quinta-feira, 27 de março de 2014

São Paulo entre Adoniran e Maluf

Isso era São Paulo

A foto acima tem circulado pelas redes sociais e ilustra um artigo do Marcelo Rubens Paiva. A ilustração corresponde à São Paulo antiga, mais precisamente a uma parte do Centro que hoje é soterrada pelo famigerado "Minhocão", o elevado Costa e Silva. Embora eu pudesse começar pelo absurdo que é o nome do elevado ser uma homenagem a um dos ditadores militares brasileiros, o primeiro general da linha-dura, a verdade é que a obra faz jus ao nome que tem: nem seria o caso de mudar o nome do Minhocão, mas de implodi-lo mesmo só pelo desastre urbanístico que é -- e é justamente isso que o Marcelo propõe no seu artigo.



Para quem não conhece São Paulo, o elevado em questão liga à zona oeste próxima, a Barra Funda, ao Centro, passando por cima disso que vocês estão vendo. O artífice da obra, o ex-prefeito Paulo Maluf, sempre frisou a necessidade da obra: como chegaríamos ao Centro sem ele? A questão, no entanto, sempre foram outras duas: (1) qual Centro? e (2) quem chegaria, cara-pálida? Pois bem, a primeira se explica pela brutal degradação da zona central paulistana, cujo marco inicial foi justamente o elevado pela maneira como ele destruiu a cinelândia local; a outra é também muito mais simples, o "quem chegaria" são os proprietários de automóveis particulares. 

A submissão de São Paulo ao cinza do concreto e ao automóvel no lugar das grandes alamedas e do paisagismo foi o início do fim da Pauliceia. A questão é  que você não constrói uma cidade a partir do carro. São Paulo é péssima para moradores, pedestres, ciclistas, animais e plantas justamente por conta disso -- e objetivamente é pior para os próprios motoristas, mas dentro desse esquema, obviamente eles não percebem o problema, ou só sua exterioridade, o trânsito, o caos dos semáforos etc. O carrocentrismo malufista não construiu uma porcaria de cidade por si só, mas sim um absurdo urbano que é, também, um absurdo social, afetivo, ambiental e assim por diante. 

Interessante é o contraste disso com uma outra São Paulo, que ainda existe um pouco, a São Paulo  que ainda tinha garoa, samba e a figura de um tipo particular de malandro: estético como um italiano, lúdico como um brasileiro. Era o Adoniran Barbosa. O cara que mandava o progresso do Getúlio às favas. Uma espécie de pessoa capaz de desprezar o trabalho, por mais que estivesse na capital do discurso da dignificação via labor. Aquela coisa das cantinas do Bixiga, da Mooca, do samba no Brás, das gentes brancas e mestiças que conviviam mais com os povos dos antigos quilombos urbanos de São Paulo do que com os quatrocentões.

De uns tempos para cá, ou desde Maluf, a única coisa que escapou à destruição desse típico malandro paulistano -- uma destruição que só pode começar  pelo seu habitat -- foi em parte a Rua Augusta -- na parte do Centro -- e, talvez, a Vila Madalena. Isso até a gentrificação, que na Augusta começou tem poucos anos e que na Vila vem dos anos 90, subindo de Pinheiros. A Augusta, aliás, só foi "diferente" no momento em que esteve "abandonada", até ser retomada há pouco pela especulação imobiliária: e a questão não é o moralista, o "que bom que a prostituição está saindo da Augusta", porque, na real, a prostituição saiu de lá para os discretos flats, nos quais a exploração feminina pode ser bem maior, justamente por ser mais invisível.  Na Vila, apenas chegou aquilo que vinha de Pinheiros, capturando o ar autêntico  e genuíno do bairro, enlatando-o e pasteurizando -- enquanto os aluguéis sobem, eliminando lugares legais e expulsando os pobres.

A coisa, é óbvio, não é o Maluf pessoa, mas o Maluf histórico e político, responsável por dar vazão a um projeto nefasto desde muito. A verdade é que, por ora, Maluf venceu, ou venceu politicamente: a rigor, ele conseguiu fazer o que quis e isso prevaleceu por inércia, embora algumas medidas que contradigam sua lógica tenham sido tomadas em determinados momentos. Mas no interior do seu ser, São Paulo permanece malufista. Quem defende uma outra São Paulo, como a esquerda que ocupa e já ocupou a Prefeitura algumas outras vezes, só conseguirá mudar isso no momento em que entender que a saída para essa desgraça está, vejam só, mais na jinga de um Adoniran do que na dureza germânica dos escritos frankfurtianos.


quarta-feira, 26 de março de 2014

A Grande Beleza: O Vazio e a Cosmética do Pós-Moderno

Por Hugo Albuquerque e Isabella Eid,

Vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro, o italiano A Grande Beleza de Paolo Sorrentino (2013) é um belo, vibrante e inquietante espetáculo estético que lança questões importantes sobre a pós-modernidade e a Europa atual – além de apresentar algumas respostas que, antes de tudo, merecem ser entendidas. O protagonista, Jap Gambardella (Toni Servillo), é um escritor sexagenário, uma versão dândi do homem (pós-)moderno: um eu central que é fio de ligação para inúmeros retalhos de memórias, circunstâncias e sensações em um mundo no qual o vácuo e o nada se tornam dolorosamente presentes; autor de apenas uma única – e aclamada – obra publicada há décadas, ele está sempre confrontado com o fato de não ter escrito mais nada, enquanto promove festas de arromba, ajuda amigos falidos e trabalha como jornalista cultural.

