domingo, 23 de agosto de 2020

Steve Bannon: o antagonista

 



Live de ontem que eu mediei no canal da Autonomia Literária sobre Steve Bannon: o estrategista e ideólogo de Trump.

sábado, 22 de agosto de 2020

Em Defesa do Livro! (Live da Rede Emancipa)


Ontem, em uma live em defesa do livro, contra o ataque Bolsonaro-Guediano ao mercado editorial, ao lado de Ivana Jinkings (editora Boitempo), Flávia Lago (Coletiva Virginia), Luana Alves (Rede Emancipa) e mediação de Dani Haj Mussi. 

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

A Encruzilhada Bielorrussa


(Foto: SERGEI GAPON / AFP)

O levante da Bielorrússia tem a ver com democracia e liberdade ou é apenas uma intervenção Ocidental? Isso não tem uma resposta simples, pois envolve questões internas e geopolíticas bastante dúbias e ambivalentes. Vamos a um fio grandinho (mas necessário)

Das antigas repúblicas soviéticas de maioria eslava, A Bielorrússia era uma das mais pobres nos tempos da URSS. Detalhe: quando falo isso, me refiro à Rússia, com toda sua diversidade, e à Ucrânia. Lituanos e letões são apenas primos distantes que são, contudo, vizinhos.

Quando acabou a URSS, a Bielorrússia assim como a Ucrânia e a Rússia voltaram a adotar símbolos nacionais antigos e a preparar reformas neoliberais. Os comunistas se levantaram em todos os três, mas na Bielorrússia surgiu um movimento nacional-populista forte pelo meio.

Em suma, Lukashenko ganhou as eleições de 1994 e reverteu muitas das reformas neoliberais e travou todas que vinham em curso, retomou a bandeira dos tempos soviéticos e manteve o Estado forte na economia, contradizendo Moscou e Kiev.

Lukashenko era o típico dirigente de cooperativa agrícola soviética: um tipo secundário em qualquer parte da URSS, jamais politizado, mas talvez justamente por isso popular: um homem médio soviético, mas muito esperto politicamente a ponto de criar um movimento.

O resultado é que, embora do ponto de vista econômico Minsk discordasse de Moscou, geopoliticamente ela inclusive se reaproximou do Kremlin -- ao contrário da Ucrânia, que seguia o mesmo modelo neoliberal, mas rifava a Rússia em prol de uma aproximação com o Ocidente.

Ao contrário de ex-repúblicas soviéticas que passaram a afirmar um nacionalismo antirrusso, que levou a desconsiderar os direitos das minorias russas em seus territórios, o governo de Lukashenko reconheceu a língua russa e o aspecto binacional do país.

Fontes ocidentais enxergam nisso uma "sujeição a Moscou", o que significa que eles esperam que um governo de Minsk deveria oprimir a minoria russa para ser "democrático".

O resultado do governo Lukashenko, 26 anos depois, é que o país cresceu proporcionalmente MUITO mais do que a Ucrânia e tem um IDH semelhante ao russo, mesmo sendo mais pobre do que a Rússia, embora junto tenha problemas da era soviética.

Para falar a verdade, a Bielorrússia tem, hoje, mais do que o dobro do PIB per capta da Ucrânia, mas para os analistas ocidentais, certamente foram os ucranianos que fizeram "tudo certo" nas reformas e na geopolítica. A desigualdade na Bielorrússia é ínfima.

A Bielorrússia, por sinal, é mais rica do que o Brasil e perde por pouco para Argentina e Uruguai. Tudo isso sem ter se quedado ao Ocidente, se desindustrializado, privatizado ou desnacionalizado suas empresas. A prova de que se pode funcionar de outra forma.

Isso é diferente da Rússia, mesmo sob Putin, onde ao contrário do que se pensa no país, a gestão da economia nunca deixou de ser neoliberal e austera -- ainda que autônoma nacionalmente.

Putin gosta de Lukashenko pela geopolítica alinhada, multilateral e não sujeita ao Ocidente, mas não gosta do fato de saber que, na medida das suas forças, Minsk adota uma linha bastante própria, vide seu modelo econômico.

Esse nacional-estatismo econômico cria problema, p.ex., para as empresas privadas russas adentrarem na Bielorrússia *na forma como elas gostariam* -- e, igualmente, faz de Minsk um agente autônomo para negociar com Pequim a Nova Rota da Seda.

Isso explica por que na última eleição Lukashenko deu declarações se diferenciando de Putin, que, imagino, se irritou. A Bielorrússia quer uma aliança com a Rússia, não ser englobada por Moscou novamente.

Lukashenko é um socialista? Evidentemente, não. Ele manteve coisas boas e ruins do modelo soviético e desenvolveu um mercado, criando um tipo híbrido entre o socialismo de mercado chinês e um capitalismo de Estado.

Igualmente, há restrições das liberdades e uma incapacidade do governo sequer imaginar uma hegemonia guiada para uma uma transformação radical. Lukashenko é o que os eleitores ingênuos de Bolsonaro pensam que "nosso" presidente é, mas que Jair nunca nem seria.

Lukashenko é isso, um líder comunitário, um paizão, fazendo às vezes de um líder nacional, incapaz de destruir os ganhos sociais soviéticos, mas igualmente incapaz de resolver o beco sem saída que, afinal, atravessou e colapsou a URSS.

Os bielorrussos o apoiaram todos esses anos, não por burrice, mas porque nunca caíram na cantilena de que seriam recebidos e desenvolvidos pela Europa, nem que reformas neoliberais iriam melhorar suas vidas, muito pelo contrário

Mas vejam, Lukashenko igualmente jamais criou um partido político organizado, sempre se cercando de uma miríade de políticos "independentes", todos unidos por um senso comum "nacional" e sob sua liderança.

O movimento contestatório atual na Bielorrússia, obviamente, conta com apoio de operativos externos (é a geopolítica!), mas igualmente existe uma certa fúria popular pelo desgaste do governo e, possivelmente, a maneira como Lukashenko está lidando com a pandemia.

Os gritos e as bandeiras lá não têm nada de revolucionário, apenas um nacionalismo fake e sujeito ao Ocidente. Lukashenko vai sofrer sim para se segurar e caso continue, dependerá mais do Kremlin do que gostaria.

A questão é que a Bielorrúsia é central para Pequim na estratégia da Nova Rota da Seda, e por isso o Ocidente quer um líder seu no poder lá, mas Putin tampouco quer um Lukashenko fortalecido para negociar diretamente com Xi.

O resultado disso será a queda de Lukashenko nas próximas semanas ou meses, *menos por falta de apoio e mais por falta de um partido organizado ainda que nacionalista*, ou sua manutenção com largas concessões a Moscou.


P.S.: Vou começar a postar essas coisas aqui, para não se perderem nas brumas do Face ou do Twitter. E trazer arquivos de outras mídias.

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Bolsonaro e o Discurso do Rei

Aroeira

Um homem só é rei porque os seus súditos se comportam perante ele como um rei -- Slavoj Zizek


A liderança de Bolsonaro causa choque e temor. Mas não só em seus antagonistas. Os seus próprios eleitores querem isso, sentem isso, pedem isso, mas no lado oposto, voto de protesto e fúria, sem razão e contra ela. Na segunda-feira, dia trinta de julho, ele, o líder nas pesquisas eleitorais nas quais não constam o nome de Lula, foi ao Roda Viva da TV Cultura repetindo uma série de barbaridades como de costume -- da defesa da ditadura e da tortura, passando pela negação do racismo, até chegar culpabilização da higiene das mulheres pela mortalidade infantil (!).

