segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Poder Constituído: a Pacificação como expropriação ontológica ou expropriação primeira

Goya: Três de Maio de 1808 em Madrid
Fala apresentada no seminário Democracia e Regimes de Pacificação, no dia 25-11-2013, na PUC Rio.


A pacificação é como uma mercadoria. Mas não qualquer espécie de mercadoria: ela é daquelas que serve de meio necessário para uma outra. Por exemplo, a pacificação está para os megaeventos como o abridor de latas está para os enlatados: ela é até historicamente posterior a concepção do segundo elemento, mas lhe é logicamente anterior e absolutamente necessário como instrumento viabilizador.  


A pacificação, é verdade, torna-se no Rio algo especial porque há toda uma estratégia de branding em torno de si. Tanto que o termo está naturalizado no falar cotidiano. No resto do país, as mesmas táticas e estratégias de pacificação são conhecidas, embora a marca não seja propriamente trabalhada. Mas, reitero, ela está lá.


A história não desconhece a pacificação, aliás, longe disso, ela é, no mínimo, um episódio recorrente na práticas do Império Romano -- tanto quanto no Império Global que nos cerca. A diferença é que a pacificação de hoje, pelo menos desde o moderno, foi entificada: ela é, desde o moderno, coisa e não relação ou processo.

O presente seminário, pois, nos impõe uma questão urgentíssima: o que seria, e se seria possível, a paz verdadeira? A modernidade, não nos esqueçamos, nasceu sob os auspícios de uma ideia curiosa: a nova ordem política seria um mal necessário para o fim da violência em relação à qual estaríamos, por natureza, submetidos. Seu objetivo seria a pacificação. Precisaríamos, para tanto, combater a violência imprevisível e irracional com violência organizada, regulada e racionalizada na forma do aparato estatal. É Hobbes, é o Leviatã.


Como podemos depreender de Giorgio Agamben em A Comunidade que Vem, essa noção remete a uma fantasia teológica, segundo a qual a perfeição ordena-se não pelo não cometimento do pecado ou do delito, mas sim que o “perfeito se tinha apropriado de toda a possibilidade do mal e da impropriedade e não podia, por isso, fazer o mal”.


As novas questões que surgem são: a ação de um Estado que, por meio de sua polícia, realiza a paz armada da ocupação é, de fato, uma pacificação e, se for, seria a única possível? Pois bem, a violência dos aparatos de Estado produziu, da publicação do Leviatã em 1651 até os dias atuais, os maiores morticínios que a história da humanidade registrou. Do mesmo modo, o sistema repressivo, o tridente policial-judicial-prisional, é, hoje, quase tão onipresente quanto o deus bíblico.


Segundo a metafísica moderna autorizada, essa passagem entre o estado de natureza e o estado social se daria mediante a adoção, entre os homens, de um contrato. E o contrato não é senão o meio universal pelo qual a burguesia, desde sempre, resolve seus problemas. A natureza em Hobbes, essa estado pavoroso que precisa a todo custo ser superado, é um espaço negativo; mas o devir social do homem, dado pelo contrato, só é possível sob a linguagem contratual burguesa.
Desse ponto de vista, não é que para Hobbes -- e também para os demais contratualistas, embora de forma atenuada -- o homem tenha inventado essa prodígio que é a civilização, a qual em troca de sacrifícios necessários nos garante a paz que não tínhamos na vida selvagem.


Na verdade, o que está em discussão é que tal estado de natureza remete a uma natureza desnaturada do homem, isto é, a metafísica hobbesiana inventou uma natureza natural -- negativíssima --, separando o homem do meio-ambiente e de sua própria condição comum. Tal movimento, gera uma divisão binária entre natureza e sociedade e, sim, expropria o si mesmo do homem, tornando-o irremediavelmente incompleto.
Enfim, é no campo de uma filosofia primeira que se desenham os conceitos que servirão, tão logo, à expropriação das propriedades comunais na Europa. Não queremos a natureza, não podemos deseja-la, porque a sua violência virtual indomável justifica as violências reais e racionais. A violência organizada, cada vez mais voltada para o interior dos súditos, criaria um cenário de intimidação geral, segundo o qual a paz se estabeleceria de fora para dentro.


Essa forma de disciplina se dá, anote-se, cada vez menos por meios físicos para dar lugar ao domínio afetivo-psicológico -- que só irá avançar desde então. O que não quer dizer que essa forma de domínio não precise de violência física, mas o faz como instrumento de uma verdade discursiva e simbólica, o que é até pior do que era: quando matam realmente um, matam simbolicamente nós todos, introjetando a ideia de morte no inconsciente coletivo.


O pensamento hobbesiano cria uma tradição poderosa, que perpassará Rousseau, Kant e mesmo Locke para, enfim, desaguar em fenômeno histórico-político: e isso acontece quando a burguesia golpeia a revolução francesa, em seus desdobramentos internos e internacionais, para tomar para si o lugar que antes era da nobreza.


