sábado, 26 de fevereiro de 2011

O Consenso Brasileiro: Kassab e São Paulo

Na quinta-feira última, ocorreu o sétimo grande ato pela redução das tarifas de ônibus em São Paulo. Trata-se de um intenso processo de mobilização contra a política de transporte do atual governo municipal da capital paulista, o que invariavelmente resvala em um embate direto contra toda lógica do projeto que há quase oito anos dita os rumos da maior cidade do Brasil. O atual mandatário de São Paulo, Gilberto Kassab, surge como o improvável vice de José Serra nas eleições de 2004, assume como vice e, após um ano, ascende à chefia da principal Prefeitura do país, com a esperada saída de cena de Serra para disputar o Governo do estado em 2006 - dentro de uma estratégia que visava à Presidência da República em 2010, projeto que, como sabemos, fracassou há alguns meses. O Kassabismo, como já debatido exaustivamente por aqui, é a reterritorialização definitiva de São Paulo, afinal, não é possível conceber uma amálgama de projetos conservadores maior do que ele: Um pouco da direita "empresarial" ao estilo Afif, o velho Malufismo, o espectro do demismo e a frieza gerencial tucana.

Em São Paulo, ergueu-se um modelo desumano de cidade durante a segunda metade do século 20º, a mais perfeita e acabada expressão urbana do Regime Militar: Uma urbe centrada no transporte individual, no isolamento da massa trabalhadora mal-paga nas periferias e entristecida em tons cinzas e duros. As tentativas humanizadoras de dois governos de esquerda na era democrática tombaram diante da insuficiência dos projetos frente à complexidade do consenso político do núcleo duro local. A cidade, neste exato momento, está esgotada, vítima dessa camisa-de-força urbanística, na ausência de projetos à altura de suas demandas e na obstinação em manter tal projeto em curso. O aumento das passagens de ônibus para R$ 3,00 só segue uma trajetória de reajustes altos de um serviço que está esgotado há alguns anos, mas que no Kassabismo chega a um nível considerável de sucateamento, o que levou à onda de protestos em questão. Esse ato em específico narrado aqui atraiu quase cinco mil manifestantes para a frente da Prefeitura, o que marca um fortalecimento do movimento, um marco importante depois da dura repressão promovida pela Polícia Militar paulista e a Guarda Civil Metropolitana - devidamente coberta neste post lapidar do Tsavkko sobre o 17 de Fevereiro.

A grande questão que se impõe diante dos nossos olhos, para além da manutenção paranoica de um modelo de urbano insustentável - ou mesmo das agruras da repressão e do policialismo - é o consenso que se constrói no país e que tem, pelo seu lado, normalizado variadas formas de relação e convivência francamente opressivas que encontram lastro histórico seja na Ditadura ou em algum ponto mais longínquo da nossa vida enquanto coletividade: Não há indignação, Kassab é, hoje, um quadro disputado a tapas pelas principais forças políticas do país. Em vez de falarmos nesse consenso como elemento de manutenção de algum entulho histórico, equívoco elementar entre equívocos elementares dentre os decorrentes de uma compreensão linear do tempo - que posiciona, por sua vez, a História como uma espécie de marcha forçada -, é preciso trazer essa questão para o terreno da imanência, para o inescapável aqui-agora; não é de manutenção de nada que falamos, mas de um produtor atual de autoritarismo, logo, de obstrução ou mesmo captura da vida por meio do esvaziamento da politicidade - e da possibilidade de problematização e questionamento das coisas inerentes à vida comum, reduzidas cada vez mais a um gerencialismo tacanho.

Essa grande contemporização que se viu, há pouco, com o aprofundamento da aliança entre PT e PMDB e se adensou nos primeiros meses do Governo Dilma ascendem uma luz amarela relevante em relação a uma bola que temos levantado por aqui: O PT produziu mudanças incontestáveis nos últimos anos, mas um dos desfechos possíveis para essa história é ele ser engolido pela situação que criou e padecer esvaziado de seu potencial. A tentativa de aproximar Kassab da base aliada - seja no PMDB, no PSB ou no novo PDB - para desestabilizar o esquema demo-tucano faz algum sentido, mas ele não esgota o direitismo, ao contrário, apenas atinge um de seus tentáculos externos, sem deixar de trazer, paradoxalmente, para dentro do intrincado sistema governista um elemento ele mesmo direitista. Isso é parte da conversa que eu iniciei aqui no post anterior e que rendeu este belo post do Bruno Cava, em relação ao qual eu concordo com grande parte das assertivas e das preocupações, embora não seja tão pessimista quanto à situação atual (o que não quer dizer que eu esteja otimista também) e seja mais cético quanto ao peso da responsabilidade de Lula nisso: A proposta de Governo atual, sob a égide da Carta ao Povo Brasileiro, já é, em si, marcada por uma articulação complexa que caminha no limite entre a contemporização total e  a negociação com variados setores, item  que Lula, apesar de vários arranhões, conseguiu administrar sem cair em uma conciliação geral, embora não tenha conseguido afastá-la por completo também, o que não torna menores suas responsabilidades sobre o que se passa agora.

Apesar dessas nuvens negras no horizonte, o posicionamento de inúmeros parlamentares petistas nas mobilizações contra o aumento das passagens e suas declarações públicas contra o Governo Kassab são relevantes e, esperamos, conseguirão frutificar daqui a um ano na construção de uma alternativa eleitoral verdadeira ao projeto atual - em uma briga dura que passa, aliás, pela superação do coro de contentes dentro do próprio partido. O papel de ativistas das mais variadas espécies precisa, é claro, ser alheio a todo o jogo político-institucional, o qual deve ser reduzido a mero instrumento: É necessário se voltar ao que realmente interessa, a saber, mobilização, atuação, problematização. É preciso pôr o altar do consenso abaixo e isso só é possível de se fazer atuando nas ruas e nas diversas (info)vias da vida.

P.S.: As fotos que ilustram este post são do meu grande amigo Bruno Pegorari que fez essa bela cobertura fotográfica especialmente para O Descurvo
* um agradecimento ao Paulo Paiva pela revisão ortográfica.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O Terror do Consenso

Todos nós temos, pelo menos, uma cena aterrorizante na memória. A minha não remete a uma guerra, um desastre natural, uma tragédia pessoal ou algo do tipo; a imagem que não sai da minha cabeça, por sua natureza horrenda, remete à cena final do processo de cassação da imunidade parlamentar do então deputado Antonio Negri na Itália dos anos 80 - tal mandato de deputado conquistado pelo filósofo italiano foi o que, aliás, lhe valeu a soltura do cárcere, onde se encontrava por conta da condenação (inacreditável) na qual fora apontado como "mandante moral" do assassinato  de Aldo Moro e, ainda, ser um dos líderes das brigadas vermelhas além de ter sido acusado de usar seu cargo de professor universitário para corromper os jovens (isso não lembra vocês de algo, não?). A votação transcorria tensa até a derrota de Negri, que saiu cabisbaixo do plenário com olhar mortificado, enquanto a turba ignara comemorava. Um gigante como Negri, de repente, estava de cabeça baixa, curvado pelos idiotas do consenso - e eu, que sou tão pequeno, tremo diante daquilo até hoje. Olhando para o Brasil atual, onde a contemporização é quase geral e grande parte dos jovens estão praticamente mortos por dentro - embora ainda caminhem por aí -, aquela cena ganha um significado especial, se ver cercado, ser curvado. Aquilo é o terror em pessoa para mim e é aquilo que parece se avizinhar na esquina logo adiante.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