Desta vez, contudo, Bolsonaro falou com mais autoridade do que costume para uma bancada passiva, fria, pouco ágil -- a qual no máximo esboçava algum absurdismo. Muitos apontaram a fragilidade dos entrevistadores. No entanto, a bem da verdade, o Roda Viva que acossou Manuela D'Ávila, foi antipática com Boulos, morna com Ciro e doce com  Marina e, sobretudo, com Alckmin é aquela que, se utilizando de um discurso liberal, permitiu Bolsonaro falar à vontade. Todos os Roda Vivas com os (pré) candidatos constituem uma série coerente entre si.  

A série que buscava inquirir os presidenciáveis brasileiros era, na ideologia e nos discurso, um uníssono que vê a esquerda como ameaça, renega normalizando a extrema-direita e aponta a direita do establishment como solução -- e a introdução da extrema-direita no debate serve tanto para colocar o bode na sala para se amenizar a direita tradicional como, ainda, para capturar o sentimento de indignação e catalisa-lo para um ponto inofensivo ao sistema, bem longe da esquerda -- ou pior: de uma esquerda extra-partidária.

A esquerda liberal -- se é que se pode dizer isso --, perdida na defesa da "liberdade de expressão de Bolsonaro", e a direita liberal, disposta a tudo para neutralizar qualquer esquerda, inclusive naturalizar a fala de um candidato de extrema-direita, de certa maneira se unem numa mesma estratégia impotente, cuja ação, direta e colateralmente, nos conduz, aqui no Brasil como em boa parte do mundo, ao avanço e a volta de variadas formas de extremas-direitas.

O projeto liberal de direita que comanda o país, contudo, produziu a própria sobrevida de Bolsonaro: até a intervenção militar do Rio, a bolha de intenção de votos dele parecia ruir, indo para baixo dos 15%, mas depois dela, ele volta ao patamar dos 20%, ensaiando uma nova queda. Por sinal, a mesmíssima intervenção militar perante a qual Bolsonaro se diz contra, defendendo medidas de violência mais radicais, o que lhe faz se favorecer do clima de populismo punitivo sem se comprometer com os resultados da -- fracassada -- intervenção de Temer.

Bolsonaro que, por seu turno, é enfrentado por essa mesma esquerda liberal que lhe dá legitimidade de fala apenas no aspecto cultural e comportamental, o que em si é justamente o que o candidato quer. Ora, para além do fato se Bolsonaro deva ou não ser ouvido, não resta dúvidas de que seria absurdo alguém convidar o Maníaco do Parque para dar entrevistas na condição de patinador -- embora ele o  tenha sido de fato, mas a operação ideológica que ocorre com Bolsonaro, no entanto, impede que nós o vejamos dessa forma. 

Como então ouvir, e deixar falar, Bolsonaro defendendo crimes contra a humanidade explicitamente, em rede nacional, numa televisão pública e educativa?

Não, Bolsonaro não oferece nenhuma resposta estrutural a nenhum problema sério do Brasil, mas catalisa na forma de violência, e de violência contra os mais fracos, os pobres, oprimidos, a indignação contra o sistema -- mas a violência de Bolsonaro é inofensiva ao Poder, à oligarquia nacional. Bolsonaro é, portanto, o freio de mão do sistema, ele não é o establishment, mas é também manobrado por ele. Tudo isso causa um bojo de normalização da sua presença no debate público.

Tampouco é o discurso liberal, ou uma vertente de esquerda sua, que irá derrotar Bolsonaro. Nem o liberalismo de direita, que critica greves e insatisfações, nem um liberalismo de esquerda que não ofende as estruturas econômicas ou institucionais de como se exerce o poder, repetindo um politicamente correto inócuo. 

As chances do ex-capitão do exército vencer realmente ainda são distantes, mas sua presença no segundo turno vai se tornando uma possibilidade cada vez mais crível, uma vez que nem o discurso ou a prática do establishment têm a capacidade de neutralizá-lo -- sua impotência é mais um problema interno de sua organização, não mérito de seus adversários --- e do outro lado tem interesse em mantê-lo no páreo, devido suas disputas interiores.

Sobre o último ponto, Bolsonaro é o bode na sala que normaliza Alckimin e, ao mesmo tempo, capta uma indignação que organizada seria revolucionária. Do outro, Bolsonaro é alguém que fustiga e a priori tira votos de Alckmin. Nesse jogo entre a direita e à esquerda do sistema, Bolsonaro é uma bomba prestes a explodir e que os concorrentes ficam jogando um para o outro, como num desenho animado -- e pode ser que exploda ambos.

Enfim, Bolsonaro é uma peça fraca no jogo, justamente por isso está onde está, mas as forças que o alavancam não são ocasionais. Assim, os riscos dessa tremenda, e subestimada, armadilha em que estamos caindo são enormes.

domingo, 22 de julho de 2018

O Que diabos é o Centrão?

O Abacaxi -- Margareth Mee

Centrão. É a expressão do momento às portas das eleições mais polêmicas da nossa -- breve, ainda existente? -- histórica democrática. O termo consiste no bloco de partidos que, a rigor, está servindo de fiel da balança nas eleições presidenciais vindouras. Mas será que o bloco é mesmo uma novidade? Olhando bem, ele coincide em grande parte com o bloco de nanicos que  serviu de base de sustentação de Lula -- com exceção ao DEM, à época, o mais radical de oposição. Não à toa, o grupo se reuniu para escolher um "vice", e não um candidato à presidente: e o vice é Josué Alencar, filho de José Alencar, o vice de Lula. É claro, há que se ponderar a diferença entre apoio parlamentar oportunista e a defesa da ruptura de direitos e sistemas de proteção social -- mas isso diz mais sobre o Centrão do que sobre Lula ou Temer.

Lembremos da década de 2000, lá estava Valdemar da Costa Neto, condenado no mensalão, cá está Valdemar da Costa Neto articulador das presidenciais de 2018. O que ocorre é que O Centrão se consolida como o que ele é hoje durante Dilma II, participando ativamente ao lado de PMDB e PSDB das articulações que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff com a adesão do DEM, se tornou um grupo à parte e comandou a Câmara com Rodrigo Maia, mas com a leniência de quase todos os partidos de esquerda.

Outra lenda urbana é apontar o Centrão como um bloco parlamentar criado por Eduardo Cunha (PMDB-RJ), com o intuito de puxar o impeachment de Dilma e/ou iniciar as reformas de ruptura do Estado social a partir do Congresso: embora ele tenha se usado do mesmo bloco para seu governo de facto, Cunha cooptou o Centrão, não o criou -- no máximo a tônica das reformas que ele foi eleito pra imprimir ajudaram a aproximar o Centrão do DEM.

No fim das contas, lembremos que Rodrigo Maia derrota Rogério Rosso, o "candidato de Cunha", quando Dilma já estava com a sorte (ou falta dela) definida e, por conseguinte, Cunha não era mais necessário e já estava preso.

Desde então, o Centrão é um entidade que tem dado sustentação a Temer, bloqueado pedidos de impeachment e, até, impedido pedidos de investigação por crime comum envolvendo o presidente -- embora não sem resmungos e sobressaltos. O Centrão não é o arranjo de governo Temer, mas ele é seu importantíssimo motor auxiliar -- como já foi nos anos 2000 com Lula, mas não era nos anos 1990, em virtude da alta fragmentação partidária verificada, sobretudo, a partir das eleições de 2002, o que só continuar a piorar.

