domingo, 25 de março de 2018

Putin, Mais uma Vez


Vladmir Putin foi reeleito presidente da Russia. Com 76% das preferêcias, um total de 56 milhões de votos, ele bateu o recorde tanto proporcional quanto em números absolutos de votos. Um fenômeno, em tempos de crises políticas pelo globo e, sobretudo, crise na representação, nos partidos clássicos e no establishment político, mesmo de países europeus desenvolvidos e dos EUA. Repetindo a lição do polidor de lentes luso-holandês, antes de chorar ou rir, é preciso compreender um fenômeno -- ainda mais um tão complexo como do Putinismo, que está no poder há dezenove anos em um país gigantesco como a Rússia.

Frequentemente apresentado como um líder de direita conservadora, um tirano, ou coisa que o valha, Putin, evidentemente, se vale no plano interno da manutenção do cerco à Rússia -- uma tragédia contígua que já dura cem anos --, da russofobia deslavada -- sobretudo de alguns anos para cá --, mas igualmente apresenta resultados relevantes para uma nação que enfrentou um dificílimo fim de século 20º.

Em tempos de neoliberalismo e capitalismo financeiro, as noções de modernidade parecem derrogadas, a História chegou ao Fim e Deus morreu para se tornar o Mercado -- não apenas "dinheiro" como diria Agamben --; líderes mundiais, inclusive à esquerda, parecem entregar seus governos à Divina Providência do Mercado Global. Mas Putin não.

O Putinismo resiste por fazer uma objeção de fundamento do discurso de seus rivais e, sejam os liberais ocidentalistas no interior da Rússia ou as potências ocidentais, e, também, por apresentar resultados tanto na econômica quanto no aproveitamento social disso. Sim, a vida na Rússia é hoje melhor do que em 1999, quando Putin era o número dois do país, então governado por Yeltsin.

Para além da propaganda ideológica, o fato é que a Rússia era um país feudal e estagnado antes da Primeira Guerra, que de tão trágica para o país serviu para abrir caminho para uma Revolução. O impacto dos anos 1920 na Rússia, com o nascimento da União Soviética, representou um desenvolvimento ímpar no país; primeiramente de forma libertária, depois, com uma retomada do autoritarismo de Estado tradicional do país.

Fato é que os russos, às expensas de muito sofrimento, conseguiram, em décadas, dar saltos que os europeus ocidentais levaram séculos. E resistiram e venceram a invasão nazista, que deixou dezenas de milhões de mortos, algo impensável mesmo para um país violentíssimo como o Brasil. A União Soviética sobreviveu à guerra, embora às custas de perder quase uma geração inteira. E se reconstruiu e modernizou.

O misto da burocratização deflagrada já nos 1920, somado com a perda do movimento revolucionário, fecharam as portas para o desenvolvimento do país. Dos anos 1960 para os 1980, a União Soviética está estagnada, o jovem Putin, um oficial da KGB de família vermelha, embora fortemente influenciado pela intelectualidade branca, e antissoviética da Universidade de Leningrado, era um dos defensores da grande mudança no país.

Com a decadência do projeto voluntarista de reforma conduzido por Mikhail Gorbatchiov, Yeltsin, que havia assumido o poder na Rússia, é peça central para o desmantelamento da União Soviética. A reconstrução do capitalismo, por bases absolutamente neoliberais, tornam a Rússia dos anos 1920 em um assustador laboratório humano a exemplo do Chile dos anos 1970.

O mundo se lembrará de Yeltsin, contudo, como um senhor bonachão, cujo alcoolismo apenas ajudaria a ampliar o seu carisma. Mas isso tinha muito mais a ver com a aliança de Yeltsin com o Ocidente do que com qualquer traço democrático seu; o mundo se lembra do golpe de 1993 como a "crise constitucional" russa e assim por diante.

O jovem Putin, já ali uma estrela ascendente da política, estava convencido de que as forças anticomunistas na Rússia tinham razão, mas que não deveriam ter permitido a fragmentação do país. Nem que seria possível manter as coisas naquele patamar, com o Estado russo sendo loteado.

Velhos burocratas soviéticos se tornaram proprietários donos das velhas empresas soviéticas, quase todos por métodos absolutamente ilegais de privatização. Esses oligarcas queriam o que qualquer elite periférica deseja, ser aceita como parte da elite global, frequentar os mesmos clubes, esquiar junto. 

Mas o que esses oligarcas não contavam é que, ao não abrirem plenamente a Rússia para o capital global, eles teriam o seu ingresso no clube dos ricos postergado, não importando quantos bilhões pudessem ganhar.

E, enquanto isso, a sociedade russa agonizava com a estagnação dos anos 1960-80 se tornando depressão, queda nos rendimentos e na qualidade de vida. Eis que a ampla coalização que governava a Rússia com Yeltsin se realinha, Putin é alçado a primeiro-ministro, mostra competência e é, praticamente, imposto como sucessor.

