludamos, a democracia sempre consistiu não em um regime de liberdade absoluta, mas em uma forma de governo na qual seus partícipes são apenas aqueles do grupo que foram juridicamente reconhecidos, tomados a partir daí também como partes aptas a decidir - mas a própria inclusão daqueles dessa maneira não exclui nem a cisão entre participação e poder para decidir, tampouco (e mais importante) a existência de um biopoder capaz de enunciar, já ali, por meio de mecanismos jurídicos quem é parte e quem não é (com o binarismo primeiro do direito, designar quem é de dentro e quem é de fora em relação à pólis para, depois, hierarquizar e selecionar os próprios pertencentes).

A democracia, aqui ou ali, não nasce por astúcia do poder, mas porque a luta verga seu exercício tradicional - mas a democracia sempre conservou os signos dessa tradição. A novidade da sociedade de controle não chega a ser novidade como movimento na história do Ocidente, pois criar um mecanismo resiliente de dominação sempre foi um meio de suportar pressões. Em Roma isso aparece com o nome de República, a Boulé chama-se Senado, os políticos são os cidadãos, os proboulemas são as moções (dentre eles, os plebiscitos), as eklésias passam a ser os comicius (de onde vem comício, comissão e comitê) e os concilium (de onde verte conselho e concílio).

Em outras palavras, isso indica que o poder jamais foi constitutivo, mas sim a Vida que se rebela contra sua tentativa de enquadra-la. Tampouco a democracia/república jamais foi o fim de qualquer conflito, mas sim resultante da disputa e ao mesmo tempo seu novo campo - portanto, nada mais opressivo do que o mascaramento do conflito, em termos cordiais, em prol da democracia/república. Se no plano democrático o dispositivo jurídico continuam a existir, com fins mais nobres, isso não significa que ele deva ser abraçado, nem que deixe de ser manuseado. A emancipação não vem de uma força externa e transcendetal, nem da acomodação sedentária com o que foi conquistado - como se as leis democracia fossem sobreviver sem a força rebelde que as criou -, mas sim da subversão constante.

Assumir-se subversivo é estar pronto para a flexibilidade do poder - hoje maior do que nunca. - e ninguém melhor do que o incompreendido Maquiavel concebeu isso. Aí, voltamos ao Carnaval, nascido como sátira do luto público pelo fim da ordem - num primeiro momento, confundida com o corpo físico do Imperador romano como observa bem Giorgio Agamben no Estado de Exceção -, evento no qual ela terminava suspensa e o tumulto imperava. O Carnaval, portanto, consiste na suspensão da própria ordem, onde a inexplicável paixão triste pelo fim do domínio é subvertida na forma de comemoração pela ausência dela. As leis são suspensas no Carnaval.

A possibilidade de Carnavalização da política sempre pareceu uma hipótese monstruosa demais para o sistema conviver com ela. Não seria um grande problema, mas uma subversão dessa instância, pois só pode haver problemas onde exista, ao menos, um dispositivo de autorização/axiomática controlando a polifonia. Com as leis suspensas - incluso no que toca à própria identidade - não seria sequer mais questão do poder estar diante de uma problemática complexa, mas da ausência da necessidade de se problematizar pela subversão do dispositivo central do sistema. O desejo perverso de dominação, verdadeiro fundamento do poder escondido por séculos de platonismos, estaria sem o seu chão - papai já não estaria mais sequer sendo considerado instância para autorizar o que quer que seja, nem mesmo sofrendo pressão.

Não à toa, movimentos que vão desde a captura do próprio Carnaval na forma de evento mercantil - como espetáculo, competição etc - até a negação do luto, com quem mantém intrínseca (e intrincada) relação, ao se esconder a memória histórica - como no Brasil atual e sua morosa comissão da verdade -, passando pelo Capitalismo 2.0 - a exploração das redes no melhor clima anestésico e livre - são a tônica do momento. A carnavalização da política se afirma como nunca antes, o que força o sistema a criar uma saúda suficientemente flexível, que é a própria estetização do Carnaval - como vemos, p.ex., dentro dessa nova lógica gestionária das redes, causa de recente e intenso debate na Uninomade: o risco iminente da captura por mídia e cultura livres no sedentarismo do business sob aparência polifônica, liberada, emancipada.