Assim o Centrão, para além de ser o sindicato dos políticos, reúne as figuras político-econômicas do capital nacional -- não confundam com nacionalista -- com os Alencar ou os Steinbruch, os quais estavam lá com Lula, com Dilma, mas que viraram de lado e puxaram o impeachment. Elas são, digamos, proprietários de grupos empresariais familiares não ligados (organicamente) ao mercado financeiro nem multinacionais. 

Os setores de onde vêm os empresários-políticos são, todos, bastante sensíveis a variáveis econômicas como câmbio, juros ou grandes acordos multinacionais -- a siderurgia, ramo ao qual se dedica a Família Steinbruch, por exemplo, foi acertada em cheio pelas medidas do governo Trump de aumentar os tributos sobre o aço importado.

O Centrão, antes que eu me esqueça, também representa os interesses corporativos sindicais, o que não se estende apenas à Força Sindical de Paulinho (do Solidariedade), mas no momento é tocada por ele -- muitas vezes não apenas em seu nome, de seu partido ou de sua central sindical.  Enfim, o Centrão é um grande sindicato que reúne o interesse corporativo-burocrático do capital nacional, dos sindicatos e dos políticos em si considerados -- não apenas os políticos profissionais e fisiológicos, que não têm ligação real com a sociedade e vivem da política, mas de todos os políticos no que diz respeito a seus interesses corporativos.

Agora, o grupo se deu um nome, se assumiu publicamente e foi ao ataque em eleições particularmente tensas, sobretudo depois do colapso econômico causado pela política de Pedro Parente, sob as bençãos de Temer, para os preços da Petrobrás -- mas certamente ouviremos que a culpa pelo que estamos passando é da "greve dos caminhoneiros". Sim, a novidade é essa. Do grupo ter saído dos bastidores para não só ir ao palco como pretender algum protagonismo.

Nada mais emblemático, da Lava Jato ao Impeachment, boa parte da ruptura dos acordos que mantinha a conciliação de classes gerida pelo Lulismo passava pela imposição de mudanças na Petrobrás. Dilma se negou a fazê-lo, Dilma caiu, Temer ascendeu, Temer o fez e agora estamos a registrar uma considerável queda do PIB -- Dilma errou muito, errou horrores, errou rude, mas esse erro ela não cometeu.

Por sinal, e este é um detalhe importante, é que a qualificação do grupo como "centrão", criticada em grande medida, não é errada: o grupo, em seus zigue-zagues pela política brasileira do século 21 reedita como farsa trágica a tragédia farsesca dos primórdios da política contemporânea; é na Revolução Francesa que se verá, pela primeira vez, a divisão da política em termos direcionais, direta, esquerda e centro, sendo o centro -- ou o pântano ou planície -- como o grupo mais numeroso e, ao mesmo tempo, mais fisiológico do Legislativo, disposto a defender interesses puros, antes de qualquer plano de ideias ou valores.

Nesse cenário, a decisão do Centrão por Alckmin é um manifesto pela continuidade do que Temer fez, ainda que de forma envergonhada e escamoteada. Porque Temer nunca pretendeu exatamente se perpetuar, ou perpetuar o PMDB, na cabeça da chapa presidencial. Se ele removeu Dilma como removeu, isso o foi por conta do apoio público do PSDB -- e a ideia pressuposta era a de Temer passando a faixa para o PSDB, primeiro para Aécio, o qual teve o sonho presidencial alijado por graves denúncias, e agora para Alckmin.

Ainda que se discuta a natureza do impeachment de Dilma, oficialmente um procedimento comum, para outros um golpe, não é possível negar que foi um procedimento normal: sequer o Senado cassou os direitos políticos da Presidente deposta -- pior ainda, o próprio procedimento foi iniciado por Cunha quando o então governo se negou a travar o processo de investigação contra ele na Câmara.

E o que se seguiu foi um aprofundamento da concessão neoliberal de Dilma II, quando ela ressuscitou Joaquim Levy, passando de Temer em diante a haver uma ruptura com o sentido de democracia social da Constituição de 1988, ou até paradigmas anteriores e mais caros, como a proteção trabalhista. O Centrão, aliado oportunista do primeiro e único governo com tons progressistas, se tornou cúmplice da remoção do mesmo, sob forma duvidosa e com propósitos mais assombrosos ainda.

Alckmin apesar da falta de votos e a defesa de um modelo de gestão em crise, e nada diferente do que Temer executa, conseguiu o apoio do grupo, quando o Centrão cogitou apoiou Ciro Gomes, talvez sob a comoção de maio e de como a greve dos caminhoneiros assustou o pilar empresarial do bloco. Essa escolha não foi, contudo, ocasional.

Ciro tentou negociar com o Centrão, mas recebeu a rejeição como resposta, seja porque, pela esquerda, o PT buscou impedir que seus velhos aliados, como PC do B e PSB, não fechassem com o candidato pedetista para lhe dar a imagem de viável, seja porque, pela direita, Temer ameaçou o Centrão, gastando boa parte do interregno da Copa do Mundo para forçar a manutenção do bloco no governo, mediante ameaças.

Se isso vai se mostrar vantajoso para o Centrão, não saberemos, mas não há nada que a atual agenda econômica faça que possa ajudar a indústria têxtil ou a siderurgia nacional. Alguns interesses, sindicais corporativos que veem no pacote podem nem ser atendidos -- como a volta do imposto sindical, a promessa que Alckmin fez para Paulinho da Força Sindical, num aceno para todas as centrais sindicais, o que já causou um abalo na recém-costurada aliança.

Assim, membros do Centrão que simpatizavam com a agenda de Ciro talvez tenham ido para Alckmin, porque temiam que Ciro não fosse viável pelo efeitos do espectro de Lula, e da ação do PT -- como dito pelo guru do DEM, de maneira mezzo real, mezzo dissuasória, de que qualquer candidato apoiado por Lula conseguiria ir ao segundo turno. 

A decisão do Centrão tem um efeito duplo, a de fortalecer Alckmin à direita do centro e a de enfraquecer, ou de conceder um apoio central, para Ciro na disputa à esquerda do centro. Ela não enfraquece Ciro em detrimento de Alckmin, mas enfraquece Ciro em relação ao candidato que o PT vier a apresentar, ou mesmo Marina, e fortalece Alckmin face a Bolsonaro.

E Bolsonaro lidera nas pesquisas sem Lula por uma simples razão: performaticamente, ele encarna o sincero desejo antissistema de pelo menos uma parte da população, ainda que numa versão de ódio -- mas Bolsonaro é um golem criado pelo PSDB, quando este não tinha lá muitos argumentos para neutralizar o Lulismo, só não esperava ver o experimento sair de controle e do seu comando.

Pelas bandas das esquerdas, uma reunião já no primeiro turno seria necessária para evitar um segundo turno entre a extrema-direita e Marina. Lembrando que Marina, a rigor, disputa voto com todos os demais candidatos que, ao contrário dela, consideram como golpe a ruptura pela qual estamos passando -- sobretudo entre o eleitorado mais pobre, que pode deseja votar em Lula.

A aposta do PT, em manter o nome de Lula como candidato até o último instante, é o tipo da coisa que ou pode dar muito certo, ou pode dar muito errado. A julgar pela postura do judiciário, sua candidatura em si está praticamente barrada. Assim como dificilmente vão lhe permitir apoiar alguém, de qualquer forma, mas o PT poderá apresentar candidato. Como seu eleitor vai se comportar diante disso é a pergunta mais valiosa da eleição.

