Condolezza e Kadafi: A reabilitação (AFP) |
Desde que esse processo revolucionário multitudinário tomou conta do Mundo Árabe com a Revolução dos Jasmins, insistimos por aqui que se referir aos atuais acontecimentos como fruto de mera degradação na condição de vida das pessoas, quem sabe uma consequência direta dos efeitos da Crise Mundial, trata-se de um equívoco fortíssimo. Não, nem a Tunísia, tampouco os países afetados pelo efeito dominó, são os mais pobres, desiguais ou politicamente opressivos do continente africano ou do mundo, embora eles sejam pobres, desiguais e opressivos. Antes de mais nada, é preciso ponderar o que disparou essa fantástica explosão do desejo e entender como ele interferiu no campo social - enfim, uma economia política formalista, incapaz de considerar o desejo, jamais será capaz de produzir uma análise precisa da questão. O fato é que mesmo que a Crise Mundial tenha agravado as condições de vida da região, fatores demográficos - que propiciam uma enorme quantidade de jovens naqueles países, por exemplo - e políticos - a irrupção, finalmente, de um modelo de militância capaz de fazer multidão, alternativo ao enferrujado nacionalismo árabe ou ao fundamentalismo islâmico e suas ambiguidades - conseguiram reverter um quadro que, há pouco menos de um ano, era de mais perfeita servidão. A Bola da vez é a Líbia: País com as melhores taxas de qualidade de vida da África - iguais aos dos melhores países latino-americanos -, onde o extremismo religioso amarga a insignificância e, em relação ao qual os analistas internacionais supunham que jamais seria afetada pelas circunstâncias, agora se vê diante de uma revolução que vem a se unir com a multiplicidade de revoluções do continente. A tirania local, sob o comando do controverso Coronel Kadafi - ou Gaddafi, dependendo da transliteração -, é uma mistura do socialismo autoritário do Leste Europeu em moldes árabes com um bocado do nacionalismo nasserista e boas doses de histrionices que, neste exato momento, tem protagonizado a mais dura reação vista em relação à Revolução Árabe até o presente momento - ao mesmo tempo em que desmistifica a lenda da viabilidade da "boa ditadura", o regime opressivo que produz boas "condições objetivas" de vida. Se a História nos ensina que nenhuma forma de socialismo autoritário é sustentável - se é que podemos considera-las como um socialismo, haja vista que não são os trabalhadores que controlam os meios de produção nelas -, o caso em questão suscita reforça a natureza libertária do processo em curso: Embora a Ditadura de Kadafi tenha sido reabilitada pelo Ocidente - seja por ter aderido à Guerra ao Terror americana ou à repressão à imigração no Mediterrâneo ao lado dos europeus -, a revolta contra sua autocracia reforça que os árabes não estão mais dispostos a tolerarem nem o Imperialismo, nem as degenerações autoritárias "contra-hegemônicas" que surgiram em sua decorrência - reconciliadas ou não com o Ocidente. Se a situação de submissão real daqueles países no sistema internacional não será mais tolerada, também não há espaço para um novo Nasser (muito menos para um novo Sadat) naqueles países, o que é maravilhoso. Aqui, no entanto, o desafio dos revolucionários é enorme pela violência da repressão. Seja como for, nada será como antes e é isso que importa.
Duas colocações:
ResponderExcluirA crise do capital e a seguir a crise neo-liberal é sim uma das causas da revolução em Tumís.O que não significa ser a unica.No Egito vimos que a revolução foi mais além da crise economica passando para o setor politico e agora Líbia isso ficou claro.
Também não concordo que o regime da Líbia ainda tenha elementos dos socialismo real do leste.O que pode ter é pecularidades do socialismo local e nada mais.
"a revolta contra sua autocracia reforça que os árabes não estão mais dispostos a tolerarem nem o Imperialismo, nem as degenerações autoritárias "contra-hegemônicas" que surgiram em sua decorrência - reconciliadas ou não ao Ocidente."