A festa livre nas ruas torna-se marcha ordenada, pastiche de liberação e liberdade. A rede é feita livre só para que eu selecione aquilo que eu quero explorar. As máscaras passam a identificar em vez de suspender o mecanismo identitário. A partir daí, é necessário saber jogar com as cartas dadas, sem se acomodar com elas. O que faz uma esquerda não são os instrumentos usados, mas sim a função dada. As armadilhas e arapucas são o próprio jogo.




  

domingo, 12 de fevereiro de 2012

PT: Entre Aeroportos e o PSD

Ribbentrop-Molotov deu errado. A História ensina, mas não perdoa
Durante a semana, dois temas fundamentais atravessaram o Partidos dos Trabalhadores: o primeiro é a polêmica sobre a concessão, feita pelo governo federal, de três aeroportos de grande porte, o segundo é a possibilidade de aliança do PT com o PSD nas eleições de São Paulo capital, este ano. Diretamente e indiretamente, os dois movimentos têm o dedo de Dilma Rousseff, são contraditórios com a História do PT e são significativos quanto aos rumos do partido.

Sobre as concessões, não, isso não é o mesmo que "privatizar", mas nem por isso trata-se de um processo defensável. Dizer que os aeroportos estão ruins porque o Poder Público é incapaz de lidar com eles é falso, uma vez que eles ficaram ruins justamente porque as autoridades que os largaram de lado são as mesmas que, agora, os estão concedendo para a iniciativa privada - não falta proatividade para nada, mas sim sobra na omissão e na ação.

Meu problema com concessões não é que eu vejo como negativo a diminuição do Estado, mas  sim exatamente o contrário: Conceder para a iniciativa privada, ou privatizar algum bem estatal, não diminui o Estado, apenas o tira das mãos dos representantes eleitos e dos funcionários concursados e indicados para dar-lhe para uma tecnocracia terceirizada, imune diretamente aos interesses sociais.

Quando FHC diz que o Estado não diminuiu no seu governo, ele não está mentindo: o Estado só passou de mãos, ele não foi substituído por outra coisa - pois uma coisa é determinada pelo que ela faz, não existe um "ser" num sentido essencial, portanto a forma-Estado (eu prefiro falar em "função-Estado") continua lá. Usar a ineficiência tradicional do Estado brasileiro é um mau argumento, pois ela remota a ditadura e ao que veio antes, estando intrinsecamente ligada a falta de participação social concreta na política.

Nada mais cômodo do que isso. Se o Estado brasileiro durante a ditadura estava nas mãos de técnicos a serviço de uma oligarquia, com a democracia (mesmo representativa), velhos interesses de classe precisavam ser garantidos, tirando, assim, empresas públicas e demais organismos estatais do raio de alcance legal que os cidadãos passaram a ter com a democracia.

Esse tipo de processo acontece de todas as formas no Brasil de Collor para cá - com mais ou menos velocidade -, seja por meio de leilões mais ou menos legais ou, de forma obscura e tácita: o que dizer da relação promíscua do poder público carioca (municípios e governo estadual) com as milícias - que fazem às vezes da polícia, só que bem longe dos direitos e garantias da democracia - ou das autoridades paulistas com a forma como o PCC, na prática, administra seus presídios?

Naturalmente, aqui não segue nenhuma defesa de que o sistema de 1988 por si só, é politicamente suficiente, o que está em jogo aqui é precisamente as sementes de democracia participativa contidas naquela carta, que podem trazer, por elas mesmas, a efetiva superação do Estado pela construção de um novo modo de organização político.