Se a estratégia der certo, teríamos um nome petista no segundo turno. Se der errado, podemos ter as demais candidaturas progressistas derrotadas em primeiro turno -- e, ironicamente, quem é a mais distante de Lula, isto é, Marina Silva nadará de braçadas para o segundo turno contra Alckmin ou Bolsonaro. O custo do erro, convenhamos, seria maior do que os ganhos do acerto.

Aí chegamos na disputa à direita. Alckmin, cuja candidatura, em virtude da baixa adesão de apoios e votos, quase foi retirada, acabou fortalecido no tempo de TV e na captação de recursos, mas sua briga, neste momento, é contra Bolsonaro: ambos disputam a mesma base eleitoral. Se o maior tempo de televisão do tucano vai ser suficiente, não sabemos. Bolsonaro é um titã nas redes, muitas vezes movido por militância espontânea e um exército de robôs.

Levando em consideração que Alckmin e Bolsonaro disputam um eleitor do sul e sudeste, branco e de classe média, é possível que o fator televisão pese menos nesse cômputo. A correlação de forças entre internet e televisão no Brasil atual contará, sobretudo, para a disputa interior à direita -- cujo eleitorado desde 2006 está situado nas classes menos pobres e que, portanto, tem mais acesso à internet que a média da sociedade brasileira. 

Tanto o peso da transferência dos votos de Lula quanto o peso atual da influência da internet contam bastante, sendo variáveis importantes e enigmáticas, mas o primeiro fator pesa mais para a esquerda e o segundo para a direita.

O fator de novos abalos sociais, e de movimentos subterrâneos está colocado, mas como não há uma organização capaz ou disposta de realmente organizar a indignação popular contra Temer -- que é fato social, mas não é fato político -- é difícil que isso chegue às urnas, salvo como aumento na abstenção -- o mesmo não se pode dizer quanto à governabilidade do governo eleito -- é por isso que o Centrão acaba ficando maior do que realmente é.

No que realmente interessa, a maior parte dos candidatos, com um tom mais ou menos à direita, se volta para a manutenção de uma política social restritiva, manutenção do establishment político, a conservação da política econômica neoliberal e uma posição subalterna do Brasil nas relações internacionais. 

Estaríamos entre o impasse da manutenção do quadro de Temer ou um governo que proporia, em algum grau, mudanças que enfrentariam uma reação intensa -- salvo um milagre nas eleições legislativas. A desunião das esquerdas não ajuda nada, embora ela tenha ideias e caminhos. A direita tampouco tem um plano de funcionalidade -- não há uma Thatcher, isto é, alguém capaz de criar um funcionalidade econômica ainda que socialmente injusta.

O fantástico fracasso de Temer e sua política econômica -- sobretudo em tentar reorganizar o Trabalho nos mesmos termos dos anos 1990 -- pode produzir resultados dramáticos já nessas eleições, mas se tudo for mantido, o pior virá em 2019, sobretudo com as incertezas grandiosas, assombrosas e apocalípticas no plano internacional. Se vamos conseguir ou não cruzar o Cabo da Boa Esperança, isso fica para os futurólogos, mas a missão será essa.


domingo, 15 de julho de 2018

O Adeus da Copa da Rússia e a França campeã

A. Namenov (AFP_
O término de Copas do Mundo nos fazem refletir sobre o tempo. É como se esses ciclos de quatro anos ativassem nossa memória afetiva -- ela sempre o é, mas eu digo a memória dos afetos mesmos, uma certa ternura que fica em cada momento. Onde estávamos há quatro anos ou oito anos, há doze? Que fazíamos? Como estávamos como indivíduos como estava o país? 

Muito se passou, a idade começa a chegar, uma certa nostalgia de outros tempos irremediavelmente bate, sobretudo nesse nosso momento atual -- no qual mais do que presente, nos falta futuro.

A Copa da Rússia, disputada em um momento terrível do Brasil e do Mundo, não deixa de ter sua importância simbólica: de um povo tão marcado pelas guerras, pelas agressões estrangeiras, por mais de cem anos de cerco das mesmíssimas potências e potestades ocidentais. 

Para muito além do "grande evento", seus problemas e aporias, havia algo de um esforço russo em se mostra uma nação como qualquer uma outra, para além de uma demonização internacional, tanto premeditada como profissional -- a ponto de um comentário como este ser considerado "russófilo", quando o que ele pede é que russos e seus líderes, e seu povo, deveriam ser julgados, absolvidos ou condenados, com a mesma medida que americanos ou europeus são ou deveriam sê-lo.

Tão previsível quanto dolorosa, a derrota brasileira ilustra o espírito do tempo nacional: entre a ansiedade crônica e uma certa presunção (que no fundo é uma resposta defensiva e infantil), somos um país que ou negamos nossas tradições ou as afirmamos como estereótipo de brasilidade da farsa global. O Neymarismo como vítima de si mesmo e, portanto, seu próprio algoz. Um país bipolar e não tratado: sempre da mania à depressão.

Ganharam os franceses, multirraciais e multicoloridos, que mantém a tônica gaulesa desde os anos 1980: boas gerações, com hiatos generosos e reaparições gloriosas; da França de Platini para a França de Zidane ao bi mundial com Mbappé e Pogba. 

E que não se diga a França dos imigrantes e refugiados, que o aparado pós-colonizador arregimentou e colocou para levar o país às glórias futebolísticas: ao contrário, o futebol como instância de representação nacional sempre tratou, não só na França como na Europa, de excluir árabes e negros e se abriu pela força deles. 

Na França, onde Platini, um franco-italiano, era lido como um branco e, portanto, um nacional Zidane o era menos e Mbappé uma verdadeiro escândalo, por não ser apenas  não branco como fruto da miscigenação entre imigrantes árabes e negros.

Nessa França, a polaridade racial é tão brutal que a inclusão à brasileira, cordial e malandramente opressora, nem é possível: lá ou seria inclusão à força pela luta ou seria exclusão pura e simples -- e inclusão contra um imaginário que inclusive cogitou instaurar cotas para limitar o acesso de crianças negras e árabes (sim, isso aconteceu mesmo, não é suposição) ao futebol e, por conseguinte, tornar o futebol francês "mais branco".

E que não se chamem os croatas puramente de "nazistas", embora a extrema-direita diga muito sobre como o país hoje, muitos jogadores de sua seleção e ao trágico desmonte da Iugoslávia, no qual a Croácia sob o comando de forças ocidentais ajudou a detonar um conflito horrendo -- que vitimou, a bem da verdade, mais bósnios e sérvios.

A Croácia, em si, seria nazista? Não, mas muitos jogadores seus simpatizam. E sua vitória era parte de uma estratégia de propaganda nacionalista de direita. Ao contrário da França, em que pese  o paradoxo de ser a nação das luzes e, ao mesmo tempo, um país colonialista indômito -- que conserva sua violência via cosmopolitismo neoliberal --, mas não tem no seu time nacional, a sua maior expressão -- embora Macron, esperto como o diabo de Bergman saiba bem jogar com isso.

Na bola e no campo, onde as coisas se decidem, um vareio de bola da França sob o comando de Griezmann, francês de origem luso-alemã, e com toques de talento do menino-prodígio Mbappé e do espetacular Pogba -- o que permitiu até erro crasso do bom goleiro Lloris.