A burguesia, que solapou a revolução feita por camponeses, mulheres, artesãos e o baixo clero, tinha um interesse mais até do que metafísico no hobbesianismo, uma vez que seu discurso encaixa como uma luva naquele momento histórico: o estado de natureza remeteria à turbulência da revolução, origem mitificada da nova ordem, mediante o qual, para o bem geral, os cidadãos precisariam abrir mão da liberdade ímpar que dispuseram naquele momento, na forma da nova ordem.


Isso legitimou a fala ambivalente da burguesia, aquele que a permitiu  defender a resistência contra o regime antigo enquanto, no mesmo discurso, criminalizava a resistência contra a velha opressão do regime novo. Esse duplipensar irá mais tarde se repetir em outras revoluções, mesmo as socialistas, como bem expôs com brilhantismo Orwell na Revolução dos Bichos: mudam-se os atores, talvez também o figurino, mas encena-se a mesma peça com os mesmos personagens.


Antonio Negri, em seu clássico Poder Constituinte, nos lembra as palavras de Napoleão Bonaparte, que declarava o fim da revolução em razão da edificação da constituição. E Negri, mais do que isso, nos lembra que contemporaneamente ao início da construção da modernidade tradicional, uma outra modernidade, maldita, na tradição de Maquiavel, Spinoza e Marx, nos permite pensar um outro mundo.


Assentado na metafísica spinozana, Negri ataca o binarismo tradicional entre Poder Constituinte e Poder Constituído, o qual tenta esvaziar o conteúdo da revolução, reduzindo-a ao papel de mero mito fundador de uma nova ordem: o Poder Constituído é farsa histórica, que tenta apropriar-se do discurso jurídico comum da multidão em sua luta permanente na geração e garantia de direitos. O Poder Constituinte não se encerra, ele é fluxo, enquanto o Poder Constituído é barragem.


A nova ordem já nasceu muito velha, justamente por ser a mesma ordem, só que com novos donos. Ironias do destino, o que se passa na Europa dos fins do século 18º não é nada diferente dos rumos da revolução russa, pouco mais de um século mais tarde.Não poderia ser diferente, a natureza em Spinoza não é uma generalidade negativa na qual são reduzidas as multiplicidades -- como não-humanidades, não-civilizações --, mas potência que funda e anima a vida.


No Brasil de hoje, existe uma continuação descontinuada de uma larga tradição de opressão que não é estranha a um país de origem colonial. A mesma polícia surgida para eliminar legalmente quilombos e formas de resistência social é aquela que, por seu turno, opera hoje enquanto função policial -- que não se restringe as meras instituições policiais, mas ocupa um vasto cenário que operacionaliza até nós mesmo.  


Violência dos homens de bem em prol da paz social e da obra. A paz dos totalitarismo jamais foi paz de fato: é a paz dos cemitérios, dos mortos e dos intimidados. Uma paz que se pode só pode ser tomada como tal na medida em que naturalizamos a violência policial enquanto, no mesmo movimento, desnaturalizamos os homens mortos, torturados e feridos.


Mas a paz armada da pós-modernidade, embora contígua em relação ao espírito da paz tradicional do moderno, nos apresenta um novo regime afetivo: não vivemos mais às custas do par medo-esperança, mas sim de outro par, qual seja, desespero-segurança.


Antes, éramos impelidos para o futuro, o que nos exigia resignação presente, seja pelo temor das punições aplicáveis ou pelo ânimo com um bem comum que virá apenas amanhã, na forma de utopia.


Hoje, continuamos deslocados no futuro, mas não temos mais nada a esperar; Godot, segundo nos contaram no telejornal, não virá mais, logo, o desespero é a palavra de ordem e a única coisa que podemos desejar é, vejamos só, estarmos e termos seguros: nas nossas casas, nos nossos carros, na nossa sexualidade...


Essa nova polícia não é mais agente do temor, da disciplina, mas um dos fatores garantidores da segurança, o que lhe dá mais margem de manobra e intervenção do que em outras ocasiões. Apesar da Constituição Brasileira de 1988 ter constitucionalizado a militarização da polícia, nos termos do Ato Institucional 5 da Ditadura Militar, não se vê nada muito diferente nas polícias ao redor do globo, em relação às quais a militarização de fato avança às custas de toda sorte de argumento.


A sociedade da segurança cria o risco, seja por meio de fantasmas discursivos ou por transformar a natureza comum dos homens em tabu, fato último que ocorre quase sempre em torno do dispositivo de fetichização da morte. A morte e o seu vazio tornam-se onipresentes na vida contemporânea.


A demanda por uma miríade de soluções finais, idem. Na sociedade da segurança, a polícia atinge as molecularidades, que se tornaram mais complexas e irascíveis. O ataque é contra o nosso inconsciente, essa função polícia é um instrumento repressor-persecutório difuso, inclusive, a própria polícia.


O corpo desaparecido, e possivelmente supliciado, do ajudante de pedreiro Amarildo é a expressão do nosso tempo: em tempos em que o futuro faliu conosco dentro, o desaparecimento dos corpos é prática cotidiana, tanto simbólica quanto realmente -- e real porque simbólica. Não é Amarildo sendo morto, somos todos nós de alguma maneira.