A Grande Beleza traz a carga dramática, um ar de decadência elegante que é, certamente, uma das formas de se enxergar o momento europeu. É a decadência vista de dentro, não do continente, mas do ponto de vista do europeísmo na forma em que ele tomou no “fim da História”. Se a História acabou e não chegamos à utopia, é certo que o futuro faliu “conosco” dentro. E o “conosco” certamente se refere aos europeus, rifados neste mundo cheio de turistas asiáticos, consumidores árabes muçulmanos e assim por diante – que aparecem às revoadas em cenas específicas. É possível sentir um fundo melancólico, comum a outras obras recentes como Um Castelo na Itália de Valéria Bruni Tedeschi, também de 2013 – a Europa não mais se pertence, a desterritorialização promovida pela globalização arrancou o solo histórico europeu.

Mas antes de qualquer julgamento, ou acima de qualquer tentativa de julgar, é preciso entender. E a persona de Jap, desenhada por Sorrentino, ainda que acuse o estado da arte do paradigma [de supremacia] europeu é uma entidade trágica – o que torna a película trágica, mas não pelos motivos que o autor dela talvez desejasse. Não é a tragédia da cultura e da civilização europeia face à invasão dos bárbaros, da passagem do tempo em que a doce foi a vida – quando Jep e uma de suas musas passa do lado da Fontana de Trevi, um marco óbvio de Roma e do cinema italiano – , mas a da própria condição trágica em si de estar nessa situação, precisando apelar, talvez inconscientemente para esse recurso, para essa muleta.

Há, contudo, algo de relevante quando o filme escapa à Europa, e que interessa, quando ele aporta no pós-moderno em si. E aí, ele passa a interessar mais nas linhas do que nas entrelinhas. É a bem desenhada expressão do kitsch pós-moderno, feito de baladas tecno, da miscelânea estética pronta à “surpreender” – tanto que resta absolutamente previsível –, do torpor. E aí poucos filmes foram tão bem-sucedidos na exposição estética dessas formas. É difícil sair do cinema sem a sensação de termos nos dado conta do óbvio; antes de dar a pensar, algo se faz sentir, mas é possível criar experiências que estejam no sensível em um grau maior: e aqui, depois de se deparar com as festas incrivelmente animadas e vazias, da alegria triste do nosso tempo, é impossível não se dar conta de quantas situações parecidas não vemos em qualquer parte: festas de formatura, baladas, carnavais. Pura casca sem conteúdo.

Difícil não lembrar também de uma obra como O Homem sem Conteúdo, de Giorgio Agamben, que já no início dos anos 1970, dissecando “a estética moderna” já antevia o aprofundamento de uma produção artística desprovida de carne, um objeto morto produzido pela subjetividade absolutamente livre de “um artista”. É certo que Agamben talvez entenda a estética com uma cosmética, mas superado esse ponto, é exatamente essa sensação que se tem quando nos deparamos, nessa película, com o vazio aleatório da performance de um artista que, nua, choca sua cabeça contra as paredes de uma ruína.

Enquanto isso, Jap se vê engolfado pela presença de presenças femininas fortes; uma recém-falecida ex-namorada, que sempre o amou -- apesar dele só ter descoberto isso após a morte dela -- torna-se objeto constante de suas lembranças; a filha de um amigo (Sabrina Ferilli) que se dedica a ser stripper de luxo e a quem este lhe confia os “cuidados”; uma velha conhecida de círculo intelectual que lhe desafia por sua inércia artística.

Em duas cenas, temos um complemento interessante: a editora de Jep, uma simpática anã, lhe serve uma sopa quando lhe trata pelo diminutivo; indagada do porquê daquilo, ela responde sobre a importância dos amigos fazerem uns aos outros se sentirem crianças novamente; no outro flanco, quando depois de uma de suas festas, Jep confessa que não escreveu mais nada porque “nem Flaubert foi capaz de escrever sobre o Nada”. O devir-criança e um pessimismo niilista aparecem lado a lado no paradoxo constitutivo de uma Europa, uma Itália e um tempo na encruzilhada.

No fim, aparecem um pomposo cardeal papável e uma centenária missionária considerada “santa”, os quais trazem o filme para a zona das respostas, ou da tentativa de fazê-las; e elas apontam, de um lado, para crítica à decadência da Igreja pelo abandono da espiritualidade em detrimento da glória mundana na figura do cardeal e, por outro lado, para o valor da espiritualidade “verdadeira” na forma de uma volta às “raízes” – que é a única coisa que a velha monja diz comer, justamente por “saber da sua importância”.