Conceder aeroportos - o que já estava posto no debate público há tempos, pois nunca foi segredo por parte de Dilma - não é diminuir o Estado, mas apenas apenas mudar sua relação na administração daqueles espaços, concedendo a execução das políticas públicas naqueles espaços para a iniciativa privada conforme seus interesses (de classe) - ainda que balizados pelo poder público. 

Isso destoa da tradição petista de, na prática, fortalecer o poder estatal para esvazia-lo: o projeto democrático-popular sempre girou em torno da adoção de mecanismos de participação direta para a formulação de políticas públicas - como visto em questões como o orçamento participativo em várias prefeituras petistas. Dilma, petista recente, esteve alheia dessa construção e assim permanece. 

No caso (ou ocaso) das eleições paulistanas, a crise da esquerda local - liderada e quase monopolizada pelo PT - parece não ter fim desde o governo Marta (2000-04). O jogo para  as eleições de 2012, que envolveu a esquerda do partido - que pautava Haddad em sua maioria -, os governistas - que preferiam o comodismo de apoiar um candidato "da base" - e os grupos dos eternos candidatos - Marta e Mercadante - não poderia ser menos duro. Ganhou Haddad, um híbrido que sempre transitou entre a esquerda do partido e a cúpula do poder petista com singular habilidade, mas não sem atritos. 

O que impressiona, agora, é a articulação do governo federal, sobretudo da parte de Dilma, em forçar a formação de uma chapa de Haddad com o PSD. Isso atende ao interesse do impopular prefeito paulistano - também criador e ideólogo-mór da sigla - Gilberto Kassab, que viu sua jogada brilhante de rachar o DEM fazer água graças aos rumos dos confrontos internos PSDB - ele sonhava em compor chapa com Serra ou sair apoiado pelo PSDB sob o comando dele, mas nada disso deu certo, pois o ex-candidato presidencial tucano está afundando.

É evidente que de qualquer ponto que se veja essa aliança, ela só faz sentido para o interesse imediatista do governo federal em ter mais um partido, o PSD, na base aliada do Congresso. Nem mesmo do ponto de vista mais eleitoreiro isso faz sentido: Kassab derrotou os petistas de forma brutal há quatro anos, mas fez um governo horrível cujas implicações poderiam perfeitamente (e com justiça) serem usadas como arma de campanha do PT ou de qualquer partido governista. Da perspectiva de projeto político, nem preciso falar o que Kassab representa.

Enquanto Dilma tecia loas a Kassab no 25 de Janeiro, o fatídico aniversário de São Paulo logo em cima do massacre da comunidade do Pinheirinho - pelo governo estadual do qual Kassab e seu grupo fazem parte, diga-se de passagem -, Haddad sequer fez questão de comparecer à cerimônia, mas a sombra dessa aliança continuou a pairar sobre sua candidatura de lá para cá

Para Dilma, tudo é muito cômodo, uma vez que ela não vê importância em uma mudança de política em São Paulo ou de fortalecimento do PT - o que é preocupante -, não é ela a candidata e sua preocupação só parece dizer respeito a votos no Congresso para aprovação de projetos imediatos. Se ela ignora os impactos disso entre os petistas de São Paulo, ou  está muito mal-informada ou é isso que ela quer. Porque, dentro da política paulistana, aliar-se a Kassab é como colocar um gato morto debaixo do seu chapéu para vê se dá sorte: além de não ajudar, você ainda paga por um mau cheiro que não é seu.

Isso tudo fecha o quadro tenebroso da política nacional atual. Enquanto o PSDB chafurda em uma briga interna lamentável e se move para a extrema-direta, Dilma, embora não seja uma liderança propriamente partidária, não deixa de interferir diretamente nos rumos do PT e tem feito isso mau. Por outro lado, as demais forças de esquerda parecem torcer para que esse tipo de interesse prevaleça na briga interna para, assim, poderem denunciar o partido com mais força - quando deveriam estar trabalhando para construir um projeto efetivo.