A insustentabilidade um cenário anterior, de violência generalizada, apenas esconde uma justificativa cínica: as causas que levam à violência são ignoradas, a ação apenas mascara o efeito, a própria violência difusa na forma de criminalidade,  justamente para manter as causas.


A paz construída de maneira incomum pelo regime securitário é impossível. A paz sem liberdade é apenas, e tão somente, o silêncio dos oprimidos numa guerra que eles não declararam, nem tinham condições de declarar. Paz verdadeira só é possível como consequência das lutas e do amor, jamais como condição prévia.  À moda de Spinoza, podemos dizer que a paz verdadeira se faz apenas pelos homens livres, em comum acordo, por força de seu desejo autonômo e desimpedido.

SEMINÁRIO DEMOCRACIA E REGIMES DE PACIFICAÇÃO (Agora na PUC-Rio)

domingo, 17 de novembro de 2013

Sobre as Manifestações, Black Blocs e a Repressão para o IHU-Online

Entrevista minha para o IHU-On-line, publicada último dia 11, onde pude falar da situação das manifestações, a polêmica da tática black bloc e a repressão contra o movimento.
“Existe hoje no Brasil, pela primeira vez desde os anos 1970, um duro questionamento sobre as regras do jogo. Por isso, diz-se que vivemos em um ‘momento constituinte’”, afirma o jurista.
Foto: http://bit.ly/1iRXgv9
O atual momento social e político do Brasil, onde se evidencia “melhora dos indicadores de vida” e “o esgotamento das instituições políticas”, reflete o fato de que a “maior parte das esquerdas deixou de propor uma alternativa ao sistema para, vejamos só, tornar-se parte dele”, avalia Hugo Albuquerque, em entrevista concedida àIHU On-Line, por e-mail.
O jurista compara as manifestações que estão ocorrendo no país desde junho com o movimento europeu de maio de 68. “Cá como lá, a tensão entre as esquerdas que pretendem humanizar o Estado, e o capitalismo, e todo esse sistema que desumaniza e objetifica qualquer um, terminou por piorar as esquerdas. Ambas as experiências mostram que a tentativa de humanizar o sistema levou à desumanização de quem pretendeu isso”, pondera.
Hugo Albuquerque interpreta as manifestações recentes como uma manifestação da “multidão”. Tal conceito, explica, representa “uma expressão de coletividade humana que emerge não pela homogeneidade, como o ‘povo’ ou a ‘sociedade’, mas sim por diferenças intensas que se desdobram continuamente. O Quilombo dos Palmares e uma série de outros eventos resistentes da nossa história são multitudinários”. A diferença, entretanto, das manifestações de anos atrás com as de hoje está amparada na “revolução das tecnologias de informação e comunicação”, que criou, “em escala global, uma disposição multitudinária da vida e do trabalho. Essa é a novidade, a maneira como a multidão emerge historicamente”. E acrescenta: “O Black Bloc e o avanço do anarquismo e do autonomismo entre os jovens, em detrimento do partido e das bandeiras socialistas clássicas, são uma marca deste novo mundo”.
Albuquerque refuta as críticas de violência feitas aos Black Blocs e afirma que, ao avaliar o movimento, “o que importa não é a violência física, nós não vivemos em um sistema no qual a violência física realmente importa, não estamos na Idade Média: a modernidade se assenta sobre violências psicológicas, sujeições voluntárias e que tais. No caso, imagino que algo como o Black Bloc incomode por ser uma organização horizontal, anônima e de multidão: eles não podem ser efetivamente passíveis de uma ordem, não têm nome. Por outro lado, os movimentos reivindicatórios precisam sair da estética e chegar à política”.
Hugo Albuquerque é jurista e mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP. Faz parte da rede Uninomade e é editor do blog www.descurvo.blogspot.com.
Confira a entrevista.
Fotohttp://bit.ly/17d1p7J
IHU On-Line - Que semelhanças percebe entre o Brasil de hoje e a Europa dos anos 1960, à época de maio de 68, considerando as manifestações que aconteceram em ambos os lugares?

