Ibn Tulun -- um das mesquitas mais antigas do Cairo |
Muito se discute acerca da relação entre religião e a Revolução que se desdobrou pelo mundo árabe ao longo de Janeiro e, não raro, surgem certas indagações curiosas: Acaso não seria um marcha de fundamentalistas? Qual o risco disso não resultar em um novo Irã? Ainda que essas preocupações sejam, isoladamente, legítimas, elas têm sido usadas - justamente pela sua legitimidade - para falsear questões importantes sobre o que realmente se passa, o primeiro item nesse sentido, sem dúvida, é esconder os reais motivos da participação do Ocidente na sustentação de todos aqueles regimes nefastos (ou quem sabe, atenuar tal participação), o segundo, para lançar sombras sobre a legitimidade daquele grande movimento revolucionário - o que, em último caso, é uma apologia cínica à situação existente até Dezembro -, o terceiro, a própria função da religião nesse processo de neocolonização. Sim, várias ditaduras pelo Norte da África e Oriente Médio são máscaras do Ocidente civilizado e sofisticado e isso não tem nada a ver com religião - com Islã decadente que eles encontraram nos fins do século 19º certamente não era -, mas sim com petróleo e, num segundo momento, o movimento não menos importante de exercer domínio estratégico para afirmar a disseminação de sua cultura - logo, sua economia - e esse movimento, naturalmente, é anterior ao fundamentalismo islâmico: É da destruição de uma esquerda secular árabe e persa que surge esse fenômeno, desde sua eliminação física até o fato de toda uma geração ter sido empurrada para as mesquitas (onde, supunha-se, tornariam-se inofensivos e submissos). Um plano curioso, sem dúvida: Promover a exploração dos recursos naturais e sociais de toda uma região com regimes linhas duras que deveriam, por sua vez, deixar as portas abertas às inovações do Ocidente e, como movimento subsidiário, deixar as populações marginalizadas no suposto atraso da religião, onde se tornariam ovelhinhas crentes ou, em uma segunda situação, atores políticos deslegitimáveis, mas inofensivos quanto à ameaça à ordem. Os nacionalistas e socialistas eram mortos ou presos, os jovens iam para as mesquitas e, quando surgiam movimentos islamizados, alguém dizia em tom professoral até bem pouco, "sim, são regimes austeros, mas existe o risco do fundamentalismo" - como se os ocidentais não tivessem responsabilidade sobre isso e como se tudo que viesse daquela religião se confundisse com violência. O Islã dentro do contexto do novo imperialismo que se seguiu à Segunda Guerra precisava cumprir uma função neutralizante das camadas plebeias, mas, caso se tornasse um mecanismo de luta, ele próprio seria rotulado de forma a ser neutralizado (como foi) - em outras palavras, o Islamismo do Mundo muçulmano dos fins do século 19º é uma espécie de novo arcaísmo criado pelo mesmo Capitalismo que esquizofreniza aquelas sociedades; ele não é uma volta ao antigo, mas sim o uso de um antigo à serviço do atual, uma espécie de reterritorialização - um mecanismo subsidiário à atuação da axiomática da máquina capitalista junto àquelas sociedades, o qual ele pode prescindir, mas não nessas condições históricas determinadas. Não, o Islã - e nenhuma outra religião, nem na sua variante mais opressiva -, é inimiga da ordem capitalista na medida em que são instrumentalizados em prol de uma ordem econômica e social que pouco tem a ver com aquela na qual surgiram - e a expansão do número de muçulmanos nos últimos cem anos nos parece uma evidência razoável disso - ao mesmo tempo em que se tonaram fantasmas na medida em que, em seu interior, engendram movimentos em seu interior que se não são necessariamente inimigos do Capitalismo, ameaçam a ordem posta. Por outro lado, as próprias revoltas vistas recentemente passam ao largo de um movimento deflagrado de dentro das mesquitas para as praças públicas: Trata-se de uma irrupção revolucionária que mobilizou diversos setores daquelas sociedades, revoltados que podem ser muçulmanos, mas que não o são exclusivamente por o serem, engolfando assim até mesmo seus movimentos de reivindicação muçulmanos: Isso coloca em xeque desde a elite local até ao Ocidente. Isso equivale a um movimento que é transversal entre a luta por uma democracia e direitos e a luta contra a opressão imperialista - afinal, uma coisa está junto da outra naquele contexto - formado por intensa mobilização multitudinária, o que é um golpe bastante duro na prática e no discurso do poder - mas não baixemos a guarda, sua propriedade é, justamente, se rearticular.