E as coisas na política brasileira, cada vez mais, se passam nos bastidores e em pequenas conspirações com uma Presidenta que insiste em agir como o Stalin de Isaac Deutscher: envolta em uma junção de mistério e autoridade, ela se move pelas sombras, tecendo alianças em nome de uma realpolitik, a bem da verdade, muito pouco real, enquanto tem, mais do que qualquer líder recente, o espaço de manobra para fazer muito mais e melhor.  





Semana de Palestras do 22 de Agosto -- Direito PUC



Pessoal, segue a programação da Semana de Recepção de Calouros 2012 do Direito PUC/SP - promovido pelo CA 22 de Agosto, cuja gestão eu integro.  A entrada é franca e o evento é aberto para toda a comunidade. 

Segue a Programação:

Segunda-Feira 13/02, tema: O Papel da PUC na Construção da Democracia

Subtema, Manhã (08:30 às 12:00): A Resistência dos Estudantes da PUC à Ditadura de 64

Pedro Estevam Serrano (Direito PUC/SP)
Edson Passetti (Faculdade de Ciências Sociais PUC/SP)
Henrique Pacheco (Ex-deputado, ex-vereador e membro do 22 de Agosto no período da reabertura)
José Renê Pires (Advogado Militante, ex-membro do 22 de Agosto)


Subtema, Noite (19:30 às 22:00): Comissão da Verdade

Willis Guerra Jr. ( Direito PUC/SP)
Deisy Ventura (Direito USP)
Nelson Nery (PUC/SP)

Terça-Feira 14/02, tema: Direito como Meio de Transformação Social

Manhã 

Flávia Piovesan (Direito PUC/SP)
Bruno Cava (UERJ)
Jorge Souto Maior (Direito USP)

Noite

Luís David Araújo (PUC/SP)
Almir Pazzianotto (ex-ministro do TST)
Gustavo Reis (Defensor Público)

Quarta-Feira15/02, tema Direito e Sociedade do Espetáculo

Manhã (subtema: a Emergência dos Direitos Humanos)

Kenarik Boujikian (Juíza e membro da Associação Juízes pela Democracia)
Renato Rovai (Editor da Revista Fórum)
Daniela Albuquerque (DPE)

Noite (subtema: Mídia, Judiciário e Criminalização da Luta Política)

Benedito Barbosa (União dos Movimentos de Moradia)
Marco Aurélio Carvalho (Advogado militante, ex-presidente do 22 de Agosto)
Luciana Zaffalon (Ouvidoria Geral da DPE)

Quinta 16/02: Profissionais do Direito e a Luta por Justiça Social

Manhã

Antonio Carlos Malheiros ( Direito PUC/SP e Desembargador TJ/SP)
Gustavo Junqueira ( Direito PUC/SP e DPE)
Leonardo Massud ( Direito PUC/SP e advogado)
Marcelo Semer ( Direito USP e Juíz)


Noite

Edson Luís Baldan (Direito PUC/SP e delegado)
Janice Ascari (Procuradora Federal)
Gustavo Henrique Amorim (advogado da União)
Mauro S.M. Souza (Advogado)









terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Polícia Militar, o Motim e a Bahia

Exército já está nas ruas de Salvador (Lunae Parracho - Reuters)

A dita greve da Polícia Militar baiana tem ocupado uma posição de destaque na mídia tradicional. Como não poderia ser diferente, seja pela posição político-partidária dos jornalões ou mesmo pelo peso, no imaginário coletivo, da superstição do policialismo como garantia universal da segurança pública - e não nos interessa especular porque isso acontece, talvez apontar dados e desmontar esse argumento como fizemos há pouco, mas entender o porquê das pessoas desejarem que a polícia seja esse elemento essa cura para todos os males.