Hugo Albuquerque - As semelhanças são enormes. O Brasil dos anos 2010, a exemplo da Europa do final dos anos 1960 e 1970, vive um cenário paradoxal: de um lado, registramos uma grande melhora dos indicadores de vida, enquanto, de outro, o esgotamento das instituições políticas, sobretudo porque a maior parte das esquerdas deixou de propor uma alternativa ao sistema para, vejamos só, tornar-se parte dele e, quem sabe, dar-lhe uma face mais humana. Só que cá como lá, a tensão entre as esquerdas que pretendem humanizar o Estado, e o capitalismo, e todo esse sistema que desumaniza e objetifica qualquer um, terminou por piorar as esquerdas. Ambas as experiências mostram que a tentativa de humanizar o sistema levou a desumanização de quem pretendeu isso. Aliás, até antes disso, a Alemanha do pós-Primeira Guerra Mundial experimentou algo parecido, tanto queWalter Benjamin já fazia a crítica das políticas social-democratas, isto é, o profundo equívoco daquelas em venerar o progresso técnico e construir a emancipação humana pelo aumento do Estado — como se fosse possível racionalizá-lo e transformá-lo em um agente transformador.
As esquerdas brasileiras atuais, surgidas do ciclo de lutas dos anos 1970 contra a Ditadura Militar, intuíam já no nascedouro uma certa crítica à social-democracia — e à União Soviética —, mas ao mesmo tempo possuíam uma ilusão com o progresso técnico e o estado de bem-estar social. Dilma fez uma opção pelo gerencialismo em vez da política, pondo fim a essa ambiguidade, que foi uma das grandes marcas do governo Lula, embora para melhor. É claro, as lutas brasileiras dos anos 1960 e 1970 foram culturalmente muito influenciadas pelo Maio de 68, mas aqui tinham outra natureza política e histórica, do mesmo modo que a globalização, a revolução comunicacional e o giro produtivo geram ao mesmo tempo uma onda de levantes multitudinários pelo mundo, mas eles têm diferenças temáticas importantes de canto a canto — no caso, o Brasil parece muito a Europa de antes.
IHU On-Line - Quais são os reflexos das manifestações de junho hoje, cinco meses depois?
Hugo Albuquerque - Existe hoje no Brasil, pela primeira vez desde os anos 1970, um duro questionamento sobre as regras do jogo. Por isso, diz-se que vivemos em um “momento constituinte”. Não que as pessoas comuns e os movimentos não lutem para constituir direitos o tempo todo, mas existem momentos nos quais isso atinge uma massa crítica relevante, como agora. Neste exato momento, existem algumas conquistas tópicas, o consenso gerencial que virou praxe da política brasileira está na defensiva, existem medidas repressivas pesadas sendo tomadas e algumas questões centrais: Como avançar? Como criar uma nova institucionalidade? Como fazer brotar dessas multidões novas formas de organização sem cair na impotência ou voltar ao Estado? Na Grécia, por exemplo, a explosão inicial dos movimentos foi seguida de uma depressão geral. No mundo árabe, as primaveras encontraram seu termidor muito rápido, na forma de novas composições autoritárias. Mas agora a luta é não cair nos baixos dos terrorismos em voga, do tipo "eu tenho medo", nem se tornar um crédulo que fetichiza processos históricos.
Por exemplo, os vinte centavos foram o estopim das manifestações em São Paulo, o que foi fundamental para as jornadas de junho. Mas no duro, o preço da tarifa não baixou realmente: simplesmente, os vinte cents que iriam ser pagos pelo usuário são pagos, agora, pelo contribuinte na forma de subsídio às concessionárias. E, antes disso, parte do sobredito preço já era subsidiada. O recuo do reajuste é até mais justo, só que esconde problemas. Um deles é que muitas vezes o usuário se confunde com o contribuinte, e mesmo o contribuinte mais rico, cujo dinheiro dos tributos pagos vai para financiar o usuário de transporte público, poderia ter os seus recursos investidos em algo mais útil se, de repente, o preço real das passagens fosse efetivamente minorado. A questão que insurge é: este preço real das passagens de ônibus é justo? Se não, como baixá-lo?
Nesse sentido pontos como uma tarifa zero me parece interessante, no entanto, é preciso criar um sistema único de transporte público integrado, uma fonte de financiamento justa para tanto e, também, um modelo melhor que os das atuais concessões, na qual uma empresa privada ganha uma licitação e torna-se uma figura de peso na política municipal, ainda mais por não ter acontecido uma reforma política. E não adianta sair do mercado para cair numa velha empresa estatal, como a antiga CMTC em São Paulo, que simplesmente não funcionava, ou melhor, funcionava conforme os interesses restritos da casta burocrática que a administrava, a despeito de seus trabalhadores e usuários. Isso precisa ser trazido à tona. Não é uma crítica moralizante do movimento, mas questões de ordem polêmica, isto é, táticas e estratégicas.
IHU On-Line - Como vê a crítica de que as manifestações foram esvaziadas por conta da violência?
Hugo Albuquerque - É um argumento ruim, sem dúvida. Em primeiro lugar, as manifestações não foram esvaziadas em parte alguma. Em segundo lugar, a violência deflagradora, desde o início, é de origem policial. Aliás, se você analisa os inúmeros vídeos, fotos, textos e relatos sobre essas manifestações, constata-se que, quase sempre, quando os manifestantes usaram da força, foi em caráter defensivo. Existem alguns poucos casos de policiais que foram agredidos gratuitamente nesse processo, mas comparado com a quantidade gigantesca e a intensidade das agressões realizadas por eles contra os manifestantes, não há como equiparar nada. É possível fazer uma crítica estratégica e política dessas manifestações, mas embarcar num rema-rema moralista apenas favorece a criminalização dos movimentos sociais e a violência de Estado.
Violência
É preciso acrescentar que a violência policial é algo que, por natureza, não tem simetria com a violência praticada por pessoas comuns: a coisa é outra, a violência de Estado tem natureza peculiar, pois ela é aquela na qual o agredido não tem a quem recorrer. Ele é atacado por quem está ali, em tese, para protegê-lo, e para ser atacado dessa maneira ele precisa ser rotulado como causador de algo, pois para que um policial use de força contra alguém, a imagem pública dessa precisa, antes, ser destruída. A vítima sofre a pior das violências que é, precisamente, a sua desumanização, a violência física posterior é só consequência. É o velho apanhou ou morreu porque "deu motivo", porque é um pária, um Homo sacer.
Além do mais, até bem pouco tempo, manifestações reivindicatórias no Brasil eram pacíficas como em nenhuma outra parte do globo, mas já eram tratadas à base de muita violência — e ativistas eram socialmente estigmatizados, independentemente do que propusessem. Só que o nível de violência policial cresceu desta vez a ponto de radicalizar como nunca os movimentos — e em vez de dar a outra face, os ativistas passaram a conter a tentativa de supressão policial usando de força. Ainda assim, o que se vê no Brasil não é nada diferente do registrado na Europa em manifestações. Mas uma coisa é discrepante: a violência da polícia, uma das que mais mata no mundo.