Fica a memória. Onde estaremos daqui a quatro anos, como fãs de futebol e brasileiros, é a grande incógnita.






domingo, 25 de março de 2018

Putin, Mais uma Vez


Vladmir Putin foi reeleito presidente da Russia. Com 76% das preferêcias, um total de 56 milhões de votos, ele bateu o recorde tanto proporcional quanto em números absolutos de votos. Um fenômeno, em tempos de crises políticas pelo globo e, sobretudo, crise na representação, nos partidos clássicos e no establishment político, mesmo de países europeus desenvolvidos e dos EUA. Repetindo a lição do polidor de lentes luso-holandês, antes de chorar ou rir, é preciso compreender um fenômeno -- ainda mais um tão complexo como do Putinismo, que está no poder há dezenove anos em um país gigantesco como a Rússia.

Frequentemente apresentado como um líder de direita conservadora, um tirano, ou coisa que o valha, Putin, evidentemente, se vale no plano interno da manutenção do cerco à Rússia -- uma tragédia contígua que já dura cem anos --, da russofobia deslavada -- sobretudo de alguns anos para cá --, mas igualmente apresenta resultados relevantes para uma nação que enfrentou um dificílimo fim de século 20º.

Em tempos de neoliberalismo e capitalismo financeiro, as noções de modernidade parecem derrogadas, a História chegou ao Fim e Deus morreu para se tornar o Mercado -- não apenas "dinheiro" como diria Agamben --; líderes mundiais, inclusive à esquerda, parecem entregar seus governos à Divina Providência do Mercado Global. Mas Putin não.

O Putinismo resiste por fazer uma objeção de fundamento do discurso de seus rivais e, sejam os liberais ocidentalistas no interior da Rússia ou as potências ocidentais, e, também, por apresentar resultados tanto na econômica quanto no aproveitamento social disso. Sim, a vida na Rússia é hoje melhor do que em 1999, quando Putin era o número dois do país, então governado por Yeltsin.

Para além da propaganda ideológica, o fato é que a Rússia era um país feudal e estagnado antes da Primeira Guerra, que de tão trágica para o país serviu para abrir caminho para uma Revolução. O impacto dos anos 1920 na Rússia, com o nascimento da União Soviética, representou um desenvolvimento ímpar no país; primeiramente de forma libertária, depois, com uma retomada do autoritarismo de Estado tradicional do país.

Fato é que os russos, às expensas de muito sofrimento, conseguiram, em décadas, dar saltos que os europeus ocidentais levaram séculos. E resistiram e venceram a invasão nazista, que deixou dezenas de milhões de mortos, algo impensável mesmo para um país violentíssimo como o Brasil. A União Soviética sobreviveu à guerra, embora às custas de perder quase uma geração inteira. E se reconstruiu e modernizou.

O misto da burocratização deflagrada já nos 1920, somado com a perda do movimento revolucionário, fecharam as portas para o desenvolvimento do país. Dos anos 1960 para os 1980, a União Soviética está estagnada, o jovem Putin, um oficial da KGB de família vermelha, embora fortemente influenciado pela intelectualidade branca, e antissoviética da Universidade de Leningrado, era um dos defensores da grande mudança no país.

Com a decadência do projeto voluntarista de reforma conduzido por Mikhail Gorbatchiov, Yeltsin, que havia assumido o poder na Rússia, é peça central para o desmantelamento da União Soviética. A reconstrução do capitalismo, por bases absolutamente neoliberais, tornam a Rússia dos anos 1920 em um assustador laboratório humano a exemplo do Chile dos anos 1970.

O mundo se lembrará de Yeltsin, contudo, como um senhor bonachão, cujo alcoolismo apenas ajudaria a ampliar o seu carisma. Mas isso tinha muito mais a ver com a aliança de Yeltsin com o Ocidente do que com qualquer traço democrático seu; o mundo se lembra do golpe de 1993 como a "crise constitucional" russa e assim por diante.

O jovem Putin, já ali uma estrela ascendente da política, estava convencido de que as forças anticomunistas na Rússia tinham razão, mas que não deveriam ter permitido a fragmentação do país. Nem que seria possível manter as coisas naquele patamar, com o Estado russo sendo loteado.

Velhos burocratas soviéticos se tornaram proprietários donos das velhas empresas soviéticas, quase todos por métodos absolutamente ilegais de privatização. Esses oligarcas queriam o que qualquer elite periférica deseja, ser aceita como parte da elite global, frequentar os mesmos clubes, esquiar junto. 

Mas o que esses oligarcas não contavam é que, ao não abrirem plenamente a Rússia para o capital global, eles teriam o seu ingresso no clube dos ricos postergado, não importando quantos bilhões pudessem ganhar.

E, enquanto isso, a sociedade russa agonizava com a estagnação dos anos 1960-80 se tornando depressão, queda nos rendimentos e na qualidade de vida. Eis que a ampla coalização que governava a Rússia com Yeltsin se realinha, Putin é alçado a primeiro-ministro, mostra competência e é, praticamente, imposto como sucessor.

O plano Putin era simplesmente retirar da vida política russa os oligarcas mais selvagens, enquadrar os que ficassem, fortalecer as forças armadas e o Estado e, por outro lado, impor uma política social e econômica que permitisse, ao menos em parte, que a população em geral deveria usufruiu dos ganhos econômicos.

O estamento que colocou Putin no poder, o Rússia Unida, era um "partido" que só poderia existir em um país pós-socialista, era tanto mais um ajuntamento de militares, ex-membros da inteligência e, também de diplomatas que nem desejavam a volta do "comunismo", mas tampouco lhes interessava a hegemonia dos neoliberais radicais.

Os oligarcas recém-enriquecidos precisavam do Estado. E Putin sempre gostou de se ver como um ser Hobbesiano, pronto a colocar fim no estado de natureza dos primeiros anos do capitalismo.

Eleito com pouco mais de 50% em 2000, Putin ganha com 71% em 2004, mas não lhe é permitido uma nova recondução. Medvedev, seu imediato, concorre e ganha, representando uma figura mais liberal no arranjo do Rússia Unida. Se havia alguma expectativa de que Putin sairia de cena, isso caiu por terra com os efeitos da crise de 2008-09 e o uso da Geórgia pelo Ocidente, com fins de desestabilizar o Cáucaso.

As controversas eleições de 2011 foram o maior teste ao Putinismo. Mas as manifestações massivas, causadas por suspeitas de fraude que teriam ajudado o Rússia Unida, servem para que Putin seja candidato presidencial novamente, inclusive mais fortalecido.

Mas Putin só vence 2012 com 63%. O que se instala a partir dali é uma verdadeira blitz, na qual Obama muda de posição e passa a investir duramente contra a Rússia, com os EUA tomando posição contra a Rússia fosse na Ucrânia ou na Síria, a aplicação de sanções, a desvalorização do preço do petróleo e tanto mais.

A Rússia iria tomar um xeque-mate, mas não tomou. Putin nem entregou a Crimeia nem permitiu a remoção do regime sírio, seu aliado, contra quem os governos ocidentais não hesitaram de achar, inclusive, uma solução "afegã" -- o emprego de fundamentalistas islâmicos crúeis e altamente violentos.

Com as forças armadas em suas mãos, com a nomeação de seu aliado Sergei Shoigu para a defesa, a Rússia mostrou destreza e uma eficiência impensável na Síria.  A propaganda antirrusa criou uma coesão interna em relação a Putin impensável. O presidente se torna uma unanimidade.

De outro lado, a política conservadora em matéria comportamental causa controvérsias dentro e fora da Rússia; de um lado, o presidente espera agradar à maioria silenciosa do país. Do outro, cria desavenças e é duramente criticado.