Sobre o caso baiano e suas implicações, Lucas Jerzy Portela, em seu o Último Baile dos Guermantes, foi bastante feliz em suas considerações - tanto sobre o caráter da dita greve, quanto no que toca à mistificação toda em torno da polícia e da segurança pública:

"Mais aquém, isso nos revela outras questões. Primeiro que se o efeito da ausência de policiamento é imaginário (mesmo havendo polícia, se crê que não há), o efeito do policiamento também o é: só não há saques e arrastões no dia a dia porque as pessoas acreditam que não podem haver, acreditam estarem protegidas. É uma mistificação, como a existência de um Deus transcendente (os imanentes me interessam). Segundo é o absurdo de haver uma polícia com poder militar sobre população civil durante democracia – um estado de exceção como miasma dentro do estado de direito. Alguém vai levantar o complexo de vira-lata: 'polícia única com baixo armamento dá certo na Inglaterra, que é país rico e equânime' – por um acaso México, Índia, África do Sul, se tornaram também países mais ricos e mais equânimes que o nosso? Desde quando ter mais violência traz menos violência, e mais discrepância de força internamente a relação sociedade-Estado gera mais distribuição de renda e riqueza?"
Se no caso dos bombeiros cariocas - que estão juridicamente equiparados a [policiais] militares, embora não o sejam realmente - havia, na prática, uma greve - bem justa, diga-se -, no caso dos policiais militares - que são realmente militares, embora não devesse haver polícia militar com poder sobre civis numa democracia - há, de fato, um motim. Uma chantagem, com pouca adesão da categoria, mas que se volta contra o governo e contra a sociedade juntos, causando efeitos reais em decorrência do poder imaginário que possuem (de poder estar em todos os lugares ao mesmo tempo, impedindo crimes).

Sim, Lucas tem razão ao colocar que aqui a polícia se põe contra a sociedade do mesmo modo que se põe contra ela, com o apoio do governo, em outras situações recentes - o que suscita algo terrível, que é a autonomia ideológica e prática da polícia (ou de parte dela) no plano político e sua disposição a agir dessa e daquela maneira, independentemente do plano de governo (podendo estar contra ou a favor daquele, independentemente do lado que ele se ponha em relação à sociedade). 

Porque no caso baiano nos deparamos com um fato: os policiais receberam reajustes nos últimos anos que os fazem ganhar relativamente bem, o que talvez explique a baixa adesão a essa greve em relação, por exemplo, ao levante massivo contra ACM - na figura de seu protegido, o ex-governador, César Borges -, apesar da relação histórica e ideologicamente próxima do ex-líder baiano com aquela corporação.

O que se esconde atrás dessa cortina de fumaça mistificadora, o desejo de que a polícia seja realmente uma entidade transcendente, presente em todos os lugares, sabedora de tudo e capaz de tudo, é o medo, a paixão triste à qual somos todos submetidos - em virtude disso, sentimos como em todos os lugares e momentos, a pior possibilidade necessariamente (ou tendencialmente) fosse acontecer em termos de violência direta contra nós mesmo. O quanto a polícia realmente evita crimes de forma direta? Tanto ou menos quanto ela mesma, abusando do seu poder, os comete.

Não que a abolição imediata e direta da polícia, sem criar nada no lugar das relações que sustentam sua existência, seja um caminho - no máximo, algo novo (e pior) faria sua função. É claro que os determinantes reais da violência não guardam relação com a simples existência da polícia, entretanto, no curto e médio prazo, o impacto psicológico de uma crise na polícia (ou de abolição) produziria uma crise social (e econômica) talvez insustentável. 

Mas é possível sim desconstruir as relações que estruturam essa indústria, desconectando parte dos seus dispositivos, quem sabe fazendo uma ampla reforma das polícias e tornando-as únicas, civis e cidadãs, enquanto implementam-se, no campo da produção biopolítica, medidas que desconstruam a política do medo (a tirania, ela mesma). Uma boa polícia, assim como um bom exército, é aquele que tem em vista trabalhar para ser desnecessário tão logo - ou quem sabe essa seja a diferença entre o guerreiro e o mercenário.