P.S.: Vale a pena ler o que Noam Chomsky e Slavoj Zizek escreveram sobre a Revolução Árabe. Concorde-se ou não com eles, não resta dúvida que são intelectuais de relevo e polemistas necessários na cena atual.
Atualização de 05/02 às 18:17: O Tsavkko escreveu a respeito do assunto deste post para o Amálgama. Sobre a violência no Cairo nos últimos dias, vale a pena ler este relato impressionante de Robert Fisk traduzido no Outras Palavras.
P.S.: Vale a pena ler o que Noam Chomsky e Slavoj Zizek escreveram sobre a Revolução Árabe. Concorde-se ou não com eles, não resta dúvida que são intelectuais de relevo e polemistas necessários na cena atual.
Atualização de 05/02 às 18:17: O Tsavkko escreveu a respeito do assunto deste post para o Amálgama. Sobre a violência no Cairo nos últimos dias, vale a pena ler este relato impressionante de Robert Fisk traduzido no Outras Palavras.
Hugo,
ResponderExcluirAcredito que o islamismo será uma força mundial cada vez maior e mais influiente ao longo deste século, quer o Ocidente queira quer não, e o desenrolar dos acontecimentos no Egito pode antecipar e ampliar isso.
Por que eu acredito nisso? Porque o islã é a religião que mais cresce no mundo e conta com mais de um bilhão de seguidores. Será o próprio capitalismo que criará demanda para um mercado mundial de bens culturais da _ e para _ as culturas árabes e/ou muçulmanas. Claro que tudo vai depender do quão vigoroso e rápido poderá ser o desenvolvimento econômico e social nos países muçulmanos, mas, mais cedo ou tarde, isso vai acabar acontecendo. Uma população tão grande assim, com tamanhas potencialidades, não permanecerá reprimida por muito tempo. O levante já começou.
Eu só resisto ainda em chamar o que acontece no Egito de revolução. A queda do governo Mubarak e reconstrução de todo o modelo político no Egito, com uma nova orientação, pautada nos interesses do povo do Egito seria uma "revolução". Mas mesmo que o atual governo caia, o que é mais desejado que certo, nada garante que mudanças profundas aconteçam. A expectativa é esta, mas é preciso esperar para ver.
Abração!
Edu,
ResponderExcluirDe certa maneira, neste exato momento já não existe nenhuma oposição entre a existência do Capitalismo e o próprio crescimento da religião islâmica - talvez nunca tenha havido. Mas dentro dessas condições determinadas, cumprindo essa função, se é possível que essa relação se dê em outras condições, eu também não duvido, isso é uma propriedade deste sistema. O que de certa maneira é tolhido trata-se de uma certa tradição que vem do islamismo, mas não se reduz ao credo - em suma, de algo que vem da cultura islâmica e não apenas da religião - que pode marcar uma severa e radical crítica à ordem mundial, tanto no seu aspecto político quanto, até mesmo, econômico, mas esse processo revolucionário, é importante ressaltar, não passa tanto por dentro disso, ou melhor, passa tanto quanto a redemocratização brasileira passou por dentro do catolicismo - embora o clero e, sobretudo, os movimentos eclesiais de base tenha tido sua importância -, ele é a afirmação da vida de sociedades jovens e com um enorme potencial e que não são, veja só, integralmente embebidas de religião e que, aliás, estão se distanciando mais dela. Há um potencial emancipatório muito maior do que se pensa nessa história toda, embora, a história das revoluções seja uma história, não raro, triste e marcado pelo imprevisível. Aqui não é diferente.