Cabe apontar, quanto a esta aura tradicionalista que envolve a zona de respostas do filme, que a estética do homem, enquanto maioria, é vítima do retorno do Mesmo. Explica-se: O ser do homem médio racional, desapegado de qualquer elaboração cultural, ou de qualquer manifestação sensível, equivale ao espírito majoritário que norteia, também, o homem pós-moderno – flashs, luxúria, música alta, luzes, dinheiro, dinheiro!  --, ambos possuem um liame secreto e mais potente do que parece.

Se seguíssemos essa lógica cíclica, não seria impossível antever a sucessão de uma sociedade voltada a preservação da tradição, da família e da religião, a tendência à estrutura simples ou à ilusão da pulsão de morte como resposta ao exaurimento hedonista -- exaurimento este como uma das possibilidades do Moderno.

O filme aponta  para esta reação como uma saída, mas não deixa de mostrar outro aspecto: o retorno da humanidade, da paixão, do sensível. Se analisarmos a escola romântica, verificamos que esta representou uma volta de valores tradicionais e medievalistas -- o herói burguês perfeito, forte, lindo e corajoso e honesto -- mas também, paradoxalmente, da paixão e do singelo. E isso, apesar dos pesares, isso se aplica aqui, ao mesmo tempo em que ele se fecha, também se abre a algo pré-moderno que resiste ao pós-moderno -- e mesmo decidindo pela captura no final, a questão é que aqui é deixado um em-aberto que tem lá sua potência.

No fim, no entanto, não há como sublinhar a conclusão definitiva: em um mundo vazio, nos quais as certezas, incontestavelmente, se chocaram no rochedo, a resposta final seria a religião, a tradição e a privação como âncora necessária – algo capcioso, sobretudo em um momento no qual um Putin reconstrói a Rússia justamente calcado nesses valores, isto é,  se apresentando como condutor de um reduto conservador face a um mundo em caos. Se é isso que nos resta nessa ida para o futuro, o que será de nós? Como ser felizes se a solução ao alcance seria, apenas e tão somente, um refúgio interior e deslocado no passado? 


sexta-feira, 21 de março de 2014

Claudia tinha um Nome...e não Merecia (ser arrastada por um camburão até) Morrer

Imagem daqui
Arrastar. É uma ideia comum no nosso falar. Nós nos indignamos só de pensar em "arrastões". Mas o que dizer de nós, a sociedade brasileira, esta maravilha coletiva -- que ou apóia ou não se indigna o suficiente com a violência de Estado -- diante de uma vítima de uma brutalidade sui generis que envolve o "arrastar", só que em uma situação inversa: Cláudia Silva Ferreira -- negra, mulher, mãe, tia, amiga, pobre, vizinha, um ser humano -- foi arrastada no asfalto por uma viatura policial em movimento, que a "socorria", depois de ter sido baleada em (mais) uma ação desastrosa da mesma polícia. 

Há várias nuances. Como as novas maneiras de usar as tecnologias tira absurdos como esse da invisibilidade seria uma delas, o caso foi documentado em um vídeo feito pelo celular de um motorista, mas o buraco é mais embaixo. Importa aí a maneira como a sociedade brasileira parece tentar eximir os policiais, a novilíngua da mídia "livre" que trata Cláudia como a "mulher arrastada" ou, até mesmo, a denúncia voluntarista de parte da esquerda -- que num impulso trabalhista -- lembra que Cláudia era "trabalhadora" e não merecia isso -- mesmo inconscientemente, dizer isso é como dizer que quem trabalha poderia morrer, ou seria mais matável, menos digna de proteção.

A meu ver, a questão central, o nó górdio dessa conversa, é precisamente o nome. E eu tenho me debruçado sobre a questão há algum tempo. A invisibilidade, o grunhido do pelotão de linchamento, a retórica da mídia, o trabalhismo, tudo isso precisa, no calor dos fatos, iniciar seu discurso com uma âncora, o nome. E Cláudia, um ser humano multifacetado e bem real, perde assim o esplendor da sua diferença em relação ao mundo para, de repente, ser reduzida a um nome genérico, homogenizador: a vítima dos policiais bonzinhos -- a baixa "colateral" --, a "arrastada", a trabalhadora são reduções que visam sujeitar a complexidade de uma humana às regras de um discurso de poder.

A aparente ausência de um nome específico não equivale ao anonimato. A condenação a pertencer a um "nome genérico", um nome de apropriação, é da ordem do Poder, ou melhor, é a pedra de toque do Poder: e tudo vira número em uma estatística ou uma figura, um modelo. Tudo perde a carne. O Poder foge à regra -- porque ele faz as regras -- sempre que ameaçado, eis que ele busca a carne -- a qual negligencia, mas sabe muito bem que existe -- e se suas vítimas nunca têm nome próprio, os seus inimigos possuem -- ou devem possuir -- nome, rosto, RG, CPF, tipo sanguíneo.

Não causa espanto, a bem da verdade, que grande parte do discurso antagônico ao sistema, em certa medida, aqui, ali ou bem longe daqui, capitule à mesma lógica dos seus algozes. Possuem a mesma lógica interna o discurso da mulher trabalhadora -- que não merecia morrer por isso e por isso -- e o do protesto que "não teve trabalhador" e que, por tabela, merece ser desqualificado: isso alude a uma ideia utilitarista, para a qual tudo é traduzido numa linguagem de hierarquias escalonada conforme a [suposta] importância para a produção. O produtivismo como chave de explicação do porquê as esquerdas mundiais, em grande medida, preferem caiar a senzala (pós-moderna) a libera-la.