Putin, de todo modo, é um ser estranho, exótico, que se movimenta com desenvoltura pela polaridade do nosso tempo, para além do que se pode chamar de populismo de direita e populismo de esquerda, sem deixar de ser uma espécie populista, ou ser um pós-populista.

Operando no limiar entre o que seria o establishment, de direita ou de esquerda, e do neopopulismo, igualmente de direita ou de esquerda, Putin consegue responder menos do que os velhos enxadristas da direção soviética ou os jogadores de pôquer americanos; é na política como na vida um judoca, pronto a aplicar golpes usando contra seus adversários sua própria força.

Na verdade, Putin preside um grande partido-ônibus nacional, com as características mui peculiares de um país que passou por uma experiência socialistas, sendo um grande enigma para as forças políticas do século 20º e suas estratégias em frangalhos. Como também o é para as novas forças políticas, que tentam reinventar um sentido para o político no século 21º.

Putin está além do arranjo político que preside e comanda, isso faz parte de jogo, mas lança sombras sobre o que será da Rússia sem ele. O avanço da melhora da vida na Rússia mantém essa legitimidade, um certo equilíbrio entre as classes, nos quais a oligarquia se comporta minimamente e participa do jogo nacional, o qual gera dividendo para o resto da sociedade. O grande pacto que ruiu no Brasil não ruiu na Rússia.

No ano 2000, quando Putin entrou na presidência, a Rússia estava no mesmo patamar do Brasil em matéria de desenvolvimento humano, mas hoje está trinta posições à frente do nosso país. Se a melhora da renda foi o destaque dos anos 2000, a manutenção da boa educação e melhora da saúde são os destaques da Rússia dos sofridos anos 2010.

Simplesmente exclamar, histericamente, sobre o autoritarismo de Putin, certamente muito menos autoritário do que Yeltsin, é um erro. Desvendar o enigma político, não de Putin, mas do seu Putinismo, é essencial: decodifica-lo e readequa-lo é tarefa essencial e urgente. 







quinta-feira, 15 de março de 2018

A Execução de Marielle: Os Idos de Março e o Brasil




Cena II, Ato I de Julio Cesar de William Shakespeare

Este artigo estava sendo gestado durante o Carnaval, à espera das movimentações eleitorais, mas ele acabou postergado, tantas e tantas vezes diante dos fatos que se atropelavam: o último, a execução fria, brutal e abjeta da vereadora carioca pelo PSOL Marielle Franco -- mulher, negra, favelada e defensora dos direitos humanos -- em pleno centro do Rio, contudo, me obriga a reedita-lo mais uma vez e, finalmente, a publica-lo.  Foram quatro tiros na cabeça, além dos tiros que alvejaram e também mataram o motorista.

Se até o Carnaval o que se esperava era o andamento da funesta reforma previdenciária e a resposta de Luciano Huck se iria aceitar sua indicação como candidato presidencial do "centro" -- o nome que a direita liberal traducional se deu --, o fato é que as coisas se aceleram mais uma vez, dessa vez em uma velocidade e sentido perigosíssimos. 

Sem votos para aprovar a reforma da previdência, Temer, de maneira autocrática e inconstitucional, decidiu por uma intervenção federal no Rio, o que impediria a própria reforma -- uma vez que emendas à Constituição são proibidas durante a vigência de intervenções -- embora tivesse causas obscuras.

A intervenção, comandada pelas forças armadas e sem implicar na remoção do governador, feita sem consultar os conselhos da República e de Defesa, já anunciada de pronto é mais do que uma jabuticaba constitucional, mas sim uma medida de exceção legítima: estado de sítio não declarado e disfarçado na embalagem de uma mera intervenção federal, a medida nem foi a sonhada e necessária intervenção para corrigir o grave estado de coisas no Rio, e ainda atua de maneira mascarada como a reintrodução do elemento militar na vida política nacional para fazer o que não lhe compete.

Sim, passamos 21 anos de ditadura militar, e isso foi recentíssimo, no qual não apenas violações aos direitos humanos aconteceram, como a desigualidade social ainda por cima piorou enquanto as forças armadas funcionaram como um partido político único, se confundindo com a burocracia de Estado. Que não se venha dizer que vivíamos tempos mais tranquilos, pois foi justamente no regime militar que as grandes cidades foram desorganizadas, junto com a já precária estrutura socioeconômica nacional, gerando o terreno propício para a escalada de violência que se viu depois.

Voltemos a Marielle: negra, mulher, favelada. Um tipo de pessoa que, a duras penas, só poderia ter ascendido ao parlamento da segunda maior cidade do país durante a nossa tentativa democrática. A mesma experiência que Temer está disposto a cessar pela caneta e pelas armas. A violência que vitimou Marielle é semelhante àquela que ele cansou de denunciou na comunidade de onde veio, a mesma que assola os rincões do país, no campo e nas florestas, mas que não chegava como violência política nos grandes centros. 

Essa violência ter chegado aos grandes centros, contra representantes políticos eleitos e com atuação oposta a tais violações, significa que ninguém está a salvo, que não só os desamparados estão na mira como seus defensores são, igualmente, matáveis. Algo parecido aconteceu na Ditadura Militar quando o deputado Rubens Paiva, opositor do regime, foi morto em 1971, sete anos depois do golpe e três depois de seu endurecimento, em um movimento de calar qualquer dissidência institucional. 

Até agora, o processo ilegítimo de impeachment, bem como o (ab)uso dos tribunais como forma de tirar políticos indesejáveis do jogo parecia ser o máximo a que chegávamos, embora grampos ilegais e a participação da polícia federal no jogo, bem como a violência policial contra manifestações populares, já insinuassem o pior. Pois bem, cruzamos essa linha e, possivelmente, cruzamos o Rubicão -- como se diz do célebre episódio no qual Julio Cesar atravessou o referido rio italiano com trajes militares, algo proibido em respeito à natureza civil da república romana, para dar um golpe de Estado.

A referência a César tamanha ganha uma outra dimensão, na farsa da maldição de Março: como demonstra a célebre frase do Advinho na clássica peça de Shakespeare, é sempre precisar se acautelar com os Idos de Março, uma frase que vale a pena ser lembrada no Brasil, um lugar onde muita coisa ruim se gesta neste mês -- talvez porque a oligarquia tenha um particular gosto de maquinar entre o final do ano e durante o Carnaval. Vide o golpe militar, concluído em 1º de abril de 1964, mas maquinado ativamente durante todo o mês de março de 1964.

Sim, poderia ser um giro populista de Temer, mas isso parece improvável. Alguns dirão que Temer buscou uma desculpa para não levar a cabo a natimorta reforma da previdência, outros dirão que pode ter sido uma busca desesperada por popularidade, alguns defenderão que se trata de ambos. No entanto, isso é mais complexo: o que fez Temer ter medo, com o perdão do cacófato, nunca foi impopularidade, mas que a impopularidade pudesse ser mais do que um fato social, um fato político, o que nunca ocorreu por diversos fatores, inclusive por culpa da esquerda e sua estratégia eleitoral.

Os movimentos de Temer miram a governabilidade, e sua sobrevivência política e pessoal, não a legitimidade. A indignação social não lhe interessa, preocupa ou comove: se isso não tiver efeitos políticos é inofensivo. E por um jogo institucional, Temer tem conseguido manipular suas peças, enquanto as ruas estavam indecisas e dispersas. Pelo menos até hoje, quando largas manifestações tomaram o país em memória e homenagem a Marielle, sobretudo em São Paulo, onde isso se junto a uma massiva manifestação de professores e servidores municipais -- os quais foram duramente reprimidos ontem, quando da votação da pífia reforma previdenciária municipal.