A Revolução Árabe: Líbia

Condolezza e Kadafi: A reabilitação (AFP)
Desde que esse processo revolucionário multitudinário tomou conta do Mundo Árabe com a Revolução dos Jasmins, insistimos por aqui que se referir aos atuais acontecimentos como fruto de mera degradação na condição de vida das pessoas, quem sabe uma consequência direta dos efeitos da Crise Mundial, trata-se de um equívoco fortíssimo. Não, nem a Tunísia, tampouco os países afetados pelo efeito dominó, são os mais pobres, desiguais ou politicamente opressivos do continente africano ou do mundo, embora eles sejam pobres, desiguais e opressivos. Antes de mais nada, é preciso ponderar o que disparou essa fantástica explosão do desejo e entender como ele interferiu no campo social - enfim, uma economia política formalista, incapaz de considerar o desejo, jamais será capaz de produzir uma análise precisa da questão. O fato é que mesmo que a Crise Mundial tenha agravado as condições de vida da região, fatores demográficos - que propiciam uma enorme quantidade de jovens naqueles países, por exemplo - e políticos - a irrupção, finalmente, de um modelo de militância capaz de fazer multidão, alternativo ao enferrujado nacionalismo árabe ou ao fundamentalismo islâmico e suas ambiguidades - conseguiram reverter um quadro que, há pouco menos de um ano, era de mais perfeita servidão. A Bola da vez é a Líbia: País com as melhores taxas de qualidade de vida da África - iguais aos dos melhores países latino-americanos -,  onde o extremismo religioso amarga a insignificância e, em relação ao qual os analistas internacionais supunham que jamais seria afetada pelas circunstâncias, agora se vê diante de uma revolução que vem a se unir com a multiplicidade de revoluções do continente. A tirania local, sob o comando do controverso Coronel Kadafi - ou Gaddafi, dependendo da transliteração -, é uma mistura do socialismo autoritário do Leste Europeu em moldes árabes com um bocado do nacionalismo nasserista e boas doses de histrionices que, neste exato momento, tem protagonizado a mais dura reação vista em relação à Revolução Árabe até o presente momento - ao mesmo tempo em que desmistifica a lenda da viabilidade da "boa ditadura", o regime opressivo que produz boas "condições objetivas" de vida. Se a História nos ensina que nenhuma forma de socialismo autoritário é sustentável - se é que podemos considera-las como um socialismo, haja vista que não são os trabalhadores que controlam os meios de produção nelas -, o caso em questão suscita reforça a natureza libertária do processo em curso: Embora a Ditadura de Kadafi tenha sido reabilitada pelo Ocidente - seja por ter aderido à Guerra ao Terror americana ou à repressão à imigração no Mediterrâneo ao lado dos europeus -, a revolta contra sua autocracia reforça que os árabes não estão mais dispostos a tolerarem nem o Imperialismo, nem as degenerações autoritárias "contra-hegemônicas" que surgiram em sua decorrência - reconciliadas ou não com o Ocidente. Se a situação de submissão real daqueles países no sistema internacional não será mais tolerada, também não há espaço para um novo Nasser (muito menos para um novo Sadat) naqueles países, o que é maravilhoso. Aqui, no entanto, o desafio dos revolucionários é enorme pela violência da repressão. Seja como for, nada será como antes e é isso que importa. 


domingo, 20 de fevereiro de 2011

O Verdismo e o Nosso Tempo

As Flores de Bazarov -- retirado daqui
A Crise Econômica Mundial, ainda em curso, é um dos processos mais intrigantes da História: Embora ela tenha provocado um tremendo alarde quando se iniciou, logo veio o silêncio - e não arrisco em dizer que mais se cala do que se fala seja sobre seus efeitos, imaginem só sobre suas causas. Sim, porque ela não significa apenas um abalo no edifício das verdades majoritárias como também balançou as certezas, por assim dizer, "contra-hegemônicas". O fato é que o consenso imperante caiu por terra sem, no entanto, nada - de melhor ou pior - surgir em seu lugar, o que gera um quadro de apreensão e ansiedade. De onde estamos saindo, onde poderemos chegar? A pax americana acabou tão rápido quanto começou e não sabemos para onde vamos; a nau bateu nos rochedos, os que não se foram na desdita estão agarrados em suas tábuas de salvação - e há quem relute em aceitar que elas são apenas e tão somente isso: Uma pequena chance de chegar à terra firme.


No mundo rico, o que se vê na esteira da erosão do consenso político é a ascensão, quase que por inércia, da extrema-direita; o primeiro momento em que uma luz apareceu no fim do túnel nos últimos tempos foi agora, com a multidão de revoluções no mundo árabe, o que nos tirou de uma anestesia profunda cujos efeitos, quem sabe, possa ajudar a despertar os (antigos) países cêntricos do seu pesadelo. Claro, para além do esgotamento do modelo econômico, temos, também, uma crise ambiental que se opera de forma mais silenciosa ainda. Não, nós não estamos apenas às voltas com problemas nas vigas que sustentam a nossa Casa, mas também com um problema dentro dela mesma, em seu próprio ambiente. Mas não, também não se trata, frise-se, de dois problemas separados: As rachaduras na parede e as constantes confusões dentro da Casa se interrelacionam enquanto efeitos da atividade que é realizada ali dentro. Algo, em sua esquizofrenia, abala desde as estruturas da casa e, ao mesmo tempo, abala seu ambiente.


É um pouco do que fala Guy Debord em O Planeta Doente, artigo de 1971 publicado recentemente no Sopro. Em suma, ele fala do impacto da forma como os homens se organizam - não somente sobre a sua sociedade, mas também sobre aquilo que a sustenta, a saber, a própria natureza. Como anota Debord, o ambientalismo, já àquela época, estava na moda, mas é claro que os problemas ligados à poluição passavam bem longe de meras saídas administrativas, onde o Estado capitalista - ou sua tentativa de alternativa, os Estados socialistas burocráticos do Leste Europeu e da Ásia - mudariam isso ou aquilo e superariam o empecilho. É evidente que essa problemática passa por decisões políticas que tocam sim o cerne do sistema produtivo, sem concessões nem eufemismos. Discorde-se ou não de certos aspectos subsidiários da análise de Debord, o fato é que o desenrolar das coisas se deu na direção que ele anteviu. 


Àquela época, um novo grande consenso começa a ser edificado, ele considera sim os problemas ambientais, mas enquanto ameaça ao Capitalismo - ou melhor, à "Economia".  É também nos anos 70, um ano depois do artigo de Debord, que a ONU entra na parada com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), mais uma das infernais boas intenções das Nações Unidas, cuja finalidade é resolver os problemas segundo as regras do velho universalismo. Isso também coincide com ano do nascimento do movimento verde na Austrália, o que se espalha pela Europa na mesma década e chega, nos anos 1980, ao Brasil. Ainda que o verdismo nasça com uma proposta libertária, ele se vê permanentemente rondado pelo espectro do ambientalismo conservador, teses de crescimento zero - o que favorecia, por óbvio, quem já é desenvolvido - e o mais roto neo-malthusianismo possível - e suas capciosas teses sobre o excesso de população.


No Brasil, o verdismo surge no Rio de Janeiro, tocado por militantes anti-Ditadura que encamparam a questão ambiental, normalmente posta de lado pela esquerda tradicional - campo político em relação ao qual também se afastavam pela sua oposição ao bolshevismo e suas variantes. Falo de gente como Sirkis, Minc, Gabeira e tantos outros. Muito do conteúdo esquerdista do partido se dilui com o tempo, seja pela maneira como ele se expande pelo país - o verdismo, por sua natureza, é um movimento aberto, o que o faz ter predominâncias variadas pelo mundo, o que se verifica na composição do partido no Brasil também - ou por não ter conseguido se colocar de maneira clara em relação à questão social, talvez do mesmo modo que a esquerda tradicional jamais tenha conseguido realmente encarar a questão ambiental frontalmente, como aborda Alexandre Nodari - o que, ressalto cá do meu lado, no Brasil possui um complicativo maior em relação à Europa, aqui, o elemento plebeu, da massa mestiça das periferias e do campo, não é das coisas mais fáceis de se decifrar, item em relação ao qual, sem dúvida, o PV brasileiro falhou.


