terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Dilma vai à Cuba

A visita de Dilma Rousseff à Cuba é polêmica líquida e certa - e o é porque, antes de mais nada, Cuba não é uma simples ilha, mas o terreno central da disputa política e ideológica na América Latina, o que faz sua influência nos rumos do continente ser fortíssima ao longo dos últimos cinquenta anos, para muito além de suas limitações todas. 

O imaginário em torno do modelo cubano influencia mais as economias da região do que sua economia poderia, diretamente, sonhar em fazer - assim como seu peso nas reformas sociais e democráticas pelo continente nos últimos anos, por sua vez, excede o que seu sistema consegue realmente produzir de bondades internamente.  

A Revolução de 1959, que derrubou o ditador Fulgêncio Batista - líder de mais um dos tantos regimes fascistas apoiados pelos Estados Unidos - foi um evento mágico, no sentido em que criou uma alternativa profunda: a partir dali, era possível conceber outro caminho para a América Latina que não a de ser colônia velada de Washington. 

Se você acha que o sistema cubano construído ali transformou a ilha em um paraíso ou em um inferno, pare de ler este post agora. Se você acha que os problemas que aquele país tem são causados unicamente pelo bloqueio americano ou só pelos problemas do sistema local, idem. O mundo não se divide entre o plano e o mercado, como, para o mal, a China prova, então sejamos não-idiotas. A História não é um filme de bang-bang.

O país Cuba, bastante real, possui um sistema que não deixa de ser uma variante do nosso - o que se chama de engenharia reversa; se a diferença entre o capitalismo o velho regime é que no primeiro você entra em todos os lugares que pode pagar - a rigor, você entra em tudo -, no segundo o acesso é condicionado ao seu status. E o socialismo tem um pouco de velho regime, embora se funde na garantia da vida para todos e não no fazer morrer, deixar viver.

Na Moscou socialista, só os autorizados podiam morar na cidade, embora seus preços fossem semelhantes aos de toda União Soviética. O bom funcionário público se frustrava com o sistema por ser proibido de se mudar para lá. Com o capitalismo, qualquer um que pudesse pagar, poderia ir para Moscou, seus preços cresceram e a barreira passou a ser econômica: o bom funcionário da empresa privada se frusta consigo mesmo.  

A impossibilidade do socialismo à moda soviética de construir acessos automáticos, mesmo que defeituosos, levam a uma constante de frustração e esgotamento generalizado, com eventuais rompantes de revoltas em relação as quais o sistema não tem condições de lidar senão por meio da polícia - o que em último caso, contradiz o princípio fundante do sistema. Esse é o problema do antigo bloco socialista e não deixa de ser o de Cuba também.

No mais, revoluções dependem da manutenção do seu espírito nômade: ela precisa ser exportada e não parar de correr em linha de fuga. Uma vez as circunstâncias, ou decisões políticas, façam com que ela fique presa a um território, ela se corrompe. Esse também é um problema de Cuba, mas não foi da França. Nesse sentido, a relação com o Brasil, e abertura de um para o outro, é fundamental para ambos - e não custa lembrar que o Brasil, como a maioria dos países capitalistas, ainda é pior para se viver do que Cuba e o capitalismo vai mal onde ele aparentemente ia bem.

Resta a grande questão: deveria Dilma usar da relação histórica entre PT e Cuba para exigir a libertação dos atuais presos políticos cubanos e, também, permitir a vinda de Yoani Sánchez ao Brasil conforme tem se esforçado o Senador Eduardo Suplicy? Sim e Raul Castro deveria exigir explicações sobre o Xingu e o Pinheirinho. Cordialmente, sem estardalhaços para não servir à propaganda ocidental. Não estou sendo irônico, estou sendo cínico mesmo: realmente gostaria que isso acontecesse. 

Gostei bastante do que Dilma disse em Cuba: o Brasil não pode usar os direitos humanos como "arma de interesse político e ideológico" e de que temos "telhado de vidro" no assunto. A indignação seletiva, como nós vemos na mídia brasileira, é o que pode haver de pior. Mas Dilma precisa se esforçar mais no plano interno, afinal, ela não é uma analista política e sim a Presidenta da República. 

Sobre a mídia corporativa que fica indignada com o que se passa em todo território cubano, exceto em Guantánamo, e insiste em encobrir o Pinheirinho, só o humor salva. 

Eu quero que ela interceda pelos nossos desabrigados políticos antes de mais nada e que, também, influencie nos bastidores as necessárias reformas cubanas - que precisam engendrar o novo e não passar por reformas "de mercado" que sempre resultam no mesmo salve-se quem puder [pagar].

Gosto da liberdade de ser idiota que existe no Brasil e gosto da liberdade de não ser abandonado para morrer que existe em Cuba. Espero que esse seja o principal intercâmbio entre os dois países.



Sucessão Paulistana: A Guerra no Ninho Tucano

Andrea Matarazzo confronta manifestante pró-Pinheirinho/ Paulo Libert/AE

Os confrontos no interior do Partido da Social Democracia Brasileira seguem homéricos. Uma declaração um tanto forte, atribuída ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, "vazou" na imprensa: “A minha cota de Serra deu. Ele foi duas vezes meu ministro, duas vezes candidato a presidente, candidato a governador e a prefeito. Chega, não tenho mais paciência com ele”. Há poucos dias, em outro "vazamento" atribuído a Serra, o ex-presidenciável dizia a íntimos que FHC "está gagá" ao comentar a declaração do ex-presidente de que Aécio seria o candidato natural do partido para a eleição presidencial de 2014.

Na prática, são declarações citadas por conta e risco de jornalistas, não há nada oficial, mas também não há nenhum desmentido público de nenhuma das partes - nem interesse em fazê-lo, que quer dizer muita coisa. É certo que sempre houve uma disputa pessoal e ideológica entre ambos, Serra foi uma voz independente no governo de FHC e, depois, como candidato à sucessão do projeto tucano - mesmo sem ser o favorito de Cardoso - nunca se preocupou em defender o legado de seu antecessor - e à boca pequena, FHC sempre se queixou disso.