As massas, por outro lado, não vão perdoar Temer ou o (P)MDB por conta dessa medida, talvez se choque que a militarização da segurança não produza tantos efeitos assim -- o México e a Colômbia são bons um exemplo disso, e é um fracasso --, mas seu desejo se explica: o Rio era mesmo o caso de uma intervenção federal, só que civil, democrática, com o afastamento do governador e a aplicação de um profundo plano de resgate financeiro e social, com a regularização do pagamento dos funcionários público e normalização do serviço público. Na falta de nenhuma intervenção, que a esquerda não concebeu ou faria, veio alguma intervenção, e entre nada e alguma coisa, a população embarcou.

Falando em México e Colômbia, por sinal, são modelos que a oligarquia brasileira deseja para o país: economicamente austeras, politicamente autoritárias e possuidoras de uma estranha relação entre crime organizado e Estado, basicamente quase toda dissidência política ou social é dizimada enquanto um jogo e contentes entre as frações da elite disputa o poder -- na Colômbia, o candidato de esquerda com chances de vencer quase foi executado num atentado, no México, a esquerda periga ganhar, embora uma série de crimes bárbaros continue a acontecer sob o comando de cartéis de tráfico como, por exemplo, o caso de 43 estudantes ativistas "desaparecidos", há pouco mais de três anos, em uma ação de cartéis junto com oligarquias políticas.

No Brasil, a fé que o processo eleitoral vá funcionar, contudo, ainda está em alta. Na melhor das hipóteses podemos estar no meio dos anos 1950, quando o JK ganhou e o Marechal Lott conseguiu garantir sua posse. Mas pode ser que não. A Nova República, apesar de sua mediocridade econômica, conseguiu fazer do Brasil um país mais estável do que a média das nações no mesmo patamar, agora aquele pacto parece que realmente acabou. A falta de estratégia entre os setores democráticos pode levar a um colapso, que vem em ondas, aos poucos.

Marielle, talvez não ironicamente relatora da Comissão Parlamentar sobre a Intervenção "federal" do Rio, é uma vítima de crime político estranhíssimo. Ate agora, a junta fisiológica que governa o Brasil prefere se apropriar do crime como se isso provasse a "necessidade da intervenção", mas há sem sombra de dúvida muito mais escondido por detrás disso. Realinhar os setores progressistas, superar divergências pueris, e ter clareza na ação são essenciais para os meses -- decisivos -- que nos aguardam. Vamos à luta.




terça-feira, 30 de janeiro de 2018

O Enigma das Eleições de 2018

O ano de 1988 matizou o tradicional autoritarismo brasileiro. Se a participação popular não se tornou plena como o esperado, ao menos com eleições a cada dois anos, com as disputas municipais intercaladas com as gerais (nacionais/estaduais) traziam um suspiro: agora, trinta depois, o que espera do momento em que vivemos?

Isso não é só sobre "Lula condenado", mas de uma lógica na qual a política deve estar debaixo do que diz o "mercado" e, mais precisamente, da oligarquia dominante do país. Nenhuma razão real maior do que o  "porque o mercado quis" aparece, embora discurso e memes sejam produzidos. Discute-se abertamente a retirada de candidatos, ou como se fecha as portas para a ou b e como se elegerá o candidato "do centro" -- que, a bem da verdade, é o candidato da direita espiritualmente alinhado a isso que está aí nas ruas.

A depuração eleitoral pouco tem a ver com a democracia, mas com o alinhamento com os interesses mais elementares das grandes corporações econômicas, em escala nacional e internacional.

Vejamos bem, as pessoas comuns jamais se enganaram por completo, mas sabiam que em alguma medida, aquele brecha lhes permitia influir um pouco nas assimétricas relações de poder do país -- para muito além do ceticismo ou do encantamento absoluto dos intelectuais --, mas o que se desenha aqui é muito complicado.

E é justamente essa esperança nas urnas, mesmo em um momento conturbado como este, que faz com que as ações políticas, em um país com nervos à flor da pele, seja postergados em intenções de voto -- que não agradam aos novos donos do poder, o que não se restringe à liderança de Lula, mas a impopularidade crônica e profunda dos candidatos que apoiam o estado de coisas.

Ironicamente, essa esperança resguardada não se materializa em grandes mobilizações espontâneas, nem muito menos grandes eventos organizados, pois os grandes sindicatos ou movimentos preferem, no máximo, fazer paralisações programadas e com duração certa.  E em dados momentos, nem parece o caso de desconfiar de conluio, porque a falta de luta é causa do definhamento sobretudo dos sindicatos.

Esse messianismo eleitoral, de tão comportado, se torna terrivelmente perigoso no momento atual, no qual uma espécie de hobbesianismo de mercado toma conta do Brasil pós-2016: uma declaração pública de que eleições podem atrapalhar a economia, o que seria um escândalo inadmissível há dez anos no Brasil. Essa racionalidade mágica dos economistas de mercado sobre as paixões da plebe, que nem sabe o seu próprio bem -- em argumentos infantilistas que lembram a colonização -- é sim uma forma de hobbesianismo, embora o projeto em si seja caótico.

É como se o Leviatã de Hobbes tomasse vida e resolvesse realizar o estado de natureza que -- e como -- o pensador inglês imaginava. A desagregação do país, com aumento dos problemas sociais, pestidades variadas (até de febre amarela) e a violência ao estilo mexicano já estão postas, mas isso não é falta do avanço do projeto que está agora no poder, mas consequências imediatas de sua breve hegemonia. 

A grande cereja do bolo na opinião de FHC, como repete o comandante do exército general Villas-Bôas, e outros políticos do establishment, seria o "Macron brasileiro", isto é,  qualquer figura anódina ideologicamente e com um aparato capaz de convencer o povo brasileiro a suportar o arrocho eternamente, tudo em nome de uma razão maior. Mas esse campo não tem consenso nem votos. Até o Macron real vive às turras com sua queda de popularidadeGerir medidas não democráticas sob uma aparência democrática tem limites. 

É a partir dessa constatação que República fica a perigo: enquanto a plebe espera poder, realmente, exprimir seu modesto poderio político, hoje mais do que nunca, as elites, absolutamente hegemônicas esperam não mudar nada. É essa aceleração que veremos até o final do ano, com as eleições, ou antes, sobretudo se Temer cometer a estultice de por em votação a derrocada da previdência social, amplamente rejeitada entre a população.

Na Rússia, o mito da bondade quase divina do Czar só se desfez em 1905, quando uma multidão de apoiadores marchou até o Palácio de Inverno para clamar por melhores condições de vida -- e foi recebida à bala pela guarda imperial, era o Domingo Sangrento.  Até então, as massas acreditavam que os conselheiros do Czar o enganavam ou lhe omitiam a realidade do povo russo, mas ao mesmo tempo jamais haviam tentando falar diretamente com ele, coisa que só aconteceu mediante a extrema necessidade.

No Brasil, o enigma da democracia com freio de mão puxado pode vir à tona, justamente em outubro, quando as massas vão apostar todas as suas fichas. Até aqui, o povo sempre se resignou numa cidadania quase circunscrita ao voto quadrienal, justamente por isso, espera que suas preces sejam atendidas mais do que nunca, seja pela obediência, seja pela necessidade de anos duros como estes. Essa desconexão entre expectativas, da massa e do mercado divorciado da democracia, pode produzir uma enorme fricção entre o segundo semestre deste ano e o começo do ano que vem.