O PV brasileiro segue um tanto erodido até que ocorre o ingresso de Marina Silva para disputar a Presidência, o que o coloca de novo nos holofotes, algo relevante depois dos anos 90 o ter condenado, aparentemente, a ser um pequeno - o que, no entanto, nem a votação gigantesca de Marina parece ter mudado. A questão é para onde esse verdismo vai ou pode ir, seja aqui ou no mundo. Neste exato momento, para muito além de um surrado Deep Ecology, ascende um verdismo de mercado que parece bastante sedutor agora, onde falar em "economia criativa" e numa saída clean para as contradições sociais - se é que elas vão ser levadas em consideração. O que nos resta? Mercadificar a temática ambiental e construir todo um circuito de consumo de bens ecologicamente corretos, instituindo, quem sabe, todo um sistema complexo e eficiente de trocas de créditos de carbono? Levando em consideração que a atual Crise Econômica, longe de ser um mera sazonalidade - antes de mais nada, ela é efeito de um problema agudo na própria realização do valor -, vemos que o buraco é mais embaixo, por mais que isso nos ajude a lidar com nossas culpas, isso não parece ajudar a fazer muito mais do que isso.


De fato, cá ficamos com as linhas gerais do velho Debord, longe de ser ingênuo, a eficiência da produção administrada pelos próprios trabalhadores e o fim de uma perspectiva de ciência alienada são as únicas chances de enfrentar uma situação que, por sua vez, antes de ensejar um neo-malthusianismo, nos diz exatamente o contrário: Existem bocas de menos para o que se produz, se elas terminam mal-alimentadas é porque há algo de verdadeiramente perverso no sistema econômico, o que se torna problemático se essa produção excessiva, ainda por cima, oneram o meio-ambiente. Não será uma volta a uma espécie de essencialismo naturalista, um platonismo qualquer, que mudará isso, tampouco será a social-democracia aparentemente triunfante como via política que nos salvará; a ideia curiosa de um Estado que explora um sistema perverso, corrigindo suas falhas e se aproveitando da sua capacidade de produzir, além de não passar de um paliativo político-econômico, não será capaz de deglutir as toxinas produzidas por esse sistema que, por seu turno, envenenam aquilo que sustenta a própria vida.


São tempos interessantes esses, para além de uma crise no nosso modo de vida (uma crise econômica), se opera uma crise que põe em xeque nossa própria vida (uma crise ecológica). Cá no Brasil, o PT ainda é um raro exemplo de esquerda com pés na realidade social que o engendrou - ainda que tenha caminhado em uma direção ruim nos últimos anos, me parece a única alternativa relevante ao tecnocratismo kautskyano - e, talvez por isso, conseguiu mudar a ética de funcionamento do Estado tornando a garantia da vida de todos bem mais que um interesse refratário, mas precisará encarar com mais seriedade a questão ambiental - o que passa por mais coisas do que se pode supor.  Se, em um primeiro momento, seria ótimo que o PT unisse sua prática social-democrata a um ambientalismo decidido - assim como seria se Marina conseguisse dar um caráter social-democrata ao PV -, o desafio que está posto no horizonte é mais complicado do que isso: O único meio de salvar o meio-ambiente é traçando como fim para tal atividade a preservação da vida, o que não coincidirá com a preservação do Capitalismo. A dificuldade disso, diante da própria crise crônica no nosso sistema político, não é pequena, mas a boa luta nunca deve deixar de ser lutada.



sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

A Crise Política Paulistana de Cada Dia

A polícia paulista e sua sutileza -- daqui
O verão paulistano está sendo um inferno, começou com uma alternância de muito calor com chuvas pesadas - com direito a enchentes e congestionamento na capital - , depois ficou só incrivelmente quente e, agora, as chuvas (e os problemas) voltaram. A cidade não aguenta mais uma tempestade qualquer, ela simplesmente pára, entra em colapso. Ao mesmo tempo que a construção de linhas do metrô segue lenta, as políticas para os trens metropolitanos são pífias e restritas a meros ajustes pontuais, enquanto a política para o sistema de ônibus merece todos os adjetivos pejorativos que se possa imaginar: Os reajustes anuais têm superado a inflação e a qualidade do serviço é horrível. Em uma cidade gigantesca, onde não há transporte férreo em todos os bairros, conviver com essa variável é pedir para que o trânsito pior a cada dia mais. Mas isso não é problema de Kassab, é nosso, afinal, até as pedrinhas da rua sabem que o improvável prefeito paulistano governa para o grande capital - as imobiliárias, as empresas de ônibus e quetais - assim como o faz, por sua vez, cinicamente. Por quais cargas d'água o menino Kassab abriria mão de todo cinismo do mundo? Acaso ele não teria crescido em um cenário no qual o fisiologismo grassa, não teria virado prefeito graças às frestas geradas pelas lutas ridículas por poder dentro PSDB  e, por fim, sempre tenha surfado na cômoda onda do antipetismo - e, por que não, tenha se valido o tempo todo dos tropeços do inepto PT paulistano? Kassab pode ser um catalisador importante, quem sabe também a melhor caricatura representativa, mas ele não é, nem em sonhos, a causa desse estado de coisas, mas sim um de seus muitos efeitos. Enfim,  não é questão de se ficar triste com Kassab na Prefeitura, mas sim com a conjuntura que o produziu; A crise política paulistana e paulista é tão grave que não obstante o fato dessa gestão aberrativa estar na Prefeitura da Capital, as forças políticas do estado seguem se estapeando por Kassab; por exemplo, o velho - e agora tão poderoso - Temer negociando sua entrada no PMDB paulista - que se encontra em vias de refundação - ou mesmo, que coisa, ver a hierarquia do PC do B defendendo publicamente um apoio à sua figura pessoal - longe de mim ser a velhinha de taubaté do marxismo-leninismo, mas isso daí também é demais para um partido que se intitula "comunista". Isso sem mencionar a luta de tucanos e demistas para mantê-lo "do seu lado" - como se o prefeito paulistano não esteja sendo coerente com lado no qual sempre esteve: O seu próprio. Nesse exato momento, irrompem protestos contra o aumento das passagens de ônibus e mais parece que o Egito é aqui, tanto menos pelo movimento revolucionário e tanto mais pela repressão policial. 

P.S.: Muito bom a bancada petista na Assembleia Legislativa ter pedido explicações a Alckmin, já não era sem tempo:


São Paulo, 18 de fevereiro de 2011 


Senhor Governador,                                                


No final da tarde de ontem, durante manifestação popular pacífica realizada defronte a Prefeitura Municipal de São Paulo, no centro da cidade para protestar contra o absurdo aumento no preço das passagens de ônibus, os manifestantes, dentre os quais alguns Parlamentares representantes do Poder Legislativo Municipal e Estadual, foram atacados com violência por policiais militares.                                               


Em razão desse injustificado e violento ataque, muitos manifestantes, inclusive Deputados e Vereadores , sofreram lesões corporais.                                               


Senhor Governador, é inadmissível que numa sociedade regida pelo estado de direito, a Polícia Militar reprima com essa truculência manifestações pacíficas.                                               


Entendemos que os policiais militares não agiriam com tanta violência,  sem terem recebido ordens superiores.                                               


Senhor Governador, como responsável pela segurança pública de todos os paulistas, Vossa Excelência não pode admitir que seus subordinados, integrantes da Polícia Militar, ao invés de garantirem a segurança do povo, contra ele invistam, colocando em risco a integridade física de todos.                                               


Isto posto, solicitamos de Vossa Excelência urgentes providências no sentido de determinar a imediata instauração de procedimentos administrativos e criminais no sentido de apurar não só quem deu a ordem para o violento ataque dos policiais militares aos manifestantes mas também identificar os policiais agressores.                                               


Certos de que Vossa Excelência adotará de pronto as providências solicitadas, apresentamos protestos de consideração e apreço.  