Agora, o negócio esquentou de vez. Serra perdeu as eleições presidenciais em 2010, mas falou ainda como líder da oposição no discurso da derrota, enquanto Aécio, o aclamado - pela mídia tradicional e outros simpatizantes da oposição federal - candidato tucano para 2014, se colocou em uma posição de superioridade que, no entanto, lhe custou caro: Serra articulou duramente ao longo de 2011, destruiu o DEM - principal sócio do PSDB e fiador animado de Aécio para dar lugar ao PSD de Kassab - e, assim, conseguiu permanecer no páreo - exatamente como prevíamos aqui há pouco mais de um ano

Mas 2012 reservou uma encruzilhada para o ex-governador paulista: a proximidade das eleições municipais e a falta de um candidato competitivo do PSDB, segundo ele próprio admite, o obriga a assumir a tarefa. Isso é uma armadilha na medida em que se aceitar o desafio, Serra terá uma vitória de pirro para suas pretensões - ganhar a Prefeitura, o que ele considera pouco, é abrir mão da Presidência - ou encerrar sua carreira com uma derrota - o que não deixa de ser possível, uma vez que, segundo pesquisa recente, sua intenção de voto é baixa para um nome tão conhecido (21%) e sua rejeição é a maior dentre os  possíveis candidatos (33%).

Há quem no PSDB municipal de São Paulo queira sua candidatura realmente. Seria um longo mandato como encerramento digno de carreira e a manutenção da Prefeitura nas suas mãos - o que nunca realmente saiu de suas mãos com Kassab, talvez só no final de seu mandato, embora o Prefeito paulistano não deixe de declarar abertamente apoio a uma eventual candidatura Serra (e ele, por seu turno, apóie publicamente um candidato do PSD, o que faria o PSDB abrir mão de sua candidatura própria).

Ainda assim, como até as pedrinhas da rua sabem, muitos daqueles que defendem a candidatura Serra, o fazem para vê-lo fora da disputa presidencial de 2014. Até mesmo seu desafeto local, o governador Geraldo Alckmin, herdeiro do esquema de Mário Covas, que mantém equidistância tanto de Serra quanto de FHC - que o veem como um provinciano desqualificado. Enquanto publicamente Alckmin defende prévias no partido - que, no entanto, estão condicionadas à decisão de Serra -, nos bastidores ele insiste para que Serra seja o candidato a prefeito.

Nas possíveis prévias, Bruno Covas e Ricardo Tripoli disputam com nomes historicamente mais próximos a Serra como Andrea Matarazzo e José Aníbal - dos quatro, apenas Tripoli, deputado federal, não é secretário do governo Alckmin. O governador, por óbvio, preferiria Serra na disputa, sem ele, prefere posar como o fiador das prévias e fortalecedor do partido. Seja como for, Alckmin é o único nome nacional a realmente defender uma candidatura própria, ou Serra ou alguém das prévias - tendo, nessa última hipótese, leve preferência por Bruno Covas, por considerar que tem uma dívida de gratidão com o avô dele, seu mentor político, o falecido governador Mário Covas.

Andrea Matarazzo, atual secretário estadual de cultura e ex-subprefeito da Sé,  que jamais teve proximidade com Alckmin - muitíssimo pelo contrário - enxergou o peso do governador no processo das prévias e agora passou a defendê-lo com unhas e dentes, seja em redes sociais como o Twitter ou publicamente - o que lhe valeu um bate-boca homérico com manifestantes do PSTU que protestavam contra a violenta ação policial no Pinheirinho. Em um momento em que Alckmin está em posição de defesa, sob pressão intensa dos movimentos sociais, Matarazzo está disposto a correr riscos para apagar um passado inteiro de inimizades com Alckmin.

Essa é a nada confortável situação tucana em São Paulo. E não custa lembrar que embora o eleitorado paulistano opte por candidatos do PSDB no plano estadual e nacional, no plano municipal as eleições normalmente ficam entre alguém da direita orgânica e o PT. A única vitória tucana em São Paulo foi com Serra em 2004 em uma eleição nacionalizada. Aliás, falando em nacionalização, nem isso é favorável ao PSDB, porque o"grande eleitor" dessas eleições é Lula, cuja indicação de voto é a principal opinião para metade do eleitorado e seu candidato é Fernando Haddad.

Diante dos problemas, o PSDB, que absorveu relativamente bem o choque petista nas eleições gerais de 2010 - mas sentiu o golpe no day after - está disposto a radicalizar à direita para vencer e não perder São Paulo. O que explica em grande parte as recentes operações policiais bancadas pelo governo do estado, conveniado com prefeituras próximas, na Cracolândia, USP e no Pinheirinho. 

O discurso da tolerância zero em segurança pública, não esqueçam, rende muitos votos, embora sempre esteja no fio da navalha, pois é possível que uma hora a minoria atingida, de alguma forma, se identifique com a população. Isso explica grande parte da repercussão negativa do Pinheirinho; para além da resistência firme dos movimentos sociais, o ataque aos "favelados" acabou soando como ataque "a famílias pobres" e se existe um resultado prático dos anos de lulismo, é a construção de auto-identificação do eleitorado com os pobres.

Portanto, Andrea Matarazzo fez uma aposta arriscada ao defender pública e enfaticamente a ação, tanto que Tripoli e Bruno Covas se esquivaram de fazer isso e passaram a semana pregando contra a crueldade contra os animais (o que é sintomático, aliás). Depois do choque frontal entre FHC e Serra, é difícil antever o que pode acontecer dentro do ninho tucano.

Para além das intrigas palacianas - exacerbadas no PSDB mas presentes de canto a canto dessa eleição -, muita coisa está em jogo nessa eleição, embora isso esteja posto nas questões de fundo. O modelo de governança urbana - a união de imobiliárias, bancos, seguradoras e a polícia - que se pretende implementar em São Paulo não é questão meramente local, é laboratório para o país como já tem sido em partes - e arrisco em dizer, para o mundo -, uma política (des)habitacional fundada na guerra civil permanente. O impacto nacional sobre o alinhamento das forças partidárias também não significam pouca coisa. O PSDB disputa, hoje, a gerência dessa forma de governança, embora tenha reais dificuldades de admitir isso.