O confronto em questão, do qual Cláudia foi uma baixa bastante incidental, é parte da guerra não declarada contra as minorias, os diferentes, da sociedade global. Repercute aqui, ali em todo canto. Mas se discutir política exige, antes de tudo, fugir da discussão sobre quem tem culpa no cartório, é preciso enxergar, para além do mal, que nós que falamos, falamos muito e fazemos pouco ou quase nada. 






quarta-feira, 19 de março de 2014

Crimeia e Rússia: Liberdade ou Anexação?

Conferência de Yalta: Churchill, Roosevelt e Stalin, os líderes aliados
A Crimeia é um dos centros de equilíbrio das rússias. Agora, com o referendo que a retirou do controle da Ucrânia e a tornou parte da Federação Russa, ela é destaque dos noticiários globais. Ou melhor, reapareceu no centro do jogo geopolítico mundial. Não nos esqueçamos que foi lá onde ocorreu a famosa derrota russa para as forças ocidentais, com o apoio turco, na guerra que definiu a sorte do Império tsarista em meados do século 19º: a derrota em Sebastopol, e a consequente redução do país a uma potência secundária no plano internacional, foi a pedra de toque para os eventos que culminaram na efervescência política e social que desaguou na Revolução Russa -- a submissão aos ditâmes do capitalismo industrial franco-britânico, o fim da servidão feudal para a proletarização dos ex-servos e o resto da história, bem, todos conhecemos. Ainda, na Segunda Guerra, na cidade de Yalta, localizada na península, foi realizada a famosa conferência  que contou com as maiores lideranças dos aliados: Churchill, Roosevelt e Stalin, na discussão sobre os espólios da guerra.

Conquistada pelos russos nos fins do século 18º, a península com litoral tanto para o pequeno Mar de Azov quanto para o Mar Negro, é área estratégica para a marinha russa, seja no que envolve o acesso a águas quentes ou no que diz respeito à eventual atuação no Mar Mediterrâneo. Em 1954, quando o líder sovietico Nikita Khrushchiov passou, por decreto, seu controle para a então R.S.S. da Ucrânia, não houve maiores problemas para Moscou -- até o desmembramento da União Soviética, quando o Kremlin manteve a base naval e o controle de facto de uma região que, formalmente, era ucraniana. 

A Crimeia é habitada desde tempos remotos, tendo passado pelo controle de cimérios, citas, gregos, venezianos, mongóis, turcos, tártaros, russos e tantos outros povos. O que poderia ser chamado de povo autóctone de sua pequena população de dois milhões de habitantes são tártaros da Crimeia, os quais são minoritários -- quase 60% dos locais são russos étnicos, em geral resultado de migrações planejadas no período soviético. Aliás, os tártaros locais foram acusados de colaboração com os nazistas na guerra, o que lhes valeu uma deportação interna -- a exemplo do que se passou com os chechenos por outras razões --, em um processo que só foi interrompido nos anos 1960 e, por fim, revertido com a Perestroika -- o chamado Surgun

Sob a liderança de Mustafá Dzemilev, os tártaros da Crimeia apoiaram fortemente Viktor Yanukovich nas últimas eleições presidenciais (2010). Entre os russos étnicos, nem se fala. Em uma eleição profundamente acirrada, na qual as graves divisões regionais já se faziam sentir, a Crimeia só forneceu menos votos para o ex-presidente, pró-Rússia, do que regiões como Donetsk e Lugansk: no total quase 80% dos votos da Crimeia no segundo turno, enquanto nas duas outras regiões esse número chegou à casa dos 90%. E, agora, com a derrubada do governo pró-russo em Kiev, e a realização de um referendo fortemente apoiado pela máquina de propaganda do Kremlin, não é espantoso que mais de 95% dos votos tenham sido favoráveis à "passagem" da região para a Federação Russa enquanto "República Autônoma".

2010: Quanto mais para Leste-Oeste, mais  partidário de um lado ficava o eleitor
Se nas eleições de 2010, a divisão do país expressa no mapa eleitoral já era escandalosa -- com Tymoshenko e Yanukovich tendo os votos quase absolutos de, respectivamente, Oeste e Leste --, por outro lado, ainda havia um grau mínimo de legitimidade para o governo eleito -- fosse qual fosse, certamente não haveria um consenso sólido, o que não equivalia, contudo, ao desmembramento do país. O fracasso objetivo do governo Yanukovich levou, no entanto, à erosão dessa frágil unidade nacional. E esse fracasso veio não só com os resultados sociais e econômicos insatisfatórios (a economia do país registra o terceiro ano de estagnação depois do baque de 2009), as óbvias e vergonhosas concessões feitas a Moscou, mas, sobretudo, com o resultado da repressão às manifestações favoráveis à aproximação do país com a União Europeia -- o que certamente foi mais relevante, em termos da derrubada de Yanukovich, do que a querela pró ou contra adesão à Europa.