DEPUTADO ANTONIO MENTOR, Líder da Bancada do PT 


Excelentíssimo SenhorGeraldo Alckmin, DD. Governador do Estado 


São Paulo/SP 







quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O Brasil e o Ajuste Fiscal

A equipe econômica: Mantega, Miriam e Tombini
O debate político desta semana gira em torno dos ajuste fiscal promovido pelo Governo Dilma: Basicamente, o Governo considera um corte na ordem de R$ 50 bilhões no orçamento deste ano. e, também,  propõe um aumento do salário mínimo que só repõe a inflação (passando-o, portanto, de R$ 510,00 para R$ 545,00). A finalidade disso é equilibrar as contas públicas para frear o risco de inflação em um momento onde a economia está, felizmente, aquecida - e o processo inflacionário, como sabemos, sempre pesa mais sobre os ombros dos mais pobres. É sempre complicado debater orçamento público de um país do tamanho - e com a complexidade - do Brasil, mas é fato que o corte proposto no orçamento, a ser aplicado sobre o custeio da máquina - ou seja, sobre as emendas parlamentares, nomeações de funcionários etc -, poupando, portanto, projetos sociais e os investimentos do PAC, consiste, sem sombra de dúvida, em uma medida corajosa e acertada por parte da equipe econômica. Já no que toca ao salário mínimo, há controvérsias: Mesmo que seja válido argumentar o ônus que o aumento do seu valor possa gerar - considerando aí a inflação inerente à medida e qual seria o seu valor real até o final do ano nesse cenário -, aparentemente seria possível dar um reajuste real sim - ainda que não muito grande pela necessidade real de contingenciamento, talvez algo em torno de 3,5%. A questão do salário mínimo, no nosso entendimento, aliás, vai para além de uma questão objetiva de cálculo do orçamento - embora não prescinda da consideração desse dado - e passa por uma questão de construção de um projeto democrático por meio da valorização do trabalho, dado o histórico de arrochos salariais iniciado pela Ditadura, de tal forma que a manutenção do crescimento do seu valor real - mesmo que com redução da velocidade pelas circunstâncias - é sim importante. Enfim, embora a equipe econômica tenha dado uma bola dentro, ela perdeu sim um gol feito por excesso de preciosismo. 

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Uma Revolução de Multidões dentro de uma Multidão de Revoluções

Um ramalhete, não uma flor*
é o que está acontecendo agora no Egito e pode acontecer na Argélia, mas também no Iêmen ou, quem sabe, em mais lugares do mundo árabe. A onda começou na Tunísia, como anotamos, onde alguns ciberativistas fizeram multidão e o gesto de sacrifício do vendedor de rua Bouazizi - também enfatizado por Diego Viana no Amálgama -, ao pôr fogo no próprio corpo, trouxeram à tona a nudez do Regime, cuja consequência não foi apenas a queda do ditador - seguida da luta que agora se trava pela democratização -, mas também um efeito que ecoou pelos seus vizinhos árabes: Mais importante do que a mensagem dos tunisianos para seus vizinhos, de que a ditadura e a submissão ao imperialismo não são mais aceitáveis, é o sentimento que partiu da Tunísia que realmente conta; tanto o sacrifício de Bouazizi quanto a ação dos ciberativistas produziram uma faísca que restituiu parte da vida daquelas pessoas, o suficiente para aqueles tiranos perderem a capacidade de entristecerem seus súditos, o que, como Spinoza nos ensinou, é fatal. Os eventos em tela colocam em xeque a Filosofia da Consciência - mesmo a libertária - na qual estivemos embebidos durante tanto tempo; embora pobres, aqueles países não são os mais pobres - nem os mais desiguais - da África, tampouco o que deflagrou o processo foi alguma massiva campanha de esclarecimento popular - como se a opressão já não fosse sentida nos corpos -, o que muda aqui, reitero, é o desejo revolucionário e como ele foi despertado aqui.

Como sabemos desde Platão, a Política é uma técnica no sentido antigo da palavra, o que, trocando em miúdos, trata-se de uma espécie de intervenção criativa do homem no seu ambiente - cujo fim atende à sua sobrevivência imediata ou não - por meio da qual ele amplia sua própria força, realizando necessidades suas que, no entanto, sozinho ele não conseguiria. A Política permite que nosso corpo se articule com tantos outros corpos e crie um corpo maior no qual o individual e o coletivo são as suas duas dimensões; A multidão feita na Tunísia produziu uma vibração que pôs o corpo da Tunísia em contato com os demais corpos próximos, afetando-os inexoravelmente. Aquilo que era uma Revolução de multidões na Tunísia deveio uma Multidão de revoluções, onde corpos gigantescos - co-habitados por corpos humanos - estão em ebulição, é o "Nós somos Um" gritado por muçulmanos e cristãos, unidos, no Egito. A esse respeito, cabe um mea-culpa da nossa parte: Tratamos a Revolução Tunisiana, a princípio, como Revolução do Jasmim, um equívoco, sem dúvida; não é uma flor, mas sim um ramalhete - como era um ossário e não um osso aquilo Jung viu no sonho, embora Freud insistisse no contrário -, falemos, portanto, em Revolução dos Jasmins a partir de agora. Compreender a multiplicidade aqui e a articulação da parte com o todo, é fundamental

O desafio tunisiano não será nada pequeno; sobre isso é importante ler o belíssimo Carta a um Amigo Tunisiano, onde o filósofo italiano Antonio Negri escreve a um ex-aluno, relembrando as conversas que eles tiveram, há vinte anos, sobre o país natal do segundo, suas dificuldades, suas potencialidades e a tarefa enormíssima de democratizar a Tunísia que se impõe no aqui e agora. Todavia, existe um vento que sopra a favor dos tunisianos e que corresponde à ausência de organizações políticas que se assentam sobre o extremismo religioso e, por outro lado, a força das organizações de estudantes universitários e de trabalhadores, cuja participação nesse processo foi decisivo. É verdade que o ditador foi-se, mas a velha elite segue dentro e às voltas do Poder e é forte, não nos iludamos, mas é bastante positivo que as organizações que se insurgem contra a Ordem sejam como são - sim, o processo tunisiano demorará anos e não será feito apenas de vitórias, ainda mais dentro dessa conjuntura mundial, mas ele caminha bem. Isso é um pouco diferente do Egito, onde o movimento revolucionário local conseguiu expulsar o ditador Mubarak há dois dias, como noticiado neste blog, mas apesar da força dos manifestantes, a presença de organizações fundamentalistas - logo, reacionárias e meramente golpistas, que se aproveitam desse momento enquanto parasitas para se apoderarem do Poder consiste em um desafio extra para a Revolução em curso, seja porque isso é vendido enquanto fantasma fora do país ou porque é, de fato, problema objetivo para os libertários do Egito.

Cristãos protegem muçulmanos na ora da prece
Como anota Slavoj Zizek, em recente artigo no Guardian - cuja versão traduzida pode ser encontrada aqui no Diário Liberdade -, o caso egípcio não se compara ao caso iraniano de trinta anos atrás: Enquanto lá o levante tinha um caráter islâmico com a participação de forças laicas - não custa lembrar que em 1978, comunistas e nacionalistas laicos eram minoria frente aos setores puramente religiosos e nacionalistas islâmicos -, no Egito, assistimos a um levante laico com a participação de grupos islâmicos radicais - e a presença de cristãos protegendo muçulmanos enquanto eles rezam nos parece um argumento razoável nesse sentido. Ademais, o pensador esloveno acerta belas provocações na sua fala, a primeira sobre a intraquilidade dos conservadores ocidentais, os arautos da civilização, diante dos protestos é marcante. Cá da nossa parte, acompanhamos Zizek e ainda acrescentamos: A situação atual chega a ser um golpe mais contundente para neoconservadores - e mesmo liberais - do que a Crise Econômica Mundial na medida em que a derrubada  de líderes "do tipo monarca" - e não os párias que eles forjam por meio do grande Consenso - somada aos seu temor inescondível em relação às reivindicações econômicas concretas dos manifestações produzem, irremediavelmente, um impacto maior do que a falência de intrincados programas econômicos. 