É a decisão que sairá do confuso ninho tucano que, invariavelmente, deflagará a eleição municipal paulistana mais importante da história, repleta de candidatos novos e com mais forte repercussão na cena nacional.












segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Audiência Pública sobre o Pinheirinho

ainda está rolando agora na Câmara Municipal de São José dos Campos. Você pode ouvi-la por aqui e conferir o depoimento de moradores sobre a violência policial.

domingo, 29 de janeiro de 2012

Aniversário de Três Anos d'O Descurvo

O Tapete Voador de Vasnetsov


Hoje, este blog completa três anos. De 2009 para cá muita coisa aconteceu, foram anos intensos sob o efeito de uma crise global que mudou profundamente nossas certezas. Se os nossos pais viveram em um mundo disputado por dois projetos de futuro, hoje vivemos em um no qual não há mais projeto algum - o que é terrível na medida em que isso se deu pelo fracasso recíproco de ambas as vias, mas ironicamente permite à nossa geração, pela primeira vez em séculos, operar uma verdadeira transformação.

Esses três anos também equivalem à boa parte da minha estadia na graduação - que se encerra este ano, ou seja, até Dezembro, estarei definitivamente no mundo cão. O que eu escrevi por aqui retrata, portanto, o meu amadurecimento pessoal, político e intelectual. Isso sem falar nos bons encontros que ele me proporcionou e me proporciona. Não à toa, eu tenho uma inegável e profunda relação afetiva com este espaço. É um dos poucos lugares onde eu consigo dar vazão à minha potência produtiva e onde eu consigo ser feliz.

O blog segue (bem) acompanhado por sua pequena e fiel multidão de leitores/comentaristas, registrando aumentos constantes de movimento a cada ano, o que me anima a continuar produzindo firme por aqui, superando todos os sacrifícios que um blogueiro precisa fazer - seja no que diz respeito à própria sustentabilidade de um espaço autoral e que não resulta em retornos financeiros, ou mesmo naquilo que concerne ao desafio constante de manter a crítica afiada e, ao mesmo tempo, escrever para mais e mais pessoas.  

Neste último ano, acompanhamos atentamente a revoada de movimentos libertários pelo mundo, a começar pela Revolução dos Jasmins na Tunísia, que derrubou o ditador Ben Ali e serviu como pedra de toque para a chamada Primavera Árabe e, dali, para o movimento global Occupy. Ditaduras aparentemente inatingíveis caíram, mas foi mais do que isso: a própria tirania em si mesma foi posta em xeque. 

Enquanto isso, no plano interno, assistimos ao primeiro ano do pós-Lula, ainda que nas mãos de uma adversária direta da ditadura, trata-se de um verdadeiro corte histórico: pela primeira vez somos governados por uma mulher, pela primeira vez a governança se debate com a ascensão efetiva de setores que estavam incluídos marginalmente na nossa sociedade. A radical mudança no plano interno brasileiro choca-se com a mudança extrema no plano global e as consequências são imprevisíveis.

2012 começa com uma virada. Seja à reação aos ventos da liberdade ou uma nova etapa do capitalismo global: lembremos que a crise eclode no mercado imobiliário americano, um dos principais pilares do New Deal: A implosão do mercado imobiliário americano deflagra uma crise que é ao mesmo tempo macroeconômica - falência de bancos, imobiliárias e seguradoras - e social - milhões de pessoas correndo o risco, ou mesmo perdendo, de perder sua casa.  A crise é na Vida, não simplesmente no "econômico" ou no "social".



No Brasil, em ano de eleições municipais, não existe pauta mais nacional do que a questão local da moradia. Embora não tenhamos vivido uma experiência semelhante à da construção do sistema imobiliário americano, que ora morre, assistimos à nossa falta de política para a área explodir simultaneamente ao estouro da bolha que os nossos irmãos do norte criaram para dar conta do mesmo problema.   


Tanto é que a dois meses temos nos debruçado sobre essa problemática. O post mais lido do Ano III foi, precisamente, Dez Mentiras que Cercam o Pinheirinho, curiosamente, o mais recente deles - e o que mais gostei de escrever, ainda que diga respeito a um evento que eu preferia que não tivesse acontecido.


Portanto, o Ano IV deste blog, se inicia voltado para a cidade - como ambiente de coexistência primeiro e central da nossa cultura, naquilo que ela se entrecruza com a atual crise global, usando isso como artifício para desdobrar os binarismos local-global, dentro-fora, micro-macro e outros tantos. Segue aí a lista de posts mais lidos no Ano III segundo as estatísticas do blog:


Dez Mentiras que Cercam o Pinheirinho (Janeiro de 2012)
A Revolução Árabe: Líbia (Fevereiro de 2011)
O Corpo, a Mulher e o Egito (Novembro de 2011)
O Verdismo e o Nosso Tempo (Fevereiro de 2011)
O Papel dos Intelectuais no Contemporâneo (Outubro de 2011)
 A Tragédia do Rio (Abril de 2011)
Em Defesa do Pinheirinho (Janeiro de 2012)

O Google, o Facebook e o Twitter, nessa ordem, foram as maiores fontes de tráfego para cá, como é natural que seja. Na blogosfera, aqueles que mais enviaram público para cá foram o saudoso Biscoito Fino e a Massa de Idelber Avelar - e recentemente seu blog no portal da Revista Fórum, Outro Olhar -, o blog do João Villaverde e o Quadrado dos Loucos do Bruno Cava. 


É isso, minha gente, vamo que vamo.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Dez Mentiras que Cercam o Pinheirinho



Desabrigados do Pinheirinho -- Anderson Barbosa/Fotoarena/Folhapress


Com a tragédia ainda em curso, e a quantidade colossal de sofismas e boatos propositalmente espalhados acerca do Pinheirinho, me dei ao trabalho de selecionar as dez piores mentiras - no sentido de superstição consciente e oportunamente utilizadas pelo Poder - que estão a pairar por aí sobre o tema. Vamos lá:


1. "Não houve violações, a reintegração de posse foi pacífica"

Eis a pior e mais primária de todas. Vídeos aos montes, fotos aos milhares,  além de relatos emocionados de testemunhas oculares - como o nosso Tsavkko - e de moradores - dados, inclusive, para a imprensa internacional - contradizem isso. A polícia não veio para brincar, com sua tropa de choque, suas balas de borracha e sua sede por violência. Atacaram uma comunidade formada por famílias - seus velhos, suas crianças, pessoas com necessidades especiais - e quem ficou no meio do caminho apanhou. Sobre eventuais distorções da nossa imprensa, convido à leitura do que pensa sobre isso o Guardian, um dos principais jornais do mundo.