De todo modo, se mesmo no século 19º, a velha geopolítica explicava muito mal o processo em curso, no século 21º menos ainda. Os imperialismos variados só podem ser considerados como arcaísmos, como máquinas de escrever, que se ainda existem, devem sua existência a condições específicas que demandam certa consistência. No caso, existe os interesses do bloco de poder burocrático do departamento de Estado americano de um lado, os euroburocratas no meio e o putinismo em curso. Não que o Império Global, com a profunda interconexão de fluxos de capital possa tolerar uma guerra efetiva. Quem está separado, ainda, são as pessoas comuns na Rússia, Ucrânia, Europa ou nos Estados Unidos, não suas respectivas elites políticas e, tampouco, suas elites econômicas.

Apesar da Crimeia, nesse contexto, parecer a vitória do Kremlin, ao contrário, ela retrata o fracasso do projeto de liderança regional elaborado por Putin, onde os membros da antiga União Soviética funcionariam, ainda, como satélites. A própria Ucrânia, mesmo antes da Revolução Laranja (2004), jamais ratificou o tratado da Comunidade dos Estados Independentes (CEI), a forma pela qual Moscou pretendia manter essa influência. Os países bálticos jamais fizeram parte do arranjo. Yeltsin ou Putin não conseguiram elaborar um sistema de poder que, de um lado, fornecesse algum bem-estar ilusório ou, mesmo, no pior sentido, criasse redes funcionais de oligarquias regionais. O Kremlin foi incompetente no bom e no mal sentido de se criar uma zona de influência.

Nesse sentido, do mesmo modo que na guerra vencida pela Rússia contra Geórgia em 2008, a vitória militar pontual não resultou na volta do ex-satélite ao controle do Kremlin, mas na criação de "repúblicas autônomas" controladas pela Federação Russa -- no caso da Geórgia, a Abkhazia e a Ossétia do Sul, no da Ucrânia, por ora, a Crimeia -- que se tornam enclaves militares. Não que o "ocidente", ou seja, a parte do arranjo imperial talvez majoritária, consiga prover, do outro lado, o bem-estar dessas populações -- vide que os líderes da Revolução Laranja, certamente um movimento "menos espontâneo" do que este, foram deixados a ver navios por Washington e Bruxelas em momentos dificílimos, sobretudo quando da eclosão da presente crise mundial -- a Ucrânia não se recuperou até hoje da queda de quase 15% do PIB em 2009, fato talvez decisivo para a ala pró-Moscou ter voltado ao poder, muito embora ela também não tenha dado um jeito na confusão.

O fato ocorrido na Crimeia, no entanto, não pode ser interpretado como "anexação" -- termo  popularizado pela máquina de propaganda nazista para, assim, justificar sua política expansionista na Europa dos anos 30 --, do mesmo modo que o levante pró-UE na Ucrânia não  foi uma conspiração gigantesca, mas antes de tudo, uma expressão de inconformismo contra uma situação econômica e social realmente ruim, além da vontade de autonomia dos ucranianos -- e ainda que haja manipulações para cá ou para lá, é fato que, antes de tudo, é preciso ter matéria-prima para tanto, isto é, muita gente insatisfeita, o que era precisamente o caso.

A solução para o caos da região pós-soviética está longe de ser alcançado. Mas ainda que uma dose de afirmação de diferenças culturais seja bom, pelo menos como antídoto, é preciso a conexão das forças democráticas de canto a canto nas rússias. Uma tarefa difícil que exige, afinal de contas, o desmonte da estrutura burocrática criada pelo stalinismo que tanto Putin quanto  seus aliados, e até adversários, na região ainda se usam -- ainda mais onde isso gera um efeito de "estabilidade" como na Bielorrússia.  Os nacionalismos de canto a canto -- e o nacionalismo ucraniano, em suas facções extremistas, restou fortalecido só no momento em que o cerco putinista se desenhou -- apenas dividem aquilo que precisa estar unido (de verdade). 








segunda-feira, 17 de março de 2014

Bettelheim e a Luta de Classes no Paraíso

Realismo Socialista: Stalin retratado como grande timoneiro
O francês Charles Bettelheim (1913-2006) viveu como poucos o breve século 20º. Militante comunista, historiador e economista,  ele foi testemunha e personagem em grande parte do que se passou na antiga Cortina de Ferro e nos países não-alinhados; do processo de planificação soviético -- o qual conhecia profundamente, sendo mais tarde um dos maiores críticos internacionais --, à revolução chinesa -- da sua glória ao seu rápido descaminho --, passando ainda pela Cuba revolucionária -- onde foi protagonista histórico da célebre discussão sobre os rumos do país: chamado à opinar sobre a situação, Bettelheim saiu derrotado ao propor uma economia agrícola de policultura, voltada antes à garantia da segurança alimentar para, só a partir daí, financiar a industrialização do país; Fidel Castro, por coincidência, propôs o modelo vencedor, o socialismo de monocultura agrícola, e Che Guevara saiu derrotado ao propor a industrialização à fórceps.