Comemoração da denúncia de Mubarak - Pedro Ugarte
Os setores americanófilos, seja na civilização ou por aqui, deliram até uma participação americana no bom andamento da Revolução - como se não estivéssemos falando de um regime como o de Mubarak, sustentado há trinta anos por subsídios bilionários vindos de Washington - ou como se essas preocupações com os rumos da "democracia" fossem críveis, como se o Egito não fosse uma Ditadura (como Zizek acentua) e, ainda, como se não fosse ridículo usar a existência da Fraternidade Muçulmana enquanto fantasma como se, olhem só que ironia, os Estados Unidos jamais a tivessem financiado para combater o nacionalismo laico de Nasser. As únicas pessoas interessados em vender a Revolução Egípcia como uma nova Revolução Iraniana, salvo equívocos de compreensão, são o próprio regime iraniano tentando se legitimar e os setores hegemônicos do ocidente tentando deslegitima-lo. Por ora, as forças revolucionárias estão em vantagem e algo novo e bom está em curso, como nos lembra o nosso amigo Bruno Cava.



*imagem retirada daqui


Atualização das 19:58: Segundo nos informa Juan Cole por meio do seu blog, a Constituição Egípcia foi suspensa pela Junta Militar que neste exato momento governa o país. Um ponto fundamental para se compreender os próximos desdobramentos da Revolução Egípcia é manter os olhos nos militares do país: Poderosa instituição política, destino de boa parte dos bilhões de dólares dos subsídios americanos, as Forças Armadas do Egito não reprimiram com força os manifestantes, mantendo sua popularidade alta enquanto Mubarak desabava por si só. Isso não chega, ao nosso ver, a ser uma ditadura militar; um golpe militar propriamente dito aconteceria se Mubarak tivesse sido derrubado por uma intriga palaciana com o apoio dos militares locais, não por milhões de pessoas nas rua. A questão aqui é outra, se o processo revolucionário será abortado pelos militares envolvidos no comando do país ou se eles apenas assumiram o controle da máquina respeitando a vontade da multidão, enquanto eleições livres não ocorram. Portanto, esqueça os fantasmas, a instituição que pode sabotar a democratização do Egito é as Forças Armadas.


sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

O Debate sobre Deus na Blogosfera e as Arábias

Manifestantes oram para Ala no dia da derrubada de Mubarak -- Pedro Ugarte/AFP

Recentemente, um debate interessantíssimo voltou a ser travado pela blogosfera sobre a questão religiosa e o ateísmo. O André Egg, por exemplo, tem publicado uma série de posts sobre isso que tem me chamado a atenção. Embora discorde de algumas colocações dele - algo perfeitamente compreensível pela nossa diferença de formação, André vem de um lar batista enquanto eu tive uma educação laica e não sou religioso -, eu concordo com a perspectiva que ele adota nesse debate: Calma gente, ninguém é dono da verdade nessa conversa toda. Não, os ateus não estão na mesma condição de pessoas que têm religião, eles são uma minoria oprimida, mas do mesmo modo que os eles não são inferiores aos religiosos pelo simples fato de não crerem em Deus, a recíproca também é verdadeira. Usar o cientificismo - e é assim que se chama a Ciência quando passa a ser usada como instrumento de veridicção e afirmação do Poder - como forma de atestar a "ignorância religiosa" é um erro grave e perigoso - por isso eu discordo da linha que um Dawkins assume como expus lá no próprio André, ela não apenas soa arrogante como passa batido pela questão central do extremismo religioso e promove um debate que é tão metafísico quanto o que condena, é evidente que por uma perspectiva materialista, a questão da religião não passa pela afirmação ou negação de Deus (o que Dawkins faz, inclusive, é afirmar pela negação). Em suma, a minha linha nessa conversa toda é mais ou menos a linha de um post que o NPTO escreveu há um tempo atrás - em relação ao qual eu concordo sobre a perspectiva em relação ao debate entre religiosos ou não religiosos, mas discordo quanto à avaliação que ele faz da participação dos religiosos na política, acho que o buraco é mais embaixo, afinal, o Estado é laico (o que não se confunde com ateu, mas também não significa religioso), o que é uma grande ficção, claro, mas tem uma utilidade prática importante. Por outro lado, alguns intelectuais ateus, de influência iluminista, não raro se amparam em certas muletas kantistas (que mal sabem eles, mas são mais teístas do que o Papa), assumindo uma concepção de tempo em linha reta onde a religião pertenceria ao velho, ao "atraso", o que é falso: A religião é fenômeno social e político que existe em ato, mesmo o religioso mais radical e aparentemente atrasado é um fenômeno atual, ou seja, um amish é um amish de 2011, sua identidade religiosa é determinada pelas relações econômicas e sociais que atuam no aqui e agora - atribuir ao amish uma identidade um anômala em relação à História é, sobretudo, conceber a possibilidade de uma identidade cultural transcendental, em outras palavras, é quase beijar a religião que aparentemente se renega. A minha posição pessoal nessa conversa toda, claro, é de que não existe mesmo um Deus pessoal como na Bíblia, o que não quer dizer que Deus não exista: Existe, enquanto alguma coisa, real ou abstrata - a própria natureza, uma personagem ficcional etc - e que, de algum modo, produz transformações práticas. Mas não é apenas isso que me faz não me declarar como ateu, mas o fato de não aceitar a maneira como aparato institucional monoteísta põe a questão - desproblematizando-a, aliás -, em suma, eu me recuso solenemente em ser uma negativa de uma dicotomia que eu não considero como válida. É essa linha que uso quando eu analiso questões como a do extremismo religioso no Maghreb por aqui - por isso, inclusive, eu entrei nessa polêmica com o Daniel Lopes -: Religião - e seu eventual extremismo -, ao meu ver, trata-se de um fenômeno social e político atual, cuja relação com o sistema econômico e político vigente deve ser analisada, o que, a julgar pelos números de crescimento do extremismo islâmico junto da penetração do Capitalismo por lá ao longo do século 20º, não apontam para uma oposição entre o Capitalismo - e a esquizofrenia que parte do centro para a periferia, de um modo que hoje em dia nem se sabe mais o que é centro ou periferia -, mas o exato inverso; como ordens políticas ditatoriais a serviço do sistema capitalista internacional usaram a religião como instrumento de "pacificação" da classe trabalhadora local e, no fim das contas, acabaram perdendo o controle (o Irã que o diga) da situação. Também não podemos confundir  os religiosos não-extremistas articulados na sociedade civil - isto é, a grande maioria das pessoas religiosas - com defensores da teocracia, ou melhor, podemos fazê-lo tanto quanto  acusamos os democratas-cristãos europeus de defenderem uma Teocracia quando vão às urnas.