2. "A culpa é dos moradores, por serem invasores e/ou por não terem negociado"

É a tese do varão da república (do café com leite) Elio Gaspari, devidamente rebatida pelo nosso João Telésforo. Acrescentamos ainda que o Brasil possui 22 milhões de vítimas do chamado "deficit habitacional" - o eufemismo contábil que expressa a quantidade daqueles que foram largados para morrer ao relento -, o Brasil possui uma Constituição que fala em função social da propriedade privada e em dignidade da pessoa humana, o Brasil possui uma jurisprudência que não aceita a inércia da administração pública como desculpa. para não realização de políticas públicas. Outra, não estar nem aí para um contingente de milhares de pessoas - só no caso do Pinheirinho - é uma decisão política sua, portanto, assuma o risco dela, mas esperar que essa gente simplesmente tenha de sentar e esperar a morte chegar, é pedir de mais - ou mesmo aceitar um cheque qualquer e enfie o rabo entre as pernas do lugar onde ela estão estabelecidos, só para, no fim das contas, realizar o fetiche dos credores da massa falida de um mega-especulador.


3. "Foi um processo duro, mas cumpriu-se a letra da lei"
  
Nem isso. Na manhã de domingo, quando ocorreu a invasão, havia um conflito de competência entre a Justiça Estadual e a Justiça Federal, portanto não havia ordem judicial que autorizasse realmente qualquer reintegração de posse. Mesmo se houvesse, uma ordem judicial não equivale a uma carta branca da polícia para fazer nada, tampouco ignorar os direitos ou as garantias daqueles cidadãos asseguradas pelas Constituição.



4. "Os moradores estão sendo atendidos devidamente" 

Os moradores do Pinheirinho, depois de perderem suas casas, estão amontoados em igrejas, ginásios ou quetais. Eles estão ao relento e identificados com uma pulseira azul - por que não uma estrela azul logo de uma vez?

5. "Os policiais só cumpriram ordens"

Opa, tudo bem que militares obedecem ordens, mas isso não significa que, numa democracia, um oficial deva acatar irresponsavelmente uma ordem qualquer e executá-la da maneira que bem entende - com suscitou a secretária de justiça de São Paulo Eloisa Arruda -, do contrário, lhes seria autorizado atentar contra a ordem ("democrática"), o que seria uma hipótese absurda. É evidente que os maiores responsáveis por essa hecatombe são os senhores Geraldo Alckmin e Eduardo Cury - respectivamente governador do estado e prefeito municipal de São José dos Campos -, mas os oficiais que lideraram a missão tem sua parcela de responsabilidade nessa história sim.


6. "O Pinheirinho é uma espécie de Cracolândia" 

"Só se for no quesito da especulação imobiliária sobrepondo-se ao direito e à dignidade das classes pobres" como diria meu amigo joseense Rodrigo dos Reis. De resto, essa analogia - como foi utilizada pela Rede Globo - só duplica a perversão verificada no apoio à política de "dor e sofrimento", aplicada na região do centro de São Paulo chamada "Cracolândia" - um grave problema de saúde pública e de moradia, tratado à base de cacetete.
 
7. "O governo federal é culpado por ter politizado a situação"

Como testemunhamos na nota soltada pelo PSDB para "responder" o governo federal. Bom, nem vou perguntar como alguém poderia ter politizado uma situação que é política por natureza, mas como seria possível despolitiza-la. Ainda, é curioso como se responda ao quase silêncio do governo federal culpando-o por uma ação violenta que foi executada por dois governos seus, o estadual de São Paulo e o municipal de São José dos Campos. De novo, chuto o balde aqui: faça um, dois, um milhão de pinheirinhos, mas pelo menos assuma o que fez e não se ponha como vítima, as vítimas são os desabrigados.



8. "Os moradores do Pinheirinho são envolvidos com movimentos sociais radicais"

Membros do PSDB, como o pré-candidato paulistano Andrea Matarazzo, pensam o mesmo do correligionário Geraldo Alckmin, nem por isso alguém razoável defende que o governador seja arrancado à força do que quer que seja. No mais, o governador Alckmin ou os próceres da massa falida do Nahas na imprensa, deviam saber que vivemos numa democracia e as pessoas têm liberdade para se filiar ao grupo pacífico que bem entendem - nem na hipótese absurda de todos os moradores do Pinheirinho terem relação com o PSTU (que é como dizer que todos os moradores do bairro de Alckmin têm ligação com, p.ex. a opus dei), é fato que aquele partido jamais usou de força ou conluios no judiciário para desalojar um bairro inteiro, logo, quem é radical mesmo?


9. "O governo federal não podia ter feito, nem pode fazer, nada"

Podia sim, tanto que estava negociando uma saída pacífica, até que veio a invasão no domingo, uma boa dose de paralisia, uma comemoração de 25 de março com tucanos de alta plumagem e uma condenação vazia no recente fórum social mundial. Dizer que o Pinheirinho é Barbárie, até eu digo, Presidenta,  agora mandar hospitais de campanha do exército fornecer ajuda humanitária aos milhares de desabrigados, nem todo mundo pode - e mesmo vale para a construção de moradias dignas para eles no curto prazo. Importante: não estou nivelando tucanos a petistas, esse caso deixa claro que os primeiros não têm coragem de assumir o que fazem, enquanto os segundos não têm coragem de fazer aquilo que assumem - são papéis inteiramente diferentes.



10. "O Pinheirinho é uma catástrofe, estamos todos derrotados, não há nada o que fazer contra essa marcha invencível"

Toda marcha desse tipo, em seu interior, admite uma Leningrado - e eu não estou chamando tucanos de fascistas em um sentido histórico não, afinal, aqueles tinham coragem  moral de assumir o que faziam, isso foi só uma metáfora que guinadas reacionárias, por sua própria natureza, trazem consigo a possibilidade de sua derrota. No demais, não existe espaço para choradeira como colocou com precisão o Bruno Cava pelo papel que o Pinheirinho está cumprindo. Digo mais, repetindo o que já digo aqui o tempo todo: a favela é o locus definitivo de resistência daqueles que foram largados para morrer ao relento, é processo de luta, portanto, sua própria existência - e sua re-existência - é positividade pura. O antropofágico Pinheirinho, mais ainda. Derrota é a resignação, é sentar-se e aceitar morrer, nada disso aconteceu.