O plano Putin era simplesmente retirar da vida política russa os oligarcas mais selvagens, enquadrar os que ficassem, fortalecer as forças armadas e o Estado e, por outro lado, impor uma política social e econômica que permitisse, ao menos em parte, que a população em geral deveria usufruiu dos ganhos econômicos.

O estamento que colocou Putin no poder, o Rússia Unida, era um "partido" que só poderia existir em um país pós-socialista, era tanto mais um ajuntamento de militares, ex-membros da inteligência e, também de diplomatas que nem desejavam a volta do "comunismo", mas tampouco lhes interessava a hegemonia dos neoliberais radicais.

Os oligarcas recém-enriquecidos precisavam do Estado. E Putin sempre gostou de se ver como um ser Hobbesiano, pronto a colocar fim no estado de natureza dos primeiros anos do capitalismo.

Eleito com pouco mais de 50% em 2000, Putin ganha com 71% em 2004, mas não lhe é permitido uma nova recondução. Medvedev, seu imediato, concorre e ganha, representando uma figura mais liberal no arranjo do Rússia Unida. Se havia alguma expectativa de que Putin sairia de cena, isso caiu por terra com os efeitos da crise de 2008-09 e o uso da Geórgia pelo Ocidente, com fins de desestabilizar o Cáucaso.

As controversas eleições de 2011 foram o maior teste ao Putinismo. Mas as manifestações massivas, causadas por suspeitas de fraude que teriam ajudado o Rússia Unida, servem para que Putin seja candidato presidencial novamente, inclusive mais fortalecido.

Mas Putin só vence 2012 com 63%. O que se instala a partir dali é uma verdadeira blitz, na qual Obama muda de posição e passa a investir duramente contra a Rússia, com os EUA tomando posição contra a Rússia fosse na Ucrânia ou na Síria, a aplicação de sanções, a desvalorização do preço do petróleo e tanto mais.

A Rússia iria tomar um xeque-mate, mas não tomou. Putin nem entregou a Crimeia nem permitiu a remoção do regime sírio, seu aliado, contra quem os governos ocidentais não hesitaram de achar, inclusive, uma solução "afegã" -- o emprego de fundamentalistas islâmicos crúeis e altamente violentos.

Com as forças armadas em suas mãos, com a nomeação de seu aliado Sergei Shoigu para a defesa, a Rússia mostrou destreza e uma eficiência impensável na Síria.  A propaganda antirrusa criou uma coesão interna em relação a Putin impensável. O presidente se torna uma unanimidade.

De outro lado, a política conservadora em matéria comportamental causa controvérsias dentro e fora da Rússia; de um lado, o presidente espera agradar à maioria silenciosa do país. Do outro, cria desavenças e é duramente criticado.

Putin, de todo modo, é um ser estranho, exótico, que se movimenta com desenvoltura pela polaridade do nosso tempo, para além do que se pode chamar de populismo de direita e populismo de esquerda, sem deixar de ser uma espécie populista, ou ser um pós-populista.

Operando no limiar entre o que seria o establishment, de direita ou de esquerda, e do neopopulismo, igualmente de direita ou de esquerda, Putin consegue responder menos do que os velhos enxadristas da direção soviética ou os jogadores de pôquer americanos; é na política como na vida um judoca, pronto a aplicar golpes usando contra seus adversários sua própria força.

Na verdade, Putin preside um grande partido-ônibus nacional, com as características mui peculiares de um país que passou por uma experiência socialistas, sendo um grande enigma para as forças políticas do século 20º e suas estratégias em frangalhos. Como também o é para as novas forças políticas, que tentam reinventar um sentido para o político no século 21º.

Putin está além do arranjo político que preside e comanda, isso faz parte de jogo, mas lança sombras sobre o que será da Rússia sem ele. O avanço da melhora da vida na Rússia mantém essa legitimidade, um certo equilíbrio entre as classes, nos quais a oligarquia se comporta minimamente e participa do jogo nacional, o qual gera dividendo para o resto da sociedade. O grande pacto que ruiu no Brasil não ruiu na Rússia.

No ano 2000, quando Putin entrou na presidência, a Rússia estava no mesmo patamar do Brasil em matéria de desenvolvimento humano, mas hoje está trinta posições à frente do nosso país. Se a melhora da renda foi o destaque dos anos 2000, a manutenção da boa educação e melhora da saúde são os destaques da Rússia dos sofridos anos 2010.

Simplesmente exclamar, histericamente, sobre o autoritarismo de Putin, certamente muito menos autoritário do que Yeltsin, é um erro. Desvendar o enigma político, não de Putin, mas do seu Putinismo, é essencial: decodifica-lo e readequa-lo é tarefa essencial e urgente. 







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