P.S.: Finalmente o ditador Mubarak renunciou e foi-se embora do Egito. Sua figura pessoal simplesmente implodia qualquer possibilidade de negociação pelo alto, com fins gatopardianos, como pretendiam os setores situacionistas do Egito e os EUA: Algo precisava mudar para que nada mudasse, esse algo não poderia ser apenas Mubarak no fim do ano, mas, quem sabe, logo agora. Evidentemente, não deixa de ser uma vitória do movimento revolucionário, mas trata-se de uma batalha vencida, não da própria guerra. Agora, mais do que nunca, é preciso se mobilizar, pois a falácia de que não há mais problemas porque o ditador foi embora certamente será usada para operar uma saída "razoável": Foi-se o ditador, mas ficou a ditadura (nos aparelhos e respirando com ajuda, mas ficou), ainda nem começou a transição e há muito o que se fazer tanto lá quanto na Tunísia.

Atualização de 13/02 às 01:10: Interessante - e estarrecedor - este texto sobre a relação entre a Fraternidade Muçulmana e os Estados Unidos - que eu pesquei lá no excepcional Outras Palavras. Só confirma aquilo que temos sustentado por aqui: A relação causal entre a atuação do sistema global e o crescimento do fundamentalismo islâmico, às vezes de uma forma até mais direta do que pensamos.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

31 Anos de PT

O Partido dos Trabalhadores completa hoje 31 anos. No ano do seu 30º aniversário, o PT venceu a terceira eleição presidencial consecutiva, fez a maior bancada na Câmara, garantiu a segunda posição no Senado, elegeu um número expressivo de deputados estaduais - e seus aliados governam a maior parte dos estados - além de ter terminado o ano, segundo nos informa o TSE, com o segundo maior número de filiados, quase 1,4 milhão, perdendo apenas para o PMDB. Não, 2010, não marcou nenhuma vitoriosa avassaladora do Partido, mas lhe manteve na liderança da esquerda partidária com confortável margem de segurança, além do fato de que a ampla aliança com a qual governa o país não apenas persistiu como também saiu fortalecida do pleito. Os êxitos do Governo Lula em seu segundo mandato não apenas foram o carro chefe que assegurou a vitória de Dilma Rousseff como, também, estancaram parte da grave crise interna vivida nos primeiros anos do partido no Governo Federal - ao passo que também mascararam tantos outros problemas existentes. O PT entra em sua quarta década de existência sem ter perdido o seu ethos de vanguarda de esquerda democrática, uma experiência única no mundo, que não se confunde com o socialismo oriental - e sua ortodoxia por vezes autoritária - nem com o socialismo ocidental - no qual, entretanto, não deixa de ter os pés fincados, mesmo que como alternativa à social-democracia (ainda que no Governo Lula, o que se viu foi um típico com governo social-democrata com mais um espírito inovador incomum para uma social-democracia). Isso não quer dizer que seus anos no Poder - bem como as experiências em grandes governos municipais e estaduais - não tenham transformado inúmeros aspectos da sua vida; o Estado brasileiro mudou para melhor com o PT no poder, mas a recíproca também é verdadeira: O Estado também mudou o PT para pior por dentro. A máquina partidária petista cresceu absurdamente e, ao mesmo tempo em que combatia uma tentativa de modernização conservadora do país - uma grande contemporização, como se viu com FHC ou mesmo dentro do PMDB pós-ditadura -, ele também aumentava as conexões com o sistema econômico e político em relação ao qual exercia essa função contra-hegemônica. Por outro lado, as agremiações mais à esquerda, sejam as históricas ou as nascidas de cisões do próprio PT, não conseguem achar o seu lugar em meio ao debate nacional, circunscritas a um eleitorado pequeno, uma boa dose de boas intenções, algumas boas ideias e uns bons tropeções - referentes, em geral, à própria democracia interna, coisa que criticavam no próprio PT. O modelo petista, em sua originalidade, pôs em xeque as tentativas de reprodução da centro-esquerda europeia - um esquerdismo moderado de classe média que levava acadêmicos a considerarem a existência de operários, mas que nunca levaria operários ao poder - do mesmo modo que frustrou  as alternativas ortodoxas (anteriores ou posteriores à sua existência), o que empurrou os primeiros para a direita - por não lhes deixar espaço à esquerda nem eles quererem abrir mão do seu projeto de poder - e relegou os outros à insignificância eleitoral - o que explica muito da crise pela qual passam partidos como o próprio PSDB ou mesmo PSOL e PCB - para não dizer os casos de PSB e PDT que operam como linhas auxiliares do PT de hoje. Se por dentro o partido está mais engessado do que antes - em nome de razões de Estado às vezes insensatas -, por outro lado, a persistência de confrontações duras demonstra que os anos Lula não foram capazes de pôr fim às crises existenciais do Partido - e tampouco foi capaz de criar uma práxis interna capaz de lidar com as diferenças de modo construtivo -; o jogo é duro e as decisões gerais são costuras complexas visando manter o equilíbrio interno, ao mesmo tempo em que buscam responder às demandas externas (normalmente maiores, mas menos complexas do que as questões internas). Frente à esquerda tradicionalista e à direita - seja a mais ou a menos moderada -, o PT nada de braçadas como pólo inventivo, por mais senões que isso possa implicar: Com o perdão da paráfrase, hoje faz aniversário o pior partido brasileiro, com exceção de todos os outros e que é, por sinal, o grande adversário de si mesmo.

P.S.: Atualmente, o grande desafio petista é, sem dúvida, não ser engolido pelas mudanças que produziu - como já colocamos aqui - além de encontrar permanentemente o novo - como Lula, apesar dos seus tropeços, conseguiu - como o encerramento do seu segundo mandato prova. Por ora, seu equilíbrio interno não aponta para grandes mudanças no horizonte, mas a ebulição é permanente.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

A Posição do Brasil diante da Revolução Árabe

O Chanceler Patriota em Caracas/ Reuters
É certo que a cautela, em matéria de relações internacionais, é o seu princípio primeiro, mas isso não se confunde com omissão. A posição da diplomacia brasileira quanto à confusão no Mundo Árabe não é boa, ela é terrivelmente evasiva. Uma coisa é não interferir na política interna alheia, outra é silenciar diante do descalabro. É uma linha tênue, mas é preciso saber diferenciar as coisas. Não, antes que se diga, não há simetria alguma entre este momento com a questão do Irã, quando o Brasil se eximiu de tomar posição nos protestos que tomaram o país diante do fato de Mir Moussavi ater alegado que a vitória de seu rival, Mahmoud Ahmedinejad, tinha sido fraudulenta: Por mais provável que fosse aquela afirmação, como dizíamos à época por aquiqualquer uma das variáveis não era boa, haja vista que qualquer um dos desdobramentos possíveis daquela situação não resultaria em uma democracia efetiva no Irã, sendo ambos favoráveis à Teocracia - uma aristocracia, na prática. Não havia motivo para tomar partido, ainda mais com Moussavi manipulando a seu favor interesses imperialistas do Ocidente. O momento atual é delicadíssimo, mas a eclosão das revoltas na Tunísia, cujo resultado foi a Revolução do Jasmim, surgiu de uma onda que é, frise-se, o maior movimento libertário e secular já visto no Mundo Árabe. O quadro atual naqueles países é de pobreza e opressão agudas, causadas por tiranias particularmente ineficientes e cruéis, todas a soldo do Ocidente, cujo destino é, cedo ou tarde, serem derrubadas por religiosos extremistas - os mesmo que se multiplicam a partir do messianismo religioso alimentado por aqueles mesmos regimes para, vejam só, pacificar as populações locais e não se confundem com a sociedade civil organizada nas ruas nesse momento. Grande parte do esquema europeu e, sobretudo, americano passam por aquelas ditaduras, fenômeno que se deve à incapacidade e covardia dos representantes do mundo civilizado em negociarem uma nova ordem mundial - o que fatalmente acontecerá, seja para melhor ou para pior -; falamos de um pilar de uma ordem que, a bem da verdade, não nos parece muito favorável, tampouco para o desenvolvimento da humanidade. Sim, o Brasil deve ser cauteloso, mas isso não se confunde com deixar de tomar posições mais claras e assertivas em apoio àqueles manifestantes que estão testemunhando com seus próprios corpos suas convicções libertárias.

