quinta-feira, 13 de março de 2014

O Dia em que o PMDB se chocou com a Internet Livre

Arte: Carlos Serra (retirado daqui)
Ontem, o projeto de Marco Civil da Internet (que pode ser consultado neste link), apresentado na forma de substitutivo assinado pelo deputado federal Alessandro Molon (PT-RJ),  foi retirado da pauta da Câmara pelo próprio governo. O motivo? Uma rebelião da chamada "base aliada", liderada pelo PMDB, que resultaria na derrubada do projeto caso ele fosse submetido à votação -- apenas como forma de pressionar o governo a ceder em outras áreas, sobretudo na liberação de emendas parlamentares, grosso modo, sobras do orçamento que podem ser destinadas para os deputados tocarem seus projetos. 

Enfim, isto daqui, que poderia muito bem ser apenas um ensaio sobre o significado jurídico, virtual e político de um Marco Civil torna-se, no frigir dos ovos, um post sobre mais um capítulo da agonia das instituições da república: de repente, a sanha por cargos e emendas do PMDB, e a política de chantagem ao governo no Congresso, a velha novela repetida da política, acabou fazendo a corda estourar justo numa discussão essencial. E Internet é chave para a democracia contemporânea. Estamos presos no meio de um tiroteio entre um governo pouco disposto a atuar com as bases, mesmo quando ele propõe algo que realmente interessa às pessoas, e com uma política de articulação desastrosa, além de partidos "aliados" que comprometem a votação de temas essenciais para negociar melhor suas posições e interesses menores.

O Marco Civil, aliás, nada mais que uma lei federal que, no duro, regulará toda a matéria comum da rede, isto é, a nossa liberdade de compartilhar e arquivar dados, navegar. O atual texto é elogiado por ativistas da área e responde, justamente, às críticas à redação anterior do projeto, cujas ambiguidades assustavam a todos. Os interesses que se voltam contra a liberdade da rede, por mais que isso pareça distante, são das grandes corporações e das empresas de conteúdo (os provedores, por exemplo), interessadas em obter dados, além de teses que vão contra a neutralidade da rede, outros que defendem um papel mais intrusivo do Estado na forma como convivemos na rede -- não custa lembrar que há alguns anos, o deputado tucano Eduardo Azeredo chegou a propor o projeto de lei que ficou conhecido como "AI-5 Digital", pela maneira como propunha um controle autoritário da rede. 

Do ponto de vista da articulação política, houve demora do governo em entender e absorver as demandas de ativistas da área. Pior, uma vez feitos os devidos reparos, em um bom trabalho de Molon, o que poderia ser uma ampla campanha de mobilização em cima do tema, acabou dando lugar a um silêncio baseado na confiança na aprovação automática do substitutivo pelos "aliados" no Congresso. Tirando a própria campanha de aprovação do PL empenhada pelo mandato de Molon,Marta Suplicy, dentre os nomes de relevo do PT, apareceu publicamente falando em Marco Civil -- fora do governo e do PT, o cantor e ex-ministro de Lula Gilberto Gil talvez tenha chamado mais atenção para o tema que o próprio governo, com uma campanha pelo Avaaz.

Mas a história é sempre mais complicada do que parece. Embora dentre os marcos civis possíveis, este seja o melhor, é provável que a ingenuidade legalista da esquerda brasileira, e de ativistas da área, possa ter aberto uma caixa de pandora. Ao trazer para o campo da regulação legal um espaço que precisa ser livre, ao se pensar em uma lei que abrangesse a totalidade das relações civis na rede, o debate todo de liberdade na internet foi conduzido para a arena das forças institucionais de Estado -- talvez fosse o caso de, no máximo, discutirmos pontos específicos para contrabalancear eventuais arbitrariedades das corporações e do Estado, não criar uma lei geral, pois como ensina uma lição elementar do direito, o que não está proibido pela lei, está permitido.  

Os riscos são precisamente esses, não apenas do lobby das corporações em relação à forma do Marco Civil como, também, que os humores do Congresso, colateralmente, determinem um desastre na área -- como aconteceu agora. Pior, mesmo que este texto seja aprovado em certo momento, é fato que ele pode, como qualquer lei, sofrer emendas futuras que sejam desfavoráveis. O melhor lugar para resguardar a liberdade da rede não seria por uma lei geral, mas sim debaixo do guarda-chuva genérico do art. 5º da Constituição Federal com eventuais legislações e medidas de regulação administrativa, via Anatel, tomadas em cima de arbitrariedades concretas cometidas por provedores e quetais. 

Tanto é verdade, que apesar do debate atual sobre Marco Civil tenha nascido, de forma bem democrática, no seio do Ministério da Justiça do governo Lula, então encabeçado por Tarso Genro, a primeira tentativa de regulação legal da Internet foi ideia dos conservadores: era o projeto de lei nº 5403\2001 de autoria, ironicamente, do senador Luiz Estevão do PMDB-DF. Trazer para a rede para a regulação legal absoluta é sempre digno de desconfiança, pois gera riscos como estes que vemos. A ampliação do campo burocrático e legal, mesmo que a serviço de uma causa democratizante e socializante, constrói estruturas grandes de regulação da vida que, a rigor, cedo ou tarde se voltam contra a democratização e a socialização como nos ensinam Walter Benjamin e Rosa Luxemburgo sobre o papel da social-democracia alemã no pós-Primeira Guerra.

Mesmo superando esse ponto, não existe como um partido minimamente colocado ao lado das minorias não pode reduzir o jogo político às instituições de Estado sem ser derrotado ou engolido pela máquina. A problemática do PMDB é central ao se pensar o Brasil hoje, como já pontuamos por aqui. Por outro lado, enquanto as emendas parlamentares existirem, grosso modo, é preciso que elas sejam liberadas com critério e com a devida fiscalização, também não é possível que elas sejam simplesmente retidas e que isso se torne um cabo de guerra; a conversa se desdobra, pois, por outras vias: não é gestão administrativa feita à base de mão de ferro que vai resolver isso, mas,  como nos lembra o sempre atento Bob Fernandes, se o assunto é confrontar o PMDB, é preciso aprender com a lição dos garis cariocas.



2 comentários:

  1. Me "vi" no espaço da "liberdade vigiada" (Foucault) mas, dessa vez, por um partido que conseguiu "em nome da democracia" e por que não falar "em nome de deus" (re) colonizar a "arena" política para a manutenção do "umbigo nosso de cada dia". Se um dia a mídia foi (ou é) o quarto poder, o PMDB está entre o terceiro e o quarto. Senta ao lado do executivo, "e da papinha na boca" da mídia (comunicação) trocando voto por aprovação, aprovação por voto...

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    1. O problema do PMDB -- e do emcimadomurismo da política nossa de cada dia -- é central. O gatopardismo crônico do Brasil está em xeque, logo ataca como qualquer felino acuado. Só que a estratégia de Dilma -- bater de frente de maneira institucionalista, barrando a liberação de emendas, mas sem se conectar com as bases sociais -- está condenada a um fracasso óbvio. Ainda há como mudar isso, mas o tempo se esgota.

      abraços

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