Os garis entraram em greve na cidade do Rio de Janeiro. Em pleno carnaval. A greve foi atacada por todos os lados, chegando ao ponto do prefeito carioca determinar que os garis coletassem o lixo "sob escolta". Hoje, eles lotaram a avenida formando um lindo bloco carnavalesco laranja. É uma das raras vezes que eles, esse invisíveis, ocupam as manchetes do noticiário nacional, a última vez, recordem-se, foi quando o "jornalista" Boris Casoy ironizou o desejo de feliz ano novo deles, no réveillon de 2010 -- foi o célebre: "que merda...dois lixeiros desejando felicidade do alto da suas vassouras...dois lixeiros... o mais baixo da escala do Trabalho".
Bem, mas a questão é que sem garis não há Carnaval, não há vida, a metrópole morre. Crer que uma cidade possa viver sem garis é, vejamos só, o mesmo que supor a sobrevida de um corpo sem sistema linfático. Uma greve de garis é um daqueles momentos que vemos como discurso do sistema é falso: se esses trabalhadores são o que de mais inferior e dispensável existe, o que explica não vivermos sem eles? O ponto é que é falso dizer que eles são o ponto mais baixo da escala do trabalho, simples assim. Ou talvez sejam, mas só no sentido de ser a base sustentadora da coletividade. Mas não, nossa sociedade acha que é preciso humilha-los para que, sobretudo, não tenham auto-estima para lutar pelos seus direitos. É um trabalho difícil, o que vamos fazer? Pegar o núcleo de excluídos sociais, espancar sua moral mais ainda, paga-los com esmola e fazê-los trabalhar duro para limpar as ruas que a nossa, deus meu, asseada sociedade conserva. Tornar, assim, uma tarefa fundamental em coisa digna de pena para, no fim, sobrevalorizar os nossos trabalhinhos.
A verdade, só aí, vem à tona: forte é o pobre, é o negro, o mestiço, ele é o imprescindível, o indispensável. Mas a questão política e econômica é secundária. A questão central é afetiva. Quantas vezes em meio a essa tempestade de desespero e ansiedade que nos afoga, como a chuva torrencial que cai agora mesmo na Avenida Paulista, achamos que a vida não vale a pena, que tudo é muito duro. Quantas vezes temos tanta vontade de tudo, seja porque queremos o que nem precisamos ou porque achamos que não podemos, e eis que de repente, nos deparamos com essa gente alegre, acima de tudo. Nós, que deixamos de fazer tanto por conta dos nossos "deveres", poderíamos subir também no alto das vassouras, pois as vassouras servem, sobretudo, para voar e sonhar com um porvir no horizonte.
Atualizações (09/03/2014 -- 22:00):
1) A greve das vassouras fez efeito e os garis obtiveram, ao menos, uma vitória sindical-trabalhista. Mas a luta continua.
2) Bela lembrança do sempre atento Ricardo Rodrigues Teixeira sobre o episódio:
"Me fez lembrar de uma passagem dos 'Diálogos' do Deleuze com a Claire Parnet, em que ele cita um poema do Bob Dylan:
E Deleuze comenta: 'Julgar é a profissão de muita gente e não é uma boa profissão, mas é também o uso que muitos fazem da escritura. Antes ser um varredor do que um juiz'".
Bem, mas a questão é que sem garis não há Carnaval, não há vida, a metrópole morre. Crer que uma cidade possa viver sem garis é, vejamos só, o mesmo que supor a sobrevida de um corpo sem sistema linfático. Uma greve de garis é um daqueles momentos que vemos como discurso do sistema é falso: se esses trabalhadores são o que de mais inferior e dispensável existe, o que explica não vivermos sem eles? O ponto é que é falso dizer que eles são o ponto mais baixo da escala do trabalho, simples assim. Ou talvez sejam, mas só no sentido de ser a base sustentadora da coletividade. Mas não, nossa sociedade acha que é preciso humilha-los para que, sobretudo, não tenham auto-estima para lutar pelos seus direitos. É um trabalho difícil, o que vamos fazer? Pegar o núcleo de excluídos sociais, espancar sua moral mais ainda, paga-los com esmola e fazê-los trabalhar duro para limpar as ruas que a nossa, deus meu, asseada sociedade conserva. Tornar, assim, uma tarefa fundamental em coisa digna de pena para, no fim, sobrevalorizar os nossos trabalhinhos.
A verdade, só aí, vem à tona: forte é o pobre, é o negro, o mestiço, ele é o imprescindível, o indispensável. Mas a questão política e econômica é secundária. A questão central é afetiva. Quantas vezes em meio a essa tempestade de desespero e ansiedade que nos afoga, como a chuva torrencial que cai agora mesmo na Avenida Paulista, achamos que a vida não vale a pena, que tudo é muito duro. Quantas vezes temos tanta vontade de tudo, seja porque queremos o que nem precisamos ou porque achamos que não podemos, e eis que de repente, nos deparamos com essa gente alegre, acima de tudo. Nós, que deixamos de fazer tanto por conta dos nossos "deveres", poderíamos subir também no alto das vassouras, pois as vassouras servem, sobretudo, para voar e sonhar com um porvir no horizonte.
Atualizações (09/03/2014 -- 22:00):
1) A greve das vassouras fez efeito e os garis obtiveram, ao menos, uma vitória sindical-trabalhista. Mas a luta continua.
2) Bela lembrança do sempre atento Ricardo Rodrigues Teixeira sobre o episódio:
"Me fez lembrar de uma passagem dos 'Diálogos' do Deleuze com a Claire Parnet, em que ele cita um poema do Bob Dylan:
o mundo não passa de um tribunalsimmas conheço os acusados melhor que vocêse enquanto vocês se ocupam em julgá-losnós nos ocupamos em assobiarlimpamos a sala de audiênciavarrendo varrendoescutando escutandopiscando os olhos entre nósatençãoatençãosua hora há de chegar
E Deleuze comenta: 'Julgar é a profissão de muita gente e não é uma boa profissão, mas é também o uso que muitos fazem da escritura. Antes ser um varredor do que um juiz'".
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