abraço
Hugo,
ResponderExcluirPois então que a história desta revolução não seja triste, por mais imprevisível que seja. : )
Hugo, escrevi sobre o Islamismo e a visão preconceituosa que se tem - islamofobia - para o Amálgama1=)
ResponderExcluirA confusão da religião com práticas dos que usam a religião como propaganda - http://www.amalgama.blog.br/02/2011/quando-confunde-se-religiao-com-praticas/
Edu,
ResponderExcluirA Revolução é amedrontadora enquanto decorre - ao mesmo tempo em que a esperança de dias melhores caminha junto, passo a passo -, mas seu resultado ao longo da História, geralmente, foi triste sim. A imprevisibilidade que as envolve, expressão de sua potência enormíssima é o que justifica esse medo, mas também nos dá esperanças (sim, eu fui pessimista demais na minha última fala) - é o contingente com o qual estamos frente a frente ao longo da História e isso é o que me anima agora; por mais que a experiência seja sempre cheia de senões, eu penso com carinho no momento atual, talvez só resmungue demais.
abraço
Tsavkko,
ResponderExcluirÉ verdade, vou linkar ao post.
abraço
A dona Clinton fez um discurso que revela a sustentação desses regimes pelos EUA. 'Preocupação' foi a palavra-chave.
ResponderExcluirSim, Luis, preocupação - e o que é pior: Em relação ao que eles mesmo criam. É quase como a política social de direita que corta verbas para a educação, para a saúde e flexibiliza a legislação trabalhista e, depois, diante do aumento de roubos e homicídios aprova leis para justificarem o vigilantismo. O funcionamento do Departamento de Estado americano sempre foi esse pandemônio, mas a gestão Hillary se superou e conseguiu substituir à altura os republicanos da era Bush.
ResponderExcluirabraço
Para melhor compreender o que se passa no mundo árabe-islâmico, ver o ótimo filme de Marwan Ahmed, Edifício Yacoubian, de 2006.
ResponderExcluirApontar para o Ocidente como culpado exclusivo do conveniente arcaísmo das sociedades islâmicas, é um tanto simplista. Palavras de um dos mais importantes ideólogos do islamismo radical, o egípcio Sayyid Qutb (1906-1966).
"Não nos devemos deixar iludir pela aparentemente dura e amarga luta entre os campos oriental [socialismo-comunista] e ocidental [democracia capitalista liberal]. Nenhum deles tem mais do que uma filosofia materialista da vida e no seu pensamento estão bastante próximos [...] não há diferença entre os seus
princípios e as sua filosofias; a única diferença está nos seus métodosmundanos e nos seus mercados lucrativos. Nós somos os seus mercados! A verdadeira luta é entre o Islão, por um lado, e os campos combinados do Oriente [ex-União Soviética e seus aliados] e do Ocidente [EUA e seus aliados], por outro lado. O Islão é o verdadeiro poder que se opõe à força da filosofia materialista professada igualmente pela Europa, América e Rússia."
Anônimo, isso não é uma questão de culpa - algo tão preso à escolástica e ao catolicismo, não? - e também tem pouco a ver com o Ocidente: Eu diria que a ascensão do Islamismo, no termos nos quais ele se estrutura hoje em dia, é uma das decorrências da extrema complexidade da dinâmica capitalista. É bom lembrar que a despeito dessa fala de Qutb, a ampla maioria dos países muçulmanos é, à sua maneira, capitalista - e algo parecido pode ser dito a respeito do fundamentalismo cristão nos EUA. Julgar como simplista essa relação é se sujeitar a uma espécie de otimismo progressista kantiano - uma dos eixos do pensamento hegemônico no Ocidente, bem longe, aliás, de qualquer doutrina materialista; muito mais do que a concepção de culpa ao tratar de uma questão que não é moral, a perspectiva linear (e para melhor) de História, o que isentaria o Ocidente de"culpa", se estutura indiscutivelmente como instrumento da Teologia.
ResponderExcluirabraços