Em outras palavras, a polícia é um instrumento do Estado, em seu significado, embora não de um governo - sobretudo daqueles que de alguma forma busquem autonomizar a sociedade, em algum grau, em sua relação (haja vista o Golpe de 64).  Nesse sentido, a atuação do PSOL - e em especial do deputado Jean Wyllys, cuja atuação em defesa dos direitos civis é excelente, diga-se - toma um caráter temerário, pois ela alimenta uma ebulição contra a Ordem que não visa afronta-la, mas, no fim das contas, reforma-la no sentido de endurecê-la - tudo isso dentro de um caráter mistificador de qualquer movimento rebelde.

O policialismo - seja na USP, na Cracolândia, no Pinheirinho, no último show de Rita Lee ou nesse motim baiano - constitui-se em um verdadeiro perigo, pois é instrumento poderoso para o "reenquadramento" que os conservadores têm em mente quando se deparam com um Brasil ebulição, onde o desejo dos pobres foi autorizado - por políticas social-desenvolvimentistas -, mas, ao mesmo tempo, não se sabe o que fazer com ele - como é próprio do desenvolvimentismo e suas variadas formas. No caso baiano, Jaques Wagner tem razão e o apoio do governo federal é tão fundamental lá - por meio do envio de tropas federais - quanto é grave sua ausência no uso inadvertido da polícia em São Paulo. 



segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Pinheirinho: Já se Passou uma Semana

There was much in it that I did not understand, in some ways I did not even like it, but I recognized it immediately as a state of affairs worth fighting for."
(George Orwell, sobre a Barcelona Revolucionária, em Homage to Catalonia) 


Nesse último final de semana, visitei São José dos Campos com alguns amigos.  No sábado, fui ao terreno no qual se localizava comunidade do Pinheirinho - e onde agora jazem seus escombros, memórias e reminiscências. Depois, circulamos pela cidade e fomos em dois dos quatro "abrigos"  onde estão os desabrigados, sendo que no meio tempo entre um e outro, passamos pela Defensoria local para ajudar no mutirão de atendimentos - apesar de que o movimento maior tenha sido pela manhã e, à tarde, ainda terem acontecido "problemas" com os ônibus que deveriam transportar os moradores dos abrigos para a Defensoria.

A situação dos moradores é desalentadora. Eles estão dormindo nas quadras de ginásios poliesportivos e a quantidade de crianças é enorme - tanto quanto a má vontade dos funcionários da Prefeitura, que estão preocupados apenas em dar a versão oficial do governo, dificultar doações (inclusive do Sindicato dos Metalúrgicos, que eles não perdem oportunidade de alfinetar) além de, ainda por cima, gerenciar os abrigos para desocupa-los a qualquer custo.

Diante de tanta torpeza, sequer é capaz de se sustentar mais um sofisma recorrente: de que os moradores deveriam pagar aluguel. Desde a desocupação violenta e arbitrária da área até agora, as imobiliárias e demais locatários, de forma organizada, trataram de procurar esconder placas de locação ou simplesmente criam dificuldades enormes para os moradores - exigindo certidão de débito negativa e fiador para desabrigados - ou simplesmente se negam a alugar imóveis para qualquer pessoa  que possa ter vindo do Pinheirinho. 

Nem precisaria de tanto: considerando os imóveis para alugar disponíveis e enquadráveis na faixa de renda dos desabrigados mais o aumento massivo da oferta - com seu caráter emergencial -, é evidente que os preços de aluguéis disparariam. Não existe possibilidade de solução privada e individual do caso. Políticas tapa-buraco como o "aluguel social" de Alckmin são uma piada pronta, uma vez que não há esforço do governo municipal ou estadual para que as pessoas efetivamente consigam alugar imóveis.