A grande obra de Bettelheim foram os tomos da A Luta de Classes na União Soviética, cuja produção se iniciou sob o impacto da invasão de Praga em 68 pelas tropas soviéticas, pondo fim ao sonho de reforma do socialismo real -- o que, possivelmente, chocou o mestre francês. Só o primeiro tomo de A Luta de Classes..., sobre os cinco primeiros anos da Revolução Russa, é um calhamaço muito bem detalhado de quase quinhentas páginas. É, talvez, o melhor relato da composição de classe russa no período revolucionário. Mas a biografia de Bettelheim é normalmente contada aquém do merecido, de um jeito cristão, quase em paralelo com a história de Santo Agostinho: pois bem, ele foi comunista, viu a verdade, e virou social-democrata no fim da vida. Uma simplificação grosseira, sem dúvida.

Tudo bem, Bettelheim era um modernista, um pensador de Estado, obviamente pouco afeito a raciocínios mais moleculares e libertários, mas ele teve a inegável potência de ir além às limitações do próprio plano teórico e, uma vez confrontado com a realidade concreta na experiência, assumiu o óbvio -- o que nem sempre é fácil para os intelectuais. É daí que ele tirou uma conclusão absolutamente notável para um economista, precisamente o de identificar no economicismo o mal da União Soviética, um país cujos líderes colocaram a técnica acima da luta política, e, por decreto, aboliram a luta de classes naquele país. E é aí que o texto de Bettelheim se torna inquietante. 

Se o projeto marxista, a exemplo do cristianismo, propôs a abolição da Lei, o mundo obrigacional, a partir da conquista do paraíso, o mundo da graça, mas a pergunta que restou tanto para comunistas, diante da Revolução, quanto para cristãos, diante da Conversão, foi: e depois? Como será? Bettelheim problematizou justamente a persistência dos problemas, mas não para readmitir uma transcendência como um novo teórico da Lei -- como Vychinsky ou Tomás de Aquino foram --, mas para aprofundar na imanência. 

Vejamos, segundo Bettelheim, o erro comum a Stalin e Trotsky era pregar o mesmo que os líderes ocidentais sobre a luta de classes, ou seja, que ela não existia -- ainda que o fizessem de um modo diferente, isto é, pela negação de sua existência nas condições específicas da União Soviética, jamais pela afirmação de sua inexistência em si. Os efeitos, no entanto, eram parecidos, isto é, por meio do mascaramento da dinâmica ela mesma dos conflitos sociais, a parte mais forte da disputa passava a ter mais força para se impôr.

A negação da existência da luta de classes no Paraíso, na pátria do socialismo, pelo stalinismo poderia parecer a tentativa de esconder o fracasso da revolução, mas uma rápida leitura dos escrito de Marx e Engels nos faz ver que não haveria motivo: nenhum dos dois propôs a equação "revolução = fim da luta de classes". O que fica claro ao longo da história soviética, e que Bettelheim bem demonstra, é que mascarar a luta de classes na União Soviética fazia parte de um projeto de naturalização das novas formas de opressão em elaboração, naturalmente ditadas pela ascensão da classe burocrática. 

Se a retórica da inexistência apriorística da luta de classes no ocidente, não por acaso, servia para negar a opressão dos proprietários, ou possuidores, sobre os trabalhadores e as pessoas todas, na União Soviética isso serviu para escamotear a primazia dos gerentes, os homens do partido, sobre os trabalhadores soviéticos. Stalin, e mesmo Trotsky, inauguraram muito antes de Fukuyama a doutrina do Fim da História -- ainda que no seu cercado. Com o adendo de que Stalin fez isso não como uma personalidade maligna, e transcendente, mas como correia de transmissão de um corpo burocrático silencioso, sem rosto ou aparentes pretensões maiores.

O discurso stalinista, centrado no desenvolvimento das forças produtivas como meta incontornável, que deveria ser conquistado a qualquer custo, escondia, pois, um projeto de poder -- os novos mandarins teriam seu estado de necessidade para legitimarem suas ordens -- e, mesmo que tomado de forma ética, jamais conduziriam à liberdade na medida que aí chega não pela edificação de objetos técnicos, mas das subjetividades que iriam agenciar tais objetos -- daí o interesse de Bettelheim em Mao, muito embora isso vá, felizmente, se desfazer quando a revolução cultural se torna à mera disputa entre aparelhos burocráticos.

O legado da obra de Bettelheim certamente é mais do que sua decisão, prática e tática, de apoiar a social-democracia contra os desvarios da economia neoliberalizada e os riscos do socialismo real, mas reside, a bem da verdade, nas incertezas e insinuações de fundo que ela deixou no ar. O capitalismo de Estado, como ele classificava o sistema econômico soviético, talvez não seria, já ali, um desenho da forma mais bem acabada de capitalismo: não serão os CEO's os novos burocratas do partido? Ambos não seriam, cada qual ao seu modo, os gerentes de meios de produção cuja propriedade é pulverizada -- e social --, o que implica na competência para, por meio de suas decisões "técnicas", determina a vida de incontáveis trabalhadores?