Atualização das 00:03: Como o Guilhermé nos lembra lá embaixo, o Brasil recentemente reconheceu o Estado Palestino, um ato ímpar de grandeza e coragem que provocou um efeito dominó no continente - gerando reconhecimentos vários, inclusive do governado conservador do Chile -; não me venham dizer que isso não é uma declaração delicada, porque ela é - na mesma intensidade que é justa. Isso só torna mais incompreensível ainda uma posição mais clara no caso magrebino.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

O Bom Encontro de Guattari com Lula

Lula e Guattari em Setembro de 82

Félix Guattari é certamente uma das figuras mais injustiçadas da história da Filosofia, um caso comparável apenas ao de um Engels, cuja importância no desenvolvimento das linhas  gerais do Materialismo Histórico é posta frequentemente em segundo plano ou mesmo esquecida pelas pessoas - não, Marx não teria conseguido, a despeito de toda sua genialidade, arcar sozinho com aquela empreitada. Grande parte do projeto filosófico de Deleuze, notadamente o seu Capitalismo e Esquizofrenia (dividido em dois tomos, o Anti-Édipo e Mil Platôs), não teria sido possível sem a parceria com Guattari e a experiência que ele trouxe da psicanálise - esquecer-se dele, portanto, é uma indignidade em relação a ambos. 

Diferentemente de Deleuze, cuja saúde frágil o impedia de se viajar com frequência,  Guattari cruzava o mundo com seu pensamento vivo e original, atuando em defesa de causas que iam desde a questão palestina até a defesa aos movimentos operaístas na Itália dos anos 70, passando, vejam só, pela luta em favor da redemocratização brasileira no fim dos anos 70 e início dos anos 80. Guattari amava o nosso país, onde esteve várias vezes, sendo uma dos mais importantes interlocutores junto à comunidade intelectual europeia do processo que substituiu a tecnocracia fardada por um regime no qual operários podem se tornar presidentes. 

Aqui, ele manteve contato com a esquerda libertária brasileira, oriundos dos novos movimentos sociais - as pastorais o novo sindicalismo - que refutavam o modelo dogmático dos antigos partidos marxistas-leninistas, uma multiplicidade de experiências que se aglutinaram, resultando no Partido dos Trabalhadores - partido em relação ao qual ele e a  esquerda libertária europeia nutriam profunda admiração. Existe um episódio curioso que data de Setembro de 1982, quando Guattari se encontra com Lula, então líder do recém-nascido PT, que estava às vésperas da disputa das eleições estaduais que poderiam mudar a face do país - como, de fato, mudaram -; eles conversaram sobre muita coisa, a esquerda, o dogmatismo, a conjuntura brasileira da época. A conversa foi organizada por Marco Aurélio Garcia e pela deleuzo-guattariana Suely Rolnik.


Existem pontos particularmente interessantes, o velho PMDB, a oposição consentida, e sua relação sempre complicada com o PT já estavam lá:




Félix Guattari - Le PMDB tente actuellement d’exercer un certain type de chantage sur le corps électoral, au travers de sa campagne dite du « vote utile », proclamant que le PT ne possède pas la maturité suffisante et que ses dirigeants n’ont pas la compétence réelle qui puisse justifier sa prétention de gérer les affaires du pays. Est-ce que ce type d’argument pourra avoir un impact sur l’opinion publique ?
Lula - Je crois que cet argument peut avoir un certain poids auprès de l’électorat. En premier lieu, parce que l’expérience de participation politique de notre peuple est encore très restreinte. Tout au long de notre vie, et ceci dès la proclamation de la République, nous avons été traités comme une masse de manœuvre. Le peuple a toujours été induit à penser qu’il n’existe pour lui aucune possibilité de s’auto-gouverner et qu’il est nécessaire que quelqu’un le dirige. En second lieu, du fait des préjugés de classe qui existent dans notre pays. De nombreux secteurs des classes moyennes, en particulier les couches élevées de ces classes, et l’ensemble de la bourgeoisie nationale considèrent que la capacité des personnes est mesurée par la quantité de diplômes, ou par l’accumulation de revenus qu’elles ont en banque, ou par leurs propriétés, leurs titres de commerce, etc. Un des grands rôles du PT est précisément de démystifier cette erreur historique, selon laquelle nous ne serions bons qu’à travailler. Et de faire la preuve que l’administration d’un État n’est pas une question technique, mais bel et bien politique.

Guattari pergunta a Lula sobre o argumento peemedebista, que à época insistia na tese de que o PT era imaturo e não tinha capacidade suficiente para arcar com o peso de governo o país - além do fantasma de que votar no PT e não no PMDB era favorecer a direita em termos práticos, algo que continuou até a campanha municipal onde Jânio derrotou FHC, anos mais tarde. Lula responde sobre o oportunismo eleitoral disso e lembra o mito que prevalecia no país que ligava quantidade de diplomas acadêmicos e renda com capacidade política, o que resultaria em termos práticos num preconceito de que o próprio povo seria incapaz de se autogovernar, acreditando em iluminados. É um bocado do que o próprio Lula passou mais de duas décadas tentando desmistificar - e cujo impacto do desmonte dessa falácia, certamente foi das grandes conquistas de seu Governo. A dificuldade da relação com o PMDB - e depois com o próprio PSDB - anos mais tarde, é um belo exemplo disso também. O momento atual em que petistas se aliam com peemedebistas para governar, criando crises de consciência na sua base, também já está desenhado aí, em potência.

Depois, eles falam sobre as Malvinas, um pouco de uma visão de política externa que anos mais tarde viria a ser uma das principais marcas do seu Governo, aqui, já vemos um pouco do que ficaria pronto anos mais tarde, uma posição inteligente que escapa às contradições (em termos) da esquerda quando se põe na luta contra o Imperialismo:


Félix Guattari - Quelle a été la position du PT durant la guerre des Malouines ?
Lula - Le PT s’est prononcé contre la démonstration de force de l’Angleterre, mais aussi contre la dictature des militaires argentins. Nous pensons, au PT, que le général Galtieri a tenté un « coup de maître » pour faire en sorte que le peuple argentin oublie ses problèmes internes : les 30 mille disparus, l’inflation de 150%, etc. Résultat : cela n’a rien résolu au plan interne et l’Argentine sort complètement démoralisée de cette question. Le plus grave, dans tout cela, c’est que les vies humaines perdues ne seront jamais retrouvées. De toutes façons, cette guerre a rendu parfaitement clair ceci : les pays développés vont toujours se soutenir entre eux, au lieu d’être solidaires avec les pays sous-développés. Un bon exemple en a été les États-Unis qui, bien qu’ils soient les plus grands créanciers de l’Argentine, n’ont pas hésité à abandonner ce pays pour soutenir l’Angleterre.
Félix Guattari - Tu approuves le mot d’ordre : « Les Malouines sont argentines » ?
Lula - Cette question a été beaucoup débattue au sein du PT. Nous l’avons discutée pendant une journée entière. Ma position est que les Malouines appartiennent à l’Argentine.