O fato é que existe uma política deliberada para expulsar, por ação ou omissão, os moradores do Pinheirinho de São José dos Campos, inclusive porque a decisão da Justiça Estadual é apenas liminar - por sinal, questionabilíssima como aponta com precisão o Dr. Jairo Salvador da Defensoria Pública Estadual. Nesse sentido, a destruição das casas pela Prefeitura torna a situação ainda mais escandalosa.

Isso tem consequências gravíssimas. No atual impasse, possivelmente, alguns moradores irão para casas de parentes com o pouco que têm ou, sobretudo, para as ruas num processo lento e doloroso. Uma política de deixar morrer para atender ao sistema imobiliário que, caso aplicado universalmente, resultará em uma ebulição social insustentável. Se isso se tornar padrão - e pode acontecer, não tenham dúvidas -, o que se seguirá? Extermínio de fato?

Porque os abrigos da população do Pinheirinho são versões improvisadas de campos de concentração com seus burocratas, sua comida estragada e seu abarrotamento. A sensação de profunda impotência que se instala ao ouvir as queixas dos desabrigados - as crianças com piolho, o calor do abrigo, a senhora que tomou três tiros de bala de borracha - produz uma sensação horrível.

A viagem aos abrigos do Pinheirinho ainda me é uma experiência difícil de descrever. O processo de animalização da população e seu confinamento em contraste com sua resistência - suas histórias, as crianças brincando, a produção de diferença - cria um cenário doloroso e alentador :  o poder, por mais tentáculos que tenha, não consegue capturar a vida. Mas ela está sob (franco) ataque.

P.S.: O Tsavkko publicou a ata provisória do Condepe sobre as violações sofridas pelos moradores do Pinheirinho
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sábado, 4 de fevereiro de 2012

Mapa da Violência Brasileira e a Doutrina da Segurança Pública

Caim e Abel: o histórico pregresso dos homicídios
A professora Raquel Rolnik divulgou recentemente em seu blog, um estudo bastante amplo e aprofundado sobre a violência homicida no Brasil - com enfoque nos últimos dez anos, mas com dados precisos dos últimos 30. Para além dos pertinentes apontamentos de Rolnik, e eu ainda não li todo o trabalho que é longo, de cara os dados já desconstroem boa parte daquilo que serve para alimentar a retórica que usa a "segurança pública" como superstição fundante de uma política policialesca - a exemplo do que era a "segurança nacional" nos tempos da Ditadura.


Para começar, sim o Brasil que termina a década passada é mais violento do que era há trinta anos atrás, mas essa violência nada tem a ver com a "democracia" como fazem parecer ser os conservadores. Por isso, é preciso lançar um olhar sobre os cortes políticos do período. O curioso gráfico da página 18 do pdf nos dá boas pistas: a escalada dos homicídios no Brasil já era uma realidade no governo Figueiredo, último do ciclo militar, viu a violência saltar de 1980 - um ano após assumir - de 11,7 para 15,7 por grupo de 100 mil habitantes/ano, um aumento de 34,18%. 


Findo o ciclo militar, primeiro presidente civil depois do golpe de 64 - embora ainda eleito indiretamente -  é Sarney, que larga o poder deixando uma taxa de 2o,3 homicídios por grupo de 100 mil - aumento de 29,29%. Os breves governos Collor e Itamar veem uma pequena queda e uma pequena subida respectivamente - 19,1 e 21,2 por cem mil nos finais de mandato -, até uma nova guinada com FHC: a taxa de homicídios termina em 28,5 em 2002, um aumento de 34,43%, um crescimento alarmante. Com Lula, a taxa de homicídios cai para 26,2 por cem mil/ano, uma pequena queda de 8,07%, a primeira em tempos.