Não só o aparato judicial brasileiro tem autorizado essa violência. Existe pouco empenho na apuração dos crimes praticados por policiais no período. Só que paralelamente a isso, ocorre agora uma grande comoção social em casos como o do pedreiro Amarildo no Rio e o do garoto Douglas na Zona Norte de São Paulo: infelizmente, gente pobre e inocente morria todo o tempo nas mãos da polícia, mas isso felizmente começa a indignar as pessoas agora. Só que o policial que matou Douglas irá responder processo por homicídio culposo — isto é, sem intenção de matar — em liberdade, enquanto os agressores do coronel, em recente manifestação, responderão presos por tentativa de homicídio. Existem dois pesos e duas medidas aí.
IHU On-Line - Qual é a gênese dos Black Blocs? Como e por que esse fenômeno se formou?
Hugo Albuquerque - Não é difícil descobrir como o Black Bloc surgiu: na Berlim Ocidental do início dos anos 1980. Depois o fenômeno teve sucesso nas marchas alterglobalistas dos anos 1990. Mas é preciso lembrar o seguinte: o que se passava com a Alemanha Ocidental naquela época? Simples, era a crise da social-democracia, que, depois de um longo governo, rompeu o diálogo com os movimentos sociais, ambientalistas, etc. A partir daí, temas importantes de direitos civis, a questão da energia nuclear e que tais ficaram de fora da agenda. É a mesma época em que a ala ambientalista do partido social-democrata rompe com ele e funda o Partido Verde. Era a mesma coisa na Itália com o partido comunista local: uma aliança entre capital e trabalho a bem do desenvolvimento, do progresso. Sindicatos de braços dados com o capital nacional. O Black Bloc, embora não propriamente violento à maneira de organizações como a Fração do Exército Vermelho, expressou o horror e a revolta de toda uma juventude com a perspectiva política desumana, previsível e absolutamente vazia: na qual todos marcham numa estrada monótona, onde não há perdão para quem se recusar a seguir essa trilha para o futuro.
IHU On-Line - Os Black Blocs fazem parte da multidão? O que os diferencia e os aproxima?
Hugo Albuquerque - A multidão é muita coisa, ela é um conceito, uma expressão de coletividade humana que emerge não pela homogeneidade, como o "povo" ou a "sociedade", mas sim por diferenças intensas que se desdobram continuamente. O Quilombo dos Palmares e uma série de outros eventos resistentes da nossa história são multitudinários. A diferença agora é que a revolução das tecnologias de informação e comunicação criou, em escala global, uma disposição multitudinária da vida e do trabalho. Essa é a novidade, a maneira como a multidão emerge historicamente. E as revoltas dessa multidão se expressam de um modo diferente do que no século XIX, com a classe trabalhadora, uma dessas formas, aliás, são as greves metropolitanas. O Black Bloc e o avanço do anarquismo e do autonomismo entre os jovens, em detrimento do partido e das bandeiras socialistas clássicas, são uma marca deste novo mundo.
IHU On-Line - Por que essas manifestações ocorrem, em alguma medida, sob a linguagem da violência? Em que consiste a “violência simbólica” e a “estratégia performática”, como os Black Blocs definem? Ela é justificável? Quais os limites dessa manifestação?
Hugo Albuquerque - Pela polarização à qual eu me referi inicialmente. Quem deflagrou a violência, me parece, não foram os manifestantes, mas agora existe muito ressentimento, angústia, flutuações de ânimos, etc. E muita repressão: pela primeira vez na nossa história existe um consenso entre as elites políticas de que é preciso reprimir, sim, não há mais alguém pelos ativistas, ao mesmo tempo que as pessoas estão enfurecidas. Isso, ao meu pensar, só se resolve com uma sincera interlocução política.
Do Black Bloc, o que importa não é a violência física, nós não vivemos em um sistema no qual a violência física realmente importa, não estamos na Idade Média: a modernidade se assenta sobre violências psicológicas, sujeições voluntárias e que tais. No caso, imagino que algo como o Black Bloc incomode por ser uma organização horizontal, anônima e de multidão: eles não podem ser efetivamente passíveis de uma ordem, não têm nome. Por outro lado, os movimentos reivindicatórios precisam sair da estética e chegar à política.
IHU On-Line - Em que consiste o poder constituinte da multidão? Qual é o poder constituinte das ruas?
Hugo Albuquerque - É uma ideia do filósofo italiano Antonio Negri, que, baseado na metafísica de Spinoza, rompe com a separação estática e primária entre poder constituinte e poder constituído que nós aprendemos nos bancos das faculdades de Direito. Essa ideia modernista de que houve uma revolução, mas adveio uma nova ordem, benigna, é coisa de Napoleão: a constituição — na forma de um contrato burguês — adveio e a revolução acabou. Sem dúvida alguma, uma pura peça retórica que transforma o evento destituinte de uma velha ordem, e constituinte da liberdade, em um mito fundador domesticado que fundamenta a obediência absoluta à nova ordem. Isso serviu para que tudo mudasse sem nada mudar na França pós-revolução, quando a aristocracia traiu camponeses, baixo clero, trabalhadores, mulheres para apenas tomar o lugar que era da burguesia. O poder constituído é uma farsa histórica, que vem a legitimar a violência de um setor sobre o outro, criminalizando a eventual resistência dos oprimidos. De certa forma, o PT — até o governo Lula — sempre deu vazão a esta potência constituinte, mesmo que com ambivalências, constituiu direitos e melhorou a vida dos povos brasileiros. Uma vez que ele deixou de fazer isso, aconteceu o óbvio: o fluxo da correnteza represou e arrebentou a barragem.
IHU On-Line - Como interpreta as críticas aos Black Blocs e às manifestações que ocorreram em junho? Trata-se de duas críticas específicas a cada movimento, ou é uma única crítica?
Hugo Albuquerque - Bem, eu acho que existem pessoas realmente incomodadas pelo abalo à ordem, outras com sincero temor sobre os rumos do que pode acontecer — o uso desses eventos para instituir um regime reacionário — e um ânimo igualmente sincero de outro lado — às vezes exagerado, mas muitas vezes equilibrado. Eu penso que isso tudo é muito complicado. Mas estou mais preocupado com quem gerou mais violência e pode gerá-la mais ainda; eventuais atos exacerbados cometidos por algum adepto da tática Black Bloc precisam ser vistos na sua real dimensão: uma infração, uma desobediência civil, um ato individual ou em grupo. Não foram os Black Blocs que sequestraram, torturaram, cegaram ou mataram alguém nesse período de tempo.
Eu poderia fazer “n” críticas ao método de ação dos Black Blocs e mascarados em geral, mas evito fazer para não embarcar nessa onda de criminalização. 