Elefantíase da economia, hegemonia burocrática, desenvolvimentismo, centralismo, fim da história, a dinâmica da composição de classes e o mascaramento dos conflitos sociais estão na ordem do dia. A pesquisa sobre a catástrofe soviética, bem como do socialismo de um modo geral, merece empenho porque, ao contrário do que pensamos habitualmente, isso é parte do nosso cotidiano. Ver isso nos nos impele a um destino inevitavelmente conservador, ao contrário, ele cria os anticorpos para isso ao mapear os riscos de degeneração nos processos interiores de libertação. E que façamos isso indo além de recuos táticos, para muito além da própria reterritorialização que Bettelheim fez, ainda que por prudência, no qual o "capitalismo de face humana" parecia o caminho menos desalentador.




quinta-feira, 13 de março de 2014

O Dia em que o PMDB se chocou com a Internet Livre

Arte: Carlos Serra (retirado daqui)
Ontem, o projeto de Marco Civil da Internet (que pode ser consultado neste link), apresentado na forma de substitutivo assinado pelo deputado federal Alessandro Molon (PT-RJ),  foi retirado da pauta da Câmara pelo próprio governo. O motivo? Uma rebelião da chamada "base aliada", liderada pelo PMDB, que resultaria na derrubada do projeto caso ele fosse submetido à votação -- apenas como forma de pressionar o governo a ceder em outras áreas, sobretudo na liberação de emendas parlamentares, grosso modo, sobras do orçamento que podem ser destinadas para os deputados tocarem seus projetos. 

Enfim, isto daqui, que poderia muito bem ser apenas um ensaio sobre o significado jurídico, virtual e político de um Marco Civil torna-se, no frigir dos ovos, um post sobre mais um capítulo da agonia das instituições da república: de repente, a sanha por cargos e emendas do PMDB, e a política de chantagem ao governo no Congresso, a velha novela repetida da política, acabou fazendo a corda estourar justo numa discussão essencial. E Internet é chave para a democracia contemporânea. Estamos presos no meio de um tiroteio entre um governo pouco disposto a atuar com as bases, mesmo quando ele propõe algo que realmente interessa às pessoas, e com uma política de articulação desastrosa, além de partidos "aliados" que comprometem a votação de temas essenciais para negociar melhor suas posições e interesses menores.

O Marco Civil, aliás, nada mais que uma lei federal que, no duro, regulará toda a matéria comum da rede, isto é, a nossa liberdade de compartilhar e arquivar dados, navegar. O atual texto é elogiado por ativistas da área e responde, justamente, às críticas à redação anterior do projeto, cujas ambiguidades assustavam a todos. Os interesses que se voltam contra a liberdade da rede, por mais que isso pareça distante, são das grandes corporações e das empresas de conteúdo (os provedores, por exemplo), interessadas em obter dados, além de teses que vão contra a neutralidade da rede, outros que defendem um papel mais intrusivo do Estado na forma como convivemos na rede -- não custa lembrar que há alguns anos, o deputado tucano Eduardo Azeredo chegou a propor o projeto de lei que ficou conhecido como "AI-5 Digital", pela maneira como propunha um controle autoritário da rede. 

Do ponto de vista da articulação política, houve demora do governo em entender e absorver as demandas de ativistas da área. Pior, uma vez feitos os devidos reparos, em um bom trabalho de Molon, o que poderia ser uma ampla campanha de mobilização em cima do tema, acabou dando lugar a um silêncio baseado na confiança na aprovação automática do substitutivo pelos "aliados" no Congresso. Tirando a própria campanha de aprovação do PL empenhada pelo mandato de Molon,Marta Suplicy, dentre os nomes de relevo do PT, apareceu publicamente falando em Marco Civil -- fora do governo e do PT, o cantor e ex-ministro de Lula Gilberto Gil talvez tenha chamado mais atenção para o tema que o próprio governo, com uma campanha pelo Avaaz.

Mas a história é sempre mais complicada do que parece. Embora dentre os marcos civis possíveis, este seja o melhor, é provável que a ingenuidade legalista da esquerda brasileira, e de ativistas da área, possa ter aberto uma caixa de pandora. Ao trazer para o campo da regulação legal um espaço que precisa ser livre, ao se pensar em uma lei que abrangesse a totalidade das relações civis na rede, o debate todo de liberdade na internet foi conduzido para a arena das forças institucionais de Estado -- talvez fosse o caso de, no máximo, discutirmos pontos específicos para contrabalancear eventuais arbitrariedades das corporações e do Estado, não criar uma lei geral, pois como ensina uma lição elementar do direito, o que não está proibido pela lei, está permitido.  

Os riscos são precisamente esses, não apenas do lobby das corporações em relação à forma do Marco Civil como, também, que os humores do Congresso, colateralmente, determinem um desastre na área -- como aconteceu agora. Pior, mesmo que este texto seja aprovado em certo momento, é fato que ele pode, como qualquer lei, sofrer emendas futuras que sejam desfavoráveis. O melhor lugar para resguardar a liberdade da rede não seria por uma lei geral, mas sim debaixo do guarda-chuva genérico do art. 5º da Constituição Federal com eventuais legislações e medidas de regulação administrativa, via Anatel, tomadas em cima de arbitrariedades concretas cometidas por provedores e quetais. 