Atualização de 27 de Janeiro às 15:49: Assine e ajude a divulgar o manifesto para  denunciar as atrocidades do Pinheirinho para a OEA - neste link.


Atualização de 28 de Janeiro às 16:12:  Ontem, por ideia da Maria Frô, resolvemos traduzir o post anterior sobre o Pinheirinho para o inglês. A Renata Gomes ajudou na empreitada e eu fiz uns reparos - e a Sofia Smith, muito gentilmente publicou no seu blog, segue aí (qualquer problema na tradução, faça sugestões, o trabalho aqui é em rede e colaborativo):


Ten Lies That Surround Pinheirinho





With the tragedy still in course and with the colossal amount of sophisms and hoaxes purposefully spread about Pinheirinho, I put myself through the trouble of selecting the top ten lies – in the sense of being superstitions consciously and opportunistically utilized by the Power – that are surrounding the theme. So let’s go:

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

O Aniversário de São Paulo e uma Elegia para o Pinheirinho

Manifestantes lotam o Centro de São Paulo para protestar contra Alckmin e Kassab (via Bruno Torturra)
Hoje, a capital bandeirante completa 458 anos de existência. Se há um ano já era questão de nos perguntarmos se realmente havia o que comemorar, hoje, a mesma indagação se impõe: a principal universidade da cidade - e, por sinal, do país - está sob cerco policial e o mesmo vale para parte do seu centro, enquanto problemas grassam por toda parte. Enquanto isso, menos de cem quilômetros à leste, na pujante São José dos Campos, o impacto da desocupação violentíssima e ilegal da favela do Pinheirinho ainda é assunto recorrente, haja vista que seus moradores ainda estão amontoados em abrigos improvisados, identificados com inconfundíveis pulseiras azuis. O retrato disso é o centro de São Paulo tomado por manifestantes hoje.

O potente estado construído em torno do aniversariante do dia - que apesar de não ser o município mais antigo desta unidade federada, é a causa de sua existência como tal - convulsiona. E ainda que se argumente, com razão, da torpeza de seu prefeito, Gilberto Kassab, e de tantos outros escroques pelo estado adentro, como Eduardo Cury prefeito de São José dos Campos, existe uma teia que transcende aos esquemas municipais e se funda no Palácio dos Bandeirantes: é de lá, sob a égide do catolicismo conservador que o pacato Geraldo Alckmin, sem muito rumo ou prumo, articula uma rede que passa por uma assembleia legislativa inerte, um tribunal de justiça punitivista e elitista, um ministério público estadual delirante e polícias que matam no atacado.

Nem sempre foi assim. O estado de São Paulo de cem anos atrás tinha outra tônica. A chegada em massa de imigrantes do mundo todo produzia uma explosão de cores e sons, quase apagando o legado de estagnação causado por uma elite rançosa, herdeira de implacáveis colonizadores. Aquele bom encontro de um século produziu as greves anarquistas, a Semana de Arte Moderna, mas a velha São Paulo jamais deixou de mostrar a sua cara: essa elite que amava Mussolini e odiava Getúlio nos anos 30 - o que sugere que não gostava do último por suas virtudes - soube manejar uma geração inteira de jovens intelectualizados contra o autoritarismo do então ditador para, de um golpe só, fazer voltar a República Velha em 1932, o que marca um corte histórico importantíssimo.

O ardil de 32 - isto é, a exploração ideológica e meramente oportunista da ditadura Vargas - construiu um processo que ajuda a detonar o trágico 1º de Abril de 64 e que só vai encontrar uma barreira quando, ironicamente, ocorre o martírio de um judeu: a cerimônia ecumênica pela memória de Vlado Herzog na Praça da Sé é o começo do fim da ditadura e deu em um vendaval que vai até 1992, tendo em seu interior as greves do Grande ABC e a eleição de uma mulher nordestina como prefeita de São Paulo. Muito da redemocratização passa por ali, mas a reação não tarda e engole a esquerda em plano ano da desmoralização nacional da direita com o impeachment de Collor, Maluf derrota Suplicy na capital e reafirma o pior que havia da ditadura em plena São Paulo dos anos 90.

Dali em diante, tivemos o malufismo em São Paulo - brevemente interrompido por Marta Suplicy -, a ascensão do tecnocratismo tucano em escala estadual que rapidamente termina no colo do conservadorismo católico - precisamente no de um direitista orgânico chamado Geraldo Alckmin - e duas campanhas presidenciais, ambas histéricas e assustadoras, que partem de São Paulo e chocam-se com o projeto social-desenvolvimentista de Lula - não falo tanto do Serra de 2002, mas daquele de 2010 assim como do Alckmin de 2006. Muito pode se falar do que resultou nisso. Os problemas internos da esquerda - sobretudo do PT -, a incompreensão ao pós-industrialismo, da forma de luta ou de certo desprezo pela política estadual, mas o fato é que essa conjugação de fatores nos leva à presente situação. 


E o Pinheirinho é paradigmático. Não, nenhuma favela "pegou fogo" misteriosamente, não nenhuma ação foi feita com ar de legitimidade: sem ordem judicial alguma - e meio a um conflito de competência entre a Justiça Estadual e a Justiça Federal - a tropa de choque paulista tratorou uma comunidade com quase dez mil habitantes, deixando seus moradores desabrigados e marcados com inconfundíveis pulseiras azuis - o que com ou sem ordem judicial é um grave ofensa ao dito "estado de direito". Algo muito sério se rompeu aqui de uma só vez, surpreendendo partidos, movimentos sociais e a imprensa global - e a nossa também, mas graças ao lado que ela ocupa nessa luta, ela passa a agir de forma omissiva na cobertura, como captou bem o artigo do Guardian a respeito.