Direito penal não é panaceia. O que me assusta mesmo nesse momento é a violência policial, a aplicação contra civis da Lei de Segurança Nacional, as prisões arbitrárias e em massa, o cerceamento de defesa de muitos dos acusados de terem feito algo nestes últimos meses.
IHU On-Line - Em que fundamenta a afirmação de que “o Estado é anárquico como a tradição teológica é anárquica”?
Hugo Albuquerque - É uma ideia agambeniana. O Estado, a exemplo do deus-pai da mitologia abraâmica, não tem fundamento. Isto é, ele é “an-archon”, sem fundamento, em grego. Ele cria as identidades das pessoas, nossas identidades são oficiais e, a partir delas, podemos ser comandados. Apesar de todos os mecanismos de pesos e contrapesos, o Estado pode emitir uma decisão final que não é passível de contenção pelos cidadãos. E isso independe do governo, de quem esteja lá, é algo próprio da forma de organização estatal. Daí que toda crítica moral(ista) a um determinado governo é ingênua ou muito mal-intencionada. Quando os cidadãos comuns se organizam da mesma forma, eles colocam o Estado em choque.
IHU On-Line – O que significa o Estado não ter fundamento? Qual é
aalternativa ao Estado?
Hugo Albuquerque - O Estado estabelece identidades, nomeando, mas ele próprio não tem nome, ele ordena, mas em último caso não é ordenável. Olhem o mito do deus judaico: deus não tem nome, pois é ele quem nomeia, ele quem dá nome aos filhos e, por isso, seria indigno que estes o nomeassem. Ora essa, não se trata de um fenômeno lógico, mas de uma questão ideológica óbvia: deus não pode ser nomeado, pois de fosse, poderia ser comandado também. Ele tem uma mera identidade genérica, uma identidade meramente descritiva e não prescritível. Com o Estado ocorre o mesmo. E o Estado, que e' um fenômeno próprio da modernidade, é feito à imagem e semelhança de deus. É uma máquina política que, conceitualmente, se caracteriza pela pretensão de onisciência, da onipotência e da onipresença, isto é, a divina providência que tudo pode (como em um totalitarismo) inclusive escolher nada poder (em um neoliberalismo). No plano histórico, Estado é uma forma de organização política lastreada por um corpo permanente de burocratas, cuja praxe mantém uma continuidade hermética é permanente, é a exceção permanente à qual se refere Benjamin: um mundo ordenado por vilões, por administradores, um monte de engrenagens objetificadas e objetificantes. Mudam-se as "cabeças" e permanecem os burocratas. Eles vivem do trabalho vivo parasitariamente. E essa lógica se sustenta em uma lógica meramente econômica, algo transportado desta vez do patriarcalismo greco-romano, no qual a cidade era composta por varias casas (oikias) comandadas por um dono ("dominus" ou "despotes") que pelo título público do "dominium" exercia mando absoluto sobre sua família, servos e escravos. Platão é o primeiro pensador que, no afã de resolver os problemas políticos (da Atenas de então), propugna por uma lógica econômica de ordenação política que, a rigor, suprimiu a própria política. Não à toa, os vários fascismos do século 20º converteram seus lideres em figuras patriarcais - com a diferença que a ideia de eugenia  acabou sendo transformada em critério para a fidelidade. Atente-se que eu não chamei ninguém de "vilão" à toa: o "villicus" romano era quem administrava a Casa, quem fazia o trabalho sujo e duro de acordo com a vontade do "dominus" (ou muitas vezes influenciando-o). O Estado é uma multiplicidade de "villicus". Vejamos nos que o Estado, qualquer um que seja, possui uma face visível e benigna (o Parlamento, o diplomata) e outra, secreta e terrível (o interior dos gabinetes, os sistemas de espionagem), o que só é possível porque ele vive em absoluta liberdade e não é sujeito a nada. Isso o Marques de Sade já tinha observado, quando dizia que a realização constitucional dos Estados se dava anarquicamente. Só que o Estado, ou melhor, seus agentes, entram em pânico quando alguém se volta contra eles usando de sua mesma racionalidade, só que de forma positiva. Posto isso, qual a alternativa que existe para o Estado? Que comEstado não existem alternativas, mas sem ele, elas se tornam possíveis. O mundo viveu muito tempo sem a forma de organização estatal. É uma ideia inventada pelos pensadores burgueses e pré-burgueses como Hobbes, mas cuja realização histórica só se deu mesmo com as revoluções que a burguesia solapou: a Gloriosa, a Americana e, sobretudo, a Francesa. Perguntar-se sobre alternativas ao Estado, é como indar o que seria de nós sem as armas de fogo. De tal sorte, o erro histórico das esquerdas, da Rússia do século 20 até a América Latina de hoje, passando pela social-democracia européia ocidental, foi tentar ocupar algo que, por natureza, é inocupável, muito pelo contrário.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Hugo Albuquerque - Acho que vivemos um momento fascinante, que precisa ser visto sem medo ou esperança, sem desespero ou vontade de segurança, mas com alegria e equilíbrio. Teremos saudade desses dias no futuro, pelos motivos bons ou maus. É preciso pensar, atuar, propor como nunca.