Tanto é verdade, que apesar do debate atual sobre Marco Civil tenha nascido, de forma bem democrática, no seio do Ministério da Justiça do governo Lula, então encabeçado por Tarso Genro, a primeira tentativa de regulação legal da Internet foi ideia dos conservadores: era o projeto de lei nº 5403\2001 de autoria, ironicamente, do senador Luiz Estevão do PMDB-DF. Trazer para a rede para a regulação legal absoluta é sempre digno de desconfiança, pois gera riscos como estes que vemos. A ampliação do campo burocrático e legal, mesmo que a serviço de uma causa democratizante e socializante, constrói estruturas grandes de regulação da vida que, a rigor, cedo ou tarde se voltam contra a democratização e a socialização como nos ensinam Walter Benjamin e Rosa Luxemburgo sobre o papel da social-democracia alemã no pós-Primeira Guerra.

Mesmo superando esse ponto, não existe como um partido minimamente colocado ao lado das minorias não pode reduzir o jogo político às instituições de Estado sem ser derrotado ou engolido pela máquina. A problemática do PMDB é central ao se pensar o Brasil hoje, como já pontuamos por aqui. Por outro lado, enquanto as emendas parlamentares existirem, grosso modo, é preciso que elas sejam liberadas com critério e com a devida fiscalização, também não é possível que elas sejam simplesmente retidas e que isso se torne um cabo de guerra; a conversa se desdobra, pois, por outras vias: não é gestão administrativa feita à base de mão de ferro que vai resolver isso, mas,  como nos lembra o sempre atento Bob Fernandes, se o assunto é confrontar o PMDB, é preciso aprender com a lição dos garis cariocas.



sexta-feira, 7 de março de 2014

Os Garis e Porque a Vida é Bela


Os garis entraram em greve na cidade do Rio de Janeiro. Em pleno carnaval. A greve foi atacada por todos os lados, chegando ao ponto do prefeito carioca determinar que os garis coletassem o lixo "sob escolta". Hoje, eles lotaram a avenida formando um lindo bloco carnavalesco laranja. É uma das raras vezes que eles, esse invisíveis, ocupam as manchetes do noticiário nacional, a última vez, recordem-se, foi quando o "jornalista" Boris Casoy ironizou o desejo de feliz ano novo deles, no réveillon de 2010 -- foi o célebre: "que merda...dois lixeiros desejando felicidade do alto da suas vassouras...dois lixeiros... o  mais baixo da escala do Trabalho". 

Bem, mas a questão é que sem garis não há Carnaval, não há vida, a metrópole morre. Crer que uma cidade possa viver sem garis é, vejamos só, o mesmo que supor a sobrevida de um corpo sem sistema linfático. Uma greve de garis é um daqueles momentos que vemos como discurso do sistema é falso: se esses trabalhadores são o que de mais inferior e dispensável existe, o que explica não vivermos sem eles? O ponto é que é falso dizer que eles são o ponto mais baixo da escala do trabalho, simples assim. Ou talvez sejam, mas só no sentido de ser a base sustentadora da coletividade. Mas não, nossa sociedade acha que é preciso humilha-los para que, sobretudo, não tenham auto-estima para lutar pelos seus direitos. É um trabalho difícil, o que vamos fazer? Pegar o núcleo de excluídos sociais, espancar sua moral mais ainda, paga-los com esmola e fazê-los trabalhar duro para limpar as ruas que a nossa, deus meu, asseada sociedade conserva. Tornar, assim, uma tarefa fundamental em coisa digna de pena para, no fim, sobrevalorizar os nossos trabalhinhos.

A verdade, só aí, vem à tona: forte é o pobre, é o negro, o mestiço, ele é o imprescindível, o indispensável. Mas a questão política e econômica é secundária. A questão central é afetiva. Quantas vezes em meio a essa tempestade de desespero e ansiedade que nos afoga, como a chuva torrencial que cai agora mesmo na Avenida Paulista, achamos que a vida não vale a pena, que tudo é muito duro. Quantas vezes temos tanta vontade de tudo, seja porque queremos o que nem precisamos ou porque achamos que não podemos, e eis que de repente, nos deparamos com essa gente alegre, acima de tudo. Nós, que deixamos de fazer tanto por conta dos nossos "deveres", poderíamos subir também no alto das vassouras, pois as vassouras servem, sobretudo, para voar e sonhar com um porvir no horizonte. 


Atualizações (09/03/2014 -- 22:00):

1)  A greve das vassouras fez efeito e os garis obtiveram, ao menos, uma vitória sindical-trabalhista. Mas a luta continua.

2) Bela lembrança do sempre atento Ricardo Rodrigues Teixeira sobre o episódio:

"Me fez lembrar de uma passagem dos 'Diálogos' do Deleuze com a Claire Parnet, em que ele cita um poema do Bob Dylan:
o mundo não passa de um tribunal
sim
mas conheço os acusados melhor que vocês
e enquanto vocês se ocupam em julgá-los
nós nos ocupamos em assobiar
limpamos a sala de audiência
varrendo varrendo
escutando escutando
piscando os olhos entre nós
atenção
            atenção
sua hora há de chegar

E Deleuze comenta: 'Julgar é a profissão de muita gente e não é uma boa profissão, mas é também o uso que muitos fazem da escritura. Antes ser um varredor do que um juiz'".