A posição do governo federal é curiosa. Sim, ele atuou relativamente bem nas negociações, buscando adquirir a área e, assim, resolver o problema, mas terminou recebendo uma rasteira de Alckmin com a invasão. Um secretário da Presidência chegou a ser baleado na invasão da polícia. Mas fora declarações vagas, não houve nenhuma pressão concreta para reverter a situação. Tanto, que o PSDB se sentiu confortável para soltar uma nota responsabilizando o PT pela tragédia no Pinheirinho (?!). Dilma veio para São Paulo onde, a pouco foi laureada por Kassab, mas não se encontrou com Alckmin, que sequer compareceu à missa de aniversário da cidade - e o candidato petista para a Prefeitura, Fernando Haddad, não apareceu junto de Kassab, retratando o confronto aberto entre parte do PT nacional, que quer enfiar goela abaixo um vice do PSD kassabista em sua chapa, e o seu desejo e o do PT de São Paulo, que querem se ver longe o kassabismo.


Entre a radicalização à direita do PSDB e as ambiguidades - e desencontros - petistas, somado a um grande meio campo fisiológico e preocupado apenas com seus interesses eleitorais - vide Kassab, que transita sem problemas de lado a lado do espectro político nacional -, a democracia no país sangra. Agora é hora de movimento e ação. Supondo que partidos políticos servem para algo, ele é que estão - ou deviam estar - em função de nós, não o contrário. E o ovo da serpente que está sendo chocado precisa ser destruído antes que ecloda.





domingo, 22 de janeiro de 2012

Em Defesa do Pinheirinho

A Resistência no Pinheirinho


Desde o final do ano passado, após o incêndio da Favela do Moinho em São Paulo, um assunto recorrente passou a ocupar este blog: a problemática da habitação - sobretudo neste estado de São Paulo -, fenômeno marcado pela articulação entre o Poder Público, a especulação imobiliária e a polícia. O mesmo volta a se repetir agora na favela do Pinheirinho, em São José dos Campos.

Com efeito, essa insistência temática não se deu à toa: um corte relevante realmente ocorreu. É um processo global que está, inclusive, na cerne da presente crise econômica, mas em São Paulo, último bastião realmente relevante do conservadorismo brasileiro, isso toma uma dinâmica perigosa. 

A bola da vez é a desocupação em curso - e completamente ilegal - da Favela do Pinheirinho, em São José dos Campos, o mais emblemático caso do atual ciclo: aquela comunidade, com seus milhares de habitantes, foi erigida em terreno pertencente à massa falida de uma empresa pertencente a Naji Nahas, um mega-especulador cujas pegadas podem ser vistas até mesmo na quebra da Boverj entre outros golpes - e desde então existe um conflito judicial se estende, chegando à culminância nas últimas semanas. 

O fato é que a Justiça Federal determinou a suspensão do processo de reintegração de posse do terreno, enquanto a União tem se mobilizado para adquiri-lo, mas uma sentença da Justiça Estadual a contradisse criando um conflito de competência - que deveria ser dirimido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). 

Eis que antes de qualquer decisão do STJ, foi desfechada a presente operação policial de desocupação do terreno, inciada nesta manhã de domingo, o que se constitui em tamanha ilegalidade que valeu inúmeros pronunciamentos do Presidente da OAB nacional, Ophir Cavalcante Jr.

Retomando o que já é dito por aqui, favela não é campo de concentração - ele é não zona de segregação -, nem alternativa de moradia, mas sim linha de fuga de um destino certo: a morte ao relento. É locus definitivo de resistência ao deixar morrer ao relento, ao qual estão condenados 22 milhões de brasileiros aproximadamente (mais de 10% da nossa população)!

O Pinheirinho é uma experiência de resistência desse tipo particularmente interessante: o modo como seus moradores se organizaram para resistir, travestidos como policiais é de uma antropofagia tão maravilhosa quanto espontânea.


Nada disso, no entanto, seria suficiente para impedir a entrada de força policial lá. Triste retrato de uma Constituição rasgada, na qual a dita função social da propriedade e a dignidade da pessoa humana jazem diante de uma jurisprudência que põe o patrimônio sobre a vida humana - e dessa vez, nem isso, pois a polícia não tinha autorização judicial para ter agido nessa circunstância.


Alckmin está disposto a ir até o final, sem concessões e sem parar. Os próximos anos tendem a uma intensificação de confrontos desse tipo - que podem acontecer de forma mais ou menos legitimada, mas dessa vez não houve sequer esforço nesse sentido, o que só aumenta a minha preocupação com a hipertrofia policial paulista.


É uma situação de uma gravidade sem tamanho. Diante da querela entre a massa falida de Nahi Najas e o direito a um teto para milhares de famílias não existe possibilidade de omissão.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

O Haiti é o Outro

Haitiano a espera de doação de alimentos em Porto Príncipe -- Carlos Barria/ reuters

Uma das principais notícias deste início de 2012 é a entrada massificada de imigrantes haitianos pelo extremo norte do Brasil.  Frise-se que não bastassem todas as desgraças que já aconteceram ao longo de sua história, a última convulsão política levou à ocupação de seu território por forças de paz da ONU - lideradas pelo Brasil, inclusive - o que foi sucedido por furacões, um enorme terremoto que varreu seu território e, ainda, uma epidemia de cólera - isso tudo, junto aos problemas da operação das Nações Unidas e a sua própria problemática interna, deixa o Haiti em uma situação profundamente vulnerável. A partir daí, o movimento migratório se estabelece como forma de resistência fundamental.

E a emigração, não resta dúvida, é um dos modos mais potentes de resistência dos pobres e dos oprimidos que, pela fuga, frustram determinada autoridade soberana. Trata-se de um dos processos de luta mais interessantes do nosso tempo como bem observam Negri e Hardt. É por meio desse movimento nomádico, para os Estados Unidos, Canadá, Caribe e outras partes das Américas que a multidão haitiana tem conseguido sobreviver: as remessas de recursos dos imigrantes haitianos para os seus é o que tem evitado uma hecatombe maior ainda, constituindo-se em uma forma móvel de driblar a burocracia sedentária e ineficiente que é o presente Estado haitiano, uma amálgama de militares das nações unidas, ONG's estrangeiras e o restolho da política local.