sábado, 9 de novembro de 2013

Sob o Signo de Libra


Artigo meu, originalmente publicado no site da Uninomade em 04-11 sobre o Leilão de Libra

O Leilão do campo petrolífero de Libra, ironicamente no último dia do signo zodiacal homônimo, realizado pelo Governo de Dilma Rousseff, acirrou o debate político brasileiro. Situada na Bacia de Santos, Libra é considerada a estrela da grande reserva petrolífera do Pré-Sal e sua concessão valeu centenas de bilhões, tendo sido arrematada em lance único por um consórcio encabeçado pela estatal Petrobrás e mais alguns tubarões dos negócios petrolíferos -- incluso aí duas estatais chinesas, cujo simbolismo de sua chegada vai além da geopolítica, além da própria Shell, outrora concessionária do campo de Libra, tendo abandonado há poucos anos sob a alegação de que não havia petróleo por lá.

A exemplo dos velhos leilões de FHC, uma série de ações judiciais choveram contra o processo licitatório e manifestações, turbinadas pela onda atual, se impuseram -- tudo isso, com direito a um forte esquema de repressão montado pelas Forças Armadas em pessoa. Sérgio Gabrielli, presidente da Petrobrás à época da descoberta do Pré-Sal, se opôs ao leilão. Ildo Sauer, ex-diretor da supracitada petrolífera, foi além e bancou uma ação popular contra o processo -- sob a alegação de que o governo brasileiro perderá centenas de bilhões de dólares ao não realizar, por conta própria, a exploração.

A presidenta Dilma, por seu turno, comemorou aquilo que julga um sucesso -- e que alega não se tratar de privatização. O “mercado”, no seu cantinho, resmungou dizendo que o resultado ficou “aquém” para conseguir, como se viu rapidamente, um novo mecanismo de reajuste dos preços de combustíveis -- o qual facilitará aumentos, os quais possivelmente teriam seu impacto sobre o consumo reduzidos por subsídios estatais, isto é, o uso de dinheiro público para manter o preço praticado abaixo do preço formal, às custas de um “bolsa investidor”, que nos “salvaria” de um surto hiperinflacionário decorrente do reajuste da gasolina e do diesel nas bombas dos postos.