E depois, Lula pergunta a Guattari, invertendo o sentido da entrevista, sobre o Governo socialista na França:

Lula - À mon tour, j’aimerais connaître ton point de vue sur la politique actuelle du Parti Socialiste Français. Est-ce qu’il met en pratique ce qu’il proposait avant les élections ?
Félix Guattari - Commençons par la politique internationale. François Mitterrand a affirmé la volonté de la France - en particulier à Cancaun - de ne pas laisser le champ libre à la politique impérialiste américaine dans le Tiers Monde. Mais cela ne l’a pas empêché de fournir son appui à Margaret Thatcher et à Reagan dans la question des Malouines ! D’un autre côté, les socialistes français affirment, de vive voix, leur solidarité à la résistance du peuple polonais. Mais il ne veulent pas toucher à la question du commerce avec l’URSS par exemple. Les affaires sont les affaires ! Après un cheminement sinueux, ambigu, en relation avec la politique d’Israël, la France a décidé de fournir une certaine aide aux peuples martyrs du Liban et de la Palestine. Il me semble que nous sommes toujours dans un mouvement oscillant. Dans certaines régions du monde, comme l’Afrique, la politique française apparaît encore moins évidente. Il est vrai qu’il est plus facile pour la France d’être anti-impérialiste en Amérique Latine qu’en Afrique !
Lula - Pourquoi plus facile ?
Félix Guattari - Parce qu’en Afrique, le gouvernement socialiste se doit de se confronter à la gestion de tout un héritage néo-colonialiste. Malgré cela, je crois qu’il y a, même ainsi, certains aspects positifs dans la politique internationale de la France. Par exemple, la dénonciation opérée par Jack Lang, ministre français de la culture, au Mexique, devant l’UNESCO, des pratiques nord-américaines en matière d’ « exportations culturelles », surtout dans le domaine de la télévision et du cinéma. Son idée d’une coopération d’un type nouveau entre les différentes composantes de ce qu’il appelle les cultures latines pourrait être, également, intéressant. Donc, tout n’est pas négatif sur ce plan, loin de là !
D’un autre côté, ce qui me paraît beaucoup plus mal engagé est la politique intérieure. Après une période qu’on pourrait qualifier d’ « état de grâce », parce qu’elle a été vécue comme une surprise et dans l’attente de grands changements, avec des mesures de revalorisation du niveau de vie des catégories les plus désavantagées, et, surtout, des mesures pour la sauvegarde des libertés (suppression des tribunaux d’exception, libération des prisonniers politiques, abolition de la peine de mort, etc.), le gouvernement s’est peu à peu embourbé dans la crise : il se débat avec l’inflation qu’il n’arrive pas à juguler, avec le chômage, la fuite des capitaux, la paralysie des investissements, la chute des exportations, etc. Et il en vient progressivement à gouverner le pays comme l’aurait fait un gouvernement conservateur. Le fond de la question, c’est que le Parti Socialiste n’a pas une véritable politique de transformation sociale. Il se préoccupe du jour le jour et se comporte, chaque fois plus, comme un parti classique. Je t’ai interrogé, tout à l’heure, sur les statuts du PT, trop formels, trop rigides à mon goût. Mais le PS, c’est encore autre chose ! Ce ne sont pas seulement les statuts qui sont sclérosés ! Au PT, vous essayez, au minimum, de poser la question du respect de l’autonomie des diverses composantes sociales et minoritaires, qui s’associent à l’action du Parti. Sans aucun doute, il y a toujours des problèmes ! Sois tranquille, je n’idéalise pas le PT. Mais en France, cette question ne se pose pas, ou n’apparaît qu’en période électorale, quand il s’agit de gagner des votes. Je sais que la question des minorités et des marginalités se pose, au Brésil, en termes bien différents et à une échelle beaucoup plus vaste, à tel point que tous les partis se confrontent à ce problème. Mais en France il existe aussi des phénomènes de marginalisation sociale, de minoration subjective, qui concernent des groupes chaque fois plus nombreux et catégories sociales chaque fois plus larges. Face à ces questions, qui sont, en réalité, au centre de la crise, la société française sommeille dans un conformisme frileux et rêve d’une gloire passée. Dans les derniers temps, les provocations terroristes ont servi de prétexte pour la reprise d’un thème éculé : « la sécurité avant tout », et on parle à nouveau de « réseau de contrôle informatisé » de la société, dans le style de l’Allemagne occidentale. Je sais très bien qu’on ne peut pas tout attendre d’un parti, et que nous pouvons imputer l’impasse actuelle, dans une large mesure, aux incidences internationales de la crise. Mais tout est lié, et on ne peut pas indéfiniment diluer les responsabilités d’un parti qui ne répond pas aux aspirations de changement, au nom desquelles il a été élu. Si les socialistes ne se décident pas à modifier leur propre mode de fonctionnement en tant que parti au pouvoir, leur conception de l’intervention dans le champ social - ou, plus encore, leur absence évidente d’une quelconque perspective concrète dans ce champ -, alors il est clair qu’un affaissement, une perte irréversible de confiance finira par s’instaurer avec la majorité de ceux qui les ont portés au pouvoir. Et la France retombera, une fois de plus, dans les mains des pires bandes de réactionnaires. Malgré les différences de contexte, toujours considérables, et d’ailleurs évidentes, je crois que certains problèmes sociaux tendent, chaque fois plus, à traverser les pays et même les continents. Pour moi, « Solidarnosc » en Pologne, le PT au Brésil, sont des espèces d’expérience à grande échelle qui tentent d’inventer de nouveaux outils de compréhension et de lutte collective et même une nouvelle sensibilité et une nouvelle logique politique et micro-politique. Les conquêtes et les échecs de ces expériences ne concernent pas que la Pologne ou le Brésil, mais aussi tous ceux qui, dans des conditions différentes, se confrontent aux mêmes types d’impasses d’organisations bureaucratiques sclérosées. En réalité, ceci survient sur toute la surface de la planète et à tous les niveaux sociaux et individuels, à commencer par le niveau immédiat du langage. J’ai été littéralement fasciné par la lecture d’un recueil de tes entretiens et de tes discours [10], par ta liberté de ton, par ta manière, par exemple, de parler de Gandhi, de Mao, de Castro ou d’Hitler, sans aucune des précautions habituelles, sans clichés, et même en s’aventurant, d’une manière pour ainsi dire « imprudente » dans des considérations intempestives. Tu n’as pas l’air de te rendre compte que, quelques fois, tes propositions pourraient être utilisées contre toi, tu sembles avoir confiance a priori dans la bonne foi de tes interlocuteurs.


Guattari coloca sua insatisfação com a esquerda que chega ao poder, conquista avanços, mas tropeça em suas contradições, na reprodução inercial de parte da política tradicional - sobretudo pela manutenção das políticas dos governos de direita na antiga África colonial africana - algo que iria se acentuar anos mais tarde, consistindo, certamente no meio pecado do governo Mitterrand. De certa forma, o que Guattari fala prenuncia muitos dos tropeços do PT quando se torna Governo, mas não todos: O PT, pela sua singularidade enquanto partido de esquerda vindo de bases vivas da sociedade civil, conseguiu ser inventivo no poder, apesar de certos erros; embora corra o risco de perder isso, é fato que ele não perdeu no Governo Lula, apesar das agruras do exercício real do Poder no comando do Estado. Mas é um risco que acena. Por outro lado, sua análise sobre o PS francês é decisiva: Ela alude a um processo que se acentua nos anos que se seguem e hoje nos mostram uma esquerda parlamentar paralisada e distante da sociedade na França.

Lula perderia feio aquela eleição estadual em São Paulo, vencida por Montoro, fato que quase resultou no fim do PT, mas acabou sendo o divisor de águas da história do Partido, com o épico manifesto dos 113, o documento de refundação do partido. Vinte anos depois dessa conversa, ele se elegeu presidente hoje considerado o mais popular da nossa história. Guattari faleceu dez anos mais tarde. Em sua lápide, em Père Lachaise, está inscrito um epitáfio que nada mais é do que um excerto de Ausência do nosso Drummond, segundo fiquei sabendo pelos meus amigos Murilo Corrêa e Laura Farina que, em recente viagem, toparam, por um acaso (se é que os bons encontros acontecem por acaso), com a morada final do velho mestre e eis que lá estava grafado:  Il n'y a pas de manque dans l'absence. L'absence est une présence en moi -- não há falta na ausência, a ausência é um estar em mim.