Pois bem, o crescimento relativamente grande do Brasil nos últimos anos, a baixa taxa de desemprego local e o crescimento da renda do trabalho acabaram por tornar o nosso país um óbvio receptáculo de trabalhadores imigrantes. Daí, a tornar-se outro destino óbvio de haitianos, era questão de tempo, o que veio a se potencializar este ano. Eis que o Estado brasileiro se pega numa situação na qual não se via há tempos e não sabe como agir. Políticos da oposição como o candidato a vice na chapa de José Serra, Índio da Costa, surge com um discurso xenófobo à moda dos demagogos americanos, enquanto no governo ninguém sabe o que fazer com as filas imensas de haitianos a espera de um visto, o que termina com a decisão de permitir a entrada limitada deles, um meio-termo patético, convenhamos.

O Brasil não tem razão alguma para bloquear ou dificultar a entrada de imigrantes no nosso território. É bisonho que se condicione a entrada sobretudo de haitianos, inclusive porque temos uma particular responsabilidade sobre aquela gente, na medida em que estamos a ocupar seu país - mais até do que isso, é estranha a qualquer plataforma libertária e democrática a segregação, o deixar morrer, no relento do outro lado da fronteira ou criar algum tipo de fila de espera kafkiana na fronteira. Apesar da tentativa de dourar a pílula vista na nota conjunta assinada pelos titulares das pastas da Justiça e das Relações ExterioresJosé Eduardo Cardozo e Antonio Patriota, sabemos bem do que isso se trata.

Com isso, reproduzimos algo que é bastante antigo no Ocidente: a forma de dominação mais elementar baseada na atribuição de identidade fundada no binarismo estrangeiro-cidadão (nacional), que vincula o vivente incluído a um código de normas, submetido a um soberano e apreciado pelo seu juízo, enquanto o excluído resta condenado ao relento - além disso servir para ameaçar os salvos com a possibilidade sempre presente de exílio. Esse estranho arcaísmo, fundado na servidão do vivente à coletividade e, depois, à soberania - com ou sem Rei, o que a rigor pouco importa - contrasta com o presente Império global, no qual as fronteiras tornam-se linhas tênues, dissolvendo gradualmente o binarismo dentro/fora, embora isso ressurja como reaparição do poder disciplinar, via biopoder, nas ocasiões em que os mecanismos sutis de controle fracassam, com o intuito de capturar a vida que se insurge por meio da fuga.

Imigrantes alteram substancialmente a vida das comunidades que adentram. Surgem com vontade de produzir, trazem consigo novos saberes e a possibilidade sempre bem-vinda de hibridização. O vento da liberdade é transformador como bem sabe o nosso próprio país - além de tantos exemplos históricos como os Estados Unidos e a Europa. A superstição recorrente do imigrante que o acompanha, de ladrão de empregos e de oportunidades dos nacionais, é tão falha quanto perversa, uma vez que efetivamente eles produzem oportunidades para todos e, não se esqueçam, até poucos anos esse argumento era utilizado contra nossos próprios compatriotas, quando levas brasileiras precisavam ir embora como na época em que os aliados de Índio da Costa governavam este país, p.ex - fato que não isenta, entretanto, o atual governo de assumir uma postura digna no caso, inclusive porque não será assumindo a histeria conservadora que se irá impedir seu retorno ao governo, aliás.


O problema mesmo, meus caros, é que o Haiti é sempre o Outro.





domingo, 15 de janeiro de 2012

Um Ano de Alckmin e a Guinada Bandeirante

O governador paulista Geraldo Alckmin, completado o primeiro ano de seu terceiro mandato, está no olho do furacão de uma ofensiva silenciosa. A capital do seu estado encontra-se em uma verdadeira guerra urbana marcada por operações policiais ostensivas no Centro e em sua principal universidade, a USP. 


A primeira ação é liderada pelo prefeito paulistano Gilberto Kassab, seu ex-aliado e atual desafeto, enquanto a outra é fruto da vontade de um reitor produzido por seu adversário interno José Serra - Apesar disso, Alckmin não parece ter problemas para mobilizar a sua polícia militar na forma de convênios para executar o programa. 

Alckmin tem dois trunfos que é a chefia da poderosa máquina bandeirante além de, ainda, ser o principal cacique de um importante naco do partido - que equivale, por sua vez, à herança de Mário Covas e os setores da direita católica que foram agregados por ele. Mas nada disso é suficiente para que ele realmente dê as cartas, uma vez que no fundo, a máquina partidária não está nas suas mãos - inclusive por sua baixa penetração na capital do estado -, sua ação, portanto, vai a reboque de uma agenda conservadora com a qual no fundo ele concorda, mas  para a qual tem pouca capacidade de pautar. 

Sim, Alckmin é um político paradoxal, sua força é tão grande em São Paulo quanto é pequena no resto do Brasil, a despeito de sua boa votação no pleito presidencial de 2006 - o que, no entanto, se explica facilmente: ele é forte em São Paulo sobretudo porque encarna muito bem o provincianismo local, o que sempre limitará sua capacidade de liderança nacional, ao mesmo tempo em que nenhuma pretensa liderança nacional pode realmente prescindir dele (como se vê no caso de Serra ou Aécio).

Foi ele quem ousou disputar com Lula em 2006, quando nem a crise do governo petista foram incentivos suficientes para José Serra e Aécio Neves aceitarem correr riscos. Foi o  primeiro gesto ousado da carreira de Alckmin e ele acabou dando com os burros n'água: frente a um político de envergadura histórica como Lula, a estratégia do governador paulista - isto é, defender o gerencialismo como alternativa à política -, fracassou, a despeito do momento complicado que vivia o rival. 

Dali em diante, Alckmin travou uma guerra interna contra José Serra para se afirmar como nome nacional do PSDB. A candidatura a prefeito de São Paulo em 2008 teve muito disso: ele forçou uma candidatura sem muito apoio para frustrar o lance de Serra - reeleger seu aliado Kassab para planificar o caminho para sua candidatura presidencial em 2010. Longe de sua distante Pindamonhangaba, Alckmin viu-se perdido em uma cidade que desconhecia e onde sua legenda é apenas uma opção pelos orfãos conservadores locais - que no fim das contas confiaram mais no ex-malufista Kassab e na figura nacional de Serra como o anti-Lula do que nele, que sequer foi ao segundo turno.