Há certos binarismos recorrentes na análise da questão: estatismo x mercadismo, globalismo x nacionalismo, os quais, a rigor não interessam verdadeiramente a ninguém, salvo aos interessados de sempre. É preciso pensar além da cortina de fumaça. Antes de mais nada, a resposta para a sua pergunta é sim: apesar da declaração em rede nacional em sentido contrário, Dilma de fato promoveu uma privatização. O que não é novidade nenhuma em seu governo, basta lembrar dos leilões dos aeroportos, em relação aos quais as esquerdas fizeram vista grossa ou pouco barulho. Mas privatização vai muito além da conversa mole de defesa do capital estatal ou nacional.

Que significa, afinal de contas, privatizar algo? É, certamente, bem mais do que transformar algo em “atividade econômica”, vender patrimônio “público” (estatal, a bem da verdade):  trata-se de retirar um bem comum da esfera coletiva de deliberação para inseri-lo em um regime despótico, isto é, em um sistema de regras e princípios no qual uma lógica transcendental determina o que será usado e desusado, por quem e como. De certa forma, o funcionamento de nossas velhas empresas estatais, já era uma forma de privatização (ao menos, avant la lettre), pois instituia uma forma de produção e circulação alheia às demandas imanentes da coletividade, simplesmente inalcançável pelos reles mortais (isto é, nós).

Como lembramos, invocando Agamben, em outra ocasião, o  nascedouro da ordem privada é do mundo antigo, quando a casa (a oikia de “economia”) era o local por excelência da produção, na qual um dono (de dominus, ou despotes na heláde) ordenava servos, escravos e sua própria família de maneira absolutamente vertical. A ordem pública era exterior à Casa na qual ocorria a circulação da produção, os contratos, e na qual os donos, por força das contingências, eram equiparados na forma de “cidadãos”.

O advento do Capitalismo marcou uma (con)fusão dos dois espaços na forma da economia política. Mas público e privado sempre marcaram dois fatores dialeticamente interligados. A esfera privada só existe porque a esfera pública lhe autoriza, por meio do estatuto conferido pelo instituto jurídico do domínio, enquanto a esfera pública se realiza por meio da existência fática das entidades privadas. Para lembrar Negri, o que escapa ao público-privado é o comum, isto é, o reconhecimento do contiguidade imanente entre as casas e a cidade, a própria plenitude da vida e do desejo.

Os rearranjos da dialética público-privado que marcam as mudanças no Estado brasileiro nas últimas décadas, de Capitalismo de Estado para Capitalismo Neoliberal, são facilmente explicáveis: a introjeção da noção atual de democracia na máquina estatal local, por força dos levantes multitudinários brasileiros dos anos 70, trouxeram a possibilidade da reivindicação de uso comum das empresas estatais, as quais precisam ser liquidadas para, no âmbito de mercado, estarem apartadas da “política”, ou da política que desinteressa a classe dominante. A defesa de um capital estatal e nacional, atende apenas uma casta de burocratas e\ou uma burguesia nacional. A defesa de um capital privado e internacional, por seu turno, há de favorecer outro tipo de matilha. Mas os oprimidos, em uma situação e na outra, serão sempre os mesmos.

O leilão em questão, é verdade, trouxe dinheiro rápido e fácil para o Estado brasileiro, o que servirá para ele financiar, realizando, assim, os ditâmes de seus credores gerais e, sobretudo, para satisfazer a particular estirpe dos especuladores da Petrobrás. Em uma política de boa vizinhança, o desejo dos acionistas de receber mais pelo combustível será realizado, enquanto preços se manterão estáveis para os reles mortais graças ao emprego de uma ainda desconhecida quantia de dinheiro público recompando o valor extra.

Algo há de sobrar para o investimento no welfare, tão old-fashioned, idealizado pela esquerda de Estado, mas estaremos mais distantes de qualquer deliberação sobre os negócios do petróleo -- inclusive sobre seus usos e desusos como matriz energética, em tempos de esgotamento ambiental: a pretensa construção do bem-estar social às custas, ironicamente, de uma fonte de energia suja terá, no entanto, caminhos mais tortuosos do que se supunha, uma vez que o emprego de seus recursos econômicos nos serviços públicos será, pelo visto, mitigada. Por outro lado, a direita partidária talvez deseje até menos do que isso, inclusive porque o discurso ambiental só entra em seu léxico à la Bardot, isto é, como uma construção esotérica na qual da defesa de ursos polares chegamos à suspensão dos direitos humanos dos muçulmanos globais.

O custo maior do Leilão de Libra, no entanto, ficará por conta do impacto simbólico-político, tão incontornável e insustentável que mais parece uma tentativa deliberada de aprofundar esta crise que já chega às raias da loucura. A imagem de um grande consenso político, de uma enorme centro-direita indiferente, garantida à base da baioneta, edifica-se como a realidade desesperadora de uma geração inteira de jovens. Indigno e desnecessário para uma presidenta que, em seus melhores anos, sofreu o que sofreu na pele.