Nesse sentido, ainda que a aceleração dos anos 80 e 90 chegue em uma estabilidade nos anos 00, a análise variação governo a governo nos dá mais luzes sobre a questão. E sim, mesmo que a responsabilidade sobre a segurança pública recaia principalmente sobre os estados - porque são eles que administram as polícias militar e civil, que lidam com o grosso da criminalidade -, as alterações governo a governo apontam que a segurança gira mais em torno nos cortes macroeconômicos do que nesse ou naquele plano de segurança.


Mesmo que se argumente, como faz Rolnik, que na estabilidade dos anos 00 o mapa da violência apenas mudou - queda da violência no sudeste, aumento no nordeste -, o fato é que é meio complicado em pensar a relação entre os estados apenas de forma externa, afinal, o vínculo produzido pelos movimentos migratórios lhes tornam dependentes de forma interna uns dos outros. E os (bons e maus) encontros produzidos pelos movimentos migratórios dentro do Brasil não são fruto do acaso, mas sim de políticas públicas que deslocaram grandes contingentes - e da própria resistência às condições de certas regiões, produzindo migrações espontâneas.


Vejamos, considerando  o período Collor/Itamar como unidade, ele também verifica crescimento na taxa de homicídios, de tal forma os dois últimos governos que ainda bancaram o velho desenvolvimentismo - Figueiredo e Sarney - assistem a fenômenos de aumento do desemprego, queda na renda salarial e o agravamento de problemas urbanos, o recrudescimento desse processo com Collor/Itamar e FHC, no desmonte privatista da herança varguista, persiste e se agrava - e sobre os anos 90 e 00, os gráficos de repartição funcional da renda são taxativos: a renda do trabalho perde importância ao longo daqueles dois governos e é recuperada durante o período Lula (gráfico da página 4 do link), sendo que essa variação favorável se materializa também nos gráficos da taxa de homicídio. 


Não falamos de correspondências econômicas diretas, mas no impacto de tendências econômicas - a falta de perspectiva de futuro, em cima da realidades de desemprego e queda na renda salarial; não é o crescimento econômico que determina a queda da violência, inclusive porque ele pode ser causado por ela, mas a maneira como se dá esse crescimento (ou falta dele) e como isso é sentido pela população. Ainda assim, o fato de que a recuperação da renda do trabalho não venha acompanhada de uma queda semelhante na taxa de homicídios, pois a cultura de violência deixada em certo período não se dissolve tão rápido quanto surge e depende de uma série de outras medidas.


Isso nos mostra de que mecanismos policiais não são o principal fator nos índices de homicídio - que, como todo incidência criminosa em termos sociais, depende de causas exteriores à lei e à autoridade em infração ela se materializa. Mudanças de estado a estado precisam ser ponderados no seu contexto nacional num jogo de perdas e ganhos: não há como pensar a queda da violência em São Paulo (oposicionista) e Rio (governista) sem pensar na diminuição da pobreza no Nordeste, o que arrefece o fluxo de imigrantes, tampouco o avanço econômico do Nordeste explica o aumento da violência em muitos dos seus estados, já que Pernambuco viu os seus caírem.


Portanto, a relação entre segurança pública efetiva e policialismo, principal discurso de Maluf e agora assumido por Alckmin em São Paulo, não se sustenta - e o faz escondendo mais armadilhas ideológicas do que parece, como na ocupação policial na Cracolândia, onde o que menos importa é o crack, mas sim toda a questão da especulação imobiliária no centro de São Paulo. 


Não é polícia sendo usada com fins outros e corruptos, mas que a própria polícia não é fator efetivo para conter a transgressão violenta da lei, o que depende de fatores que dizem respeito à produção [de vida], sua quantidade e seu modo - em relação à qual, aí sim, a polícia pode atuar como agente, resolvendo "no tranco" quanto, como e onde se produz. Do contrário não seria a Ditadura Militar, em sua agonia derradeira, a verificar esse aumento lamentável dos homicídios no nosso país.