Se a jogada errada parecia ter sepultado a carreira de Alckmin nas majoritárias, as pesquisas para o governo do estado no pré-2010 se mostravam desalentadoras para a ala serrista: sem quadros e com Serra disputando a Presidência, o único nome capaz de derrotar o PT era o de Alckmin, que terminou ressuscitado depois de ser enfraquecido pelas duas derrotas. Em uma campanha contra um candidato governista escolhido em cima da hora, Aloizio Mercadante, o que parecia uma vitória certa, quase resultou em segundo turno. 

O que faria Alckmin de volta ao poder? Primeiro, uma mudança de rumo dos projetos herdados pelo seu antecessor, José Serra, uma política de arrocho fiscal - que, para variar, acerta em cheio os servidores públicos - e uma retórica cada vez mais voltada para uma política de segurança pública linha-dura - o que é um misto de demagogia, à la sociedade do  espetáculo, com a resposta às demandas de setores bem organizados em relação ao controle da universidade e dos espaços urbanos.


Uma das mais visíveis mudanças do legado serrista foi a alteração do eixo da política de transportes públicos, deixando de lado a construção do metrô na capital para os trens interurbanos - embora isso caminhe a passos lentos e com poucas preocupações com os ferroviários que, não à toa, o fizeram enfrentar uma preocupante greve em seus primeiros meses de mandato em razão de mais de dois anos sem reajustes. 

Já no caso do policialismo, 2011 foi um ano marcado pela repressão aguda dos movimentos sociais e manifestações pacíficas no estado, como no caso da repressão violenta à Marcha da Maconha - que resultou na Marcha da Liberdade, em sua resposta -, na USP - e agora em 2012, no Centro. No primeiro caso, o governo estadual agiu articulado com o seu Tribunal de Justiça, o que resultou logo mais em uma derrota de ambos no STF diante da platitude de que é constitucional manifestar-se pacificamente por mudanças legais (!).


No caso uspiano, não resta dúvidas de que João Grandino Rodas, atual reitor da USP, é uma criação de José Serra, uma vez que sequer foi o mais votado no oligarquizado sistema eleitoral daquela universidade, tendo sido indicado na lista bisonha listra tríplice ainda existente - num gesto que até então tinha sido repetido pela última vez, pelo então governador Paulo Maluf, ainda na Ditadura. 


Nem por isso, Alckmin desencampa as políticas autoritárias de Rodas. Pior ainda, sustenta um controverso convênio que colocou a polícia militar dentro do campus do Butantã para fazer funções que cabiam à guarda universitária - o que resultou em diversos incidentes, como a da abordagem violentíssima contra um estudante negro. Essa política une um temor desmedido com as potencialidades do movimento estudantil local com a demagogia de Rodas que, usando o governo do estado, visa a busca de apoio interno na USP, coisa que ele não possui pela maneira obtusa que chegou ao poder.

No que toca à Operação Sufoco, o grotesco plano de "revitalização" da zona central da capital via ação ostensiva da polícia, nada muito diferente: uma tragédia anunciada, em um projeto elaborado pela Prefeitura, em articulação com os interesses do setor imobiliário no Centro, igualmente conveniada com a PM. A presente operação vai na mesma toada da Operação Delegada, que até bem pouco se dedicava à reprimir artistas de rua pela cidade - num misto jocoso da paranoia do direito autoral junto com a gestão autoritária dos espaços públicos, enquanto a Operação Sufoco mistura ao segundo item a lógica da guerra às drogas, o que deve, ainda se prolongar por meses segundo ameaça o próprio Alckmin.


Não fosse suficiente, a ocupação de quase todas as subprefeituras paulistanas por oficiais da polícia ocorre sob a vista grossa do governo do estado - a onipresença policial só não é maior do que os assustadores relatórios que provam o inacreditável número de mortes causadas pela polícia paulista, superior a todas as polícias americanas juntas. Mesmo que a existência de uma política militarizada com poder sobre civis seja, inegavelmente, uma herança da Ditadura  Militar na carta democrática de 1988, nem por isso a elefantíase do seu uso está autorizada - o que se constrói na prática com a retórica da segurança nacional dando lugar a da segurança pública.


É de se notar que as tragédias acontecidas em plena "normalidade democrática"pelas mãos da polícia, seja em ações específicas - como o massacre da Candelária ou em Eldorado dos Carajás -  ou na sua atuação quotidiana, se referem a constante da dinâmica da exploração do poder contra a vida que se levanta, se negando a morrer, mas é claro que isso toma uma forma própria em cada estado. O que vemos em São Paulo são o resultado de um choque imenso da chegada do pós-industrialismo em lugar que se industrializou pesada porém tardiamente, processo em face do qual as administrações tucanas se posicionaram com uma tentativa de articular tudo por dentro do mercado.


Se o mercado, enquanto paródia que é do espaço público - como diria Giuseppe Cocco -, é incapaz de regular as relações sociais - e além de não dar conta dos problemas existentes ainda aprofunda ou cria outros tanto -, o cacetete e o velho poder disciplinar reaparecem para deter a resistência que se insurge. O quadro atual de São Paulo, portanto, alude a uma crise crônica da tentativa de totalizar o mercado, por meio de uma atitude gerencial dos últimos governos estaduais, como forma de adequá-lo à nova ordem. 


Nesse sentido, a recente articulação das ações do governo estadual com a conhecida - e crescente - atitude repressiva do seu Tribunal preocupa. Não custa lembrar dos enormes problemas em relação ao gerenciamento da enorme população carcerária do estado - como no caso da crise do PCC, acontecido no primeiro governo Alckmin -, constituída, em grande parte, pela overdose de medidas cautelares durante o curso do processo contra meros acusados - em geral negros e pobres - ou mesmo por aqueles que, já em cumprimento de pena, têm seu direito à benefícios de progressão negados, até pela falta de acesso à justiça. 


O último item foi, inclusive, objeto do recente mutirão do Conselho Nacional de Justiça que analisou inúmeros processos de presos condenados - além das investigações em relação a desembargadores do Tribunal de São Paulo que, em último caso, foi o estopim da recente guerra contra aquele colegiado fiscalizador. Também causa estupor, em matéria de justiça, os planos