São dois trens em alta velocidade vindo um em direção ao outro no mesmo trilho. A questão é que estamos observando atônitos, e até aqui ainda é possível evitar o desastre.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Lula Condenado e uma Direita "Marxista"

Sebastião Salgado -- Trabalhadores
Lula foi condenado, o que não é surpresa alguma, salvo para quem desconhece como funciona o judiciário ou nutre alguma ingenuidade politica sobre o quadro brasileiro atual: Lula teve a condenação confirmada, com muito rigor e poucas provas do que ele alegadamente teria feito -- os desembargadores sulistas blindaram a decisão de Moro e atacaram Lula, seja por um exercício de corporativismo ou por convicção ideológica.

A questão não é essa, mas de como a direita se lançou à luta contra o PT e Lula, no custe o que custar, enquanto os mesmos insistiram na mesma, e já decodificada estratégia: a conciliação e a tentativa de compor, e agir exclusivamente institucionalmente. o Brasil, portanto, vive o paradoxo de ter uma esquerda conciliadora e institucionalista e uma direita que, representando os interesses de uma elite cada vez mais rica, faz enfrentamento direto e sem meias palavras.

Uma vez no governo, e sobretudo no que diz respeito à sua sucessão, Lula caminhou cada vez mais para uma estratégia de conciliação, distanciamento dos movimentos sociais e transformando o PT, cada vez mais, naquilo que chama na ciência política de big tent --  grande barraca ou tenda, vertido ao português no prosaico "partido-ônibus" (uma tradução não literal de outro termo, na verdade, o catch-all party, partido pega-tudo), isto é, um partido mais e mais capaz de aglutinar setores variados ao centro.

O combo era a aliança com o PMDB, para ter anteparo institucional nos termos do jogo tradicional da política nacional, política de conciliação entre empresários "nacionais" e trabalhadores pelo desenvolvimentismo -- política de fomento ao capital via BNDES, grandes fusões gerando empresas nacionais com atuação internacional, compromisso de empregabilidade e aumento salarial, tudo junto e andando junto, mas sem uma análise ou plano de garantia da produtividade.

Isso deu errado logo, sobretudo com a escolha lulista de encabeçar isso com sua figura pessoal e sucessores técnicos designados, todos sem experiência eleitoral e na política propriamente dita. A estrategia falhou, também, pela incapacidade da "burguesia nacional" funcional enquanto tal, ou mesmo como classe, e não ter garantia nenhuma que ela poderia jogar essa aliança pela janela ao menor sinal de perigo, o mesmo valendo para o PMDB -- sem esquecer de que a distância da sociedade civil, seus ativistas e movimentos, alijava o PT daquilo que em poucos anos o transformou num partido grande em um país continental.

Do ponto de vista da corrupção ou da ilegalidade, fatalmente o desenvolvimentismo, enquanto relação sistematizada do capitalismo de Estado brasileiro, não inovou, incrementou ou diminuiu os nossos problemas históricos. Políticos e, acima de tudo, operadores de empresas privadas, lobbistas e doleiros ganharam muito dinheiro, mas os políticos foram rifados por eles enquanto os operadores se salvaram com as delações premiadas. Não há provas de que Lula tenha se beneficiado pessoalmente, mas isso não parece importar para quem o acusa ou apóia a acusação.

Lula é culpado politicamente e merecedor de sua condenação então? Não.  O processo como foi conduzido foi péssimo para a história jurídica do país, sobretudo. Uma medida radical e desarrazoada sem fundamento racional. Mas o que eu estou dizendo é justamente o contrário: isso só aconteceu por uma fantástica soma de erros estratégicos na política, os quais se assentam numa premissa de que todos os agentes no jogo iriam agir racionalmente conforme seus interesses.

É verdade que uma pequena minoria se beneficiou muito do impeachment, mas a grande maioria de quem apoiava a remoção de Dilma a qualquer custo não se beneficiou até agora. O mesmo vale para a condenação de Lula, que avizinha inclusive a possível proscrição do PT enquanto legenda, caso ele seja capaz de sobreviver ao dilúvio.

A questão é que uma pequena oligarquia, em aliança com a oligarquia ocidental, sai ganhando de todo esse processo e, a rigor, é capaz de se blindar dos seus efeitos nocivos, inclusive construindo novos bodes expiatórios e cortinas de fumaça ao longo dos próximos anos. E basta olhar a história recente do Oriente Médio e da África para saber que países podem piorar muito e com uma rapidez incrível.

O Brasil, contudo, sempre termina sendo comparado com a Europa e os Estados Unidos sempre que processos históricos ocorrem aqui, o que este blogueiro tem dito desde 2013 que não é bem assim: talvez tivéssemos nos saído melhor naquela ocasião se estudássemos a revolução iraniana em vez do maio de 68 francês, seja para conseguir fazer as potencialidades de 2013 se realizarem ou para enfrentar os impasses que, romanticamente, parte da esquerda não queria admitir que já estavam presentes ali.

No mais, é preciso entender que a grande aliança das esquerdas com o sindical-populismo brasileiro se esgotou, posto que está esgotada e decodificada, seja porque a oligarquia brasileira, sob a máscara neutral do "mercado", adotou uma estratégia marxista contra o espelho: fazer lutar de classes, disputar a hegemonia cultural (à la Gramsci) e construir intelectuais orgânicos para direcionar, acima de qualquer suspeito, o Estado a partir de seu interior.

Isso pode ser o resultado justamente da falta de combatividade da esquerda, o temor das elites em verem os pobres ascendendo, o medo de perder seus privilégios depois de 2008, ou mesmo pela enorme quantidade de ex-esquerdistas nas fileiras da direita partidária brasileira. Diante da impossibilidade de diálogo, Lula e o PT não sabem como agir. E talvez não saibam ou estejam em rejeição sobre os próprios passos.

Há quem, diante dos erros do PT, responda o bom e velho "não é comigo" diante da condenação de Lula há quem, diante do quadro grave, pense que não é hora para mudar estratégia e pensar em autocrítica. Não, o futuro da luta social, da ansiada melhora dos nossos parcos índices sociais, não passa pela estratégia petista, mas isso não implica em permitir injustiças contra Lula ou o PT, injustiças que podem se reproduzir contra um futuro presidente mais razoável de qualquer partido -- vide que Lula não é o primeiro, e pode nem ser o último líder político popular e eleito pelo voto a ter sua vida desgraçada no Brasil.

Entre o petismo e anti-petismo, inclusive de esquerda, é preciso pensar além, sem deixar de abordar questões sensíveis ao esgotamento do PT -- sem recorrer ao raciocínio do realismo mágico de achar que deixar Lula e o PT à própria sorte é bom ou que essa situação não é fruto de erros estratégicos crassos, e que o PT tem reais dificuldades para implementar um plano b. 

No curto prazo, reverter minimamente o destino da política econômica atual, baseada no divórcio definitivo do "mercado" com a sociedade, e frear e reverter as contrarreformas é uma tarefa essencial. Menos é mais. A estratégia de defesa judicial, colateralmente, sempre dependeu disso, embora talvez o próprio não entendesse isso. O fato é quem optou, e pratica, a luta de classes é a direita e a oligarquia brasileira, ainda capazes de mobilizar as classes médias e usar de mecanismos morais para comandar o país.