ResponderExcluirImportantíssimo detalhe que você considerou bem no texto. De fato, os jasmins estão quebrando dicotomias e verdades impostas. E nada mais será como antes, espero que um jardim todo floresça.
Abraços!
A Líbia era 'socialista' apenas para dizer em qual lado estava durante a Guerra Fria.
ResponderExcluirSalve, Hugo,
ResponderExcluirConciso e preciso, mestre Hugo.
Podemos republicá-lo com os créditos no Portal Outras Palavras?
A propósito, "O Descurvo" está em CC? qual licença?
Abraços!
AF Sturt,
ResponderExcluirEu discordo de alguns pontos da sua análise, em primeiro momento, não é uma crise do chamado "neoliberalismo", mas sim do Capitalismo mesmo, só que uma crise econômica não é causa necessária para uma Revolução, se uma coisa eu aprendi com a filosofia pós-estruturalista é que a disfuncionalidade do sistema capitalista é da sua própria natureza, ele não desencadeia, por si só, um processo revolucionário. Sobre o regime líbio, sim, ele é bastante...singular mesmo, mas seu ethos não é diferente do socialismo burocrático do Leste Europeu - e Ásia também -, o exercício do poder político nas salas fechadas da burocracia e o coroamento do bolo com um líder onipresente e cultuado, além claro, do Estado policial são semelhanças grandes.
abraço
Obrigado, Dandi.
ResponderExcluirAbraço
Luis, Então, socialista naquele sentido burocrático e opressivo, ela foi sim por um tempo, até que veio a globalização e ela se tornou cada vez mais parecida com um Capitalismo de Estado - nada muito diferente da China, guardadas as enormes peculiaridades de cada um. Um socialismo-libertário - ou, quem sabe, um socialismo verdadeiro - ela nunca foi mesmo.
ResponderExcluirabraço
Bruno, mestre aqui é você, eu sou só um coitado - e, claro que pode publicar lá no Outras Palavras o que você quiser (a única coisa que eu peço é um link para cá e a conservação de todos os links originais). Sobre o CC, eu tenho de coloca-lo aqui, sempre fui tão desencanado dessa coisa de direitos autorais que até esqueci de coloca-lo aqui, falha minha mesmo.
ResponderExcluirabraços
Salve, valeu! foi publicado com mínimos ajustes (favor retificar se preciso), em:
ResponderExcluirhttp://ponto.outraspalavras.net/2011/02/23/libia-revolucao-alem-da-crise/
Abraço!
Perfeito, Bruno.
ResponderExcluirabraço
Mas então Hugo, qual é a sua espectativa do novo surgir com as revoluções árabes contemporâneas?
ResponderExcluirE mais - pelo o que eu sei de História, o que trouxe Gaddafi ao poder foi um golpe de estado que derrubou a monarquia, não uma revolução popular. Estou certo?
Luis, o novo já surgiu como podemos ver: Os magrebinos se levantaram contra os regimes tirânicos locais de modo inquestionável e intenso, acho que não é questão de pensarmos no "futuro revolução", mas sim no devir revolucionario como o Bruno nos lembra no trecho de um post seu linkado no "nada será como antes" do meu post: "Por tudo isso, o filósofo Gilles Deleuze advertia em não confundir o futuro da revolução com o devir revolucionário. Pouco importa o futuro, pois a verdadeira metamorfose se dá e já se deu. A percepção mudou. Nenhuma revolução genuína discute o futuro, mas sim o recomeço aqui e agora. Quando passa a discutir o futuro, se fecha como constituinte, e cede a vez aos usurpadores que governarão em seu nome."
ResponderExcluirSobre Kadafi - ou qualquer transliteração que o valha -, sim, ele é de uma geração de militares que se levantou contra as monarquias locais, embora tivesse forte apoio popular, isso se deu por um processo de aclamação, não por um processo que contasse com a participação direta e ativa das pessoas como agora - que, aliás, trata-se de uma revolução profundamente não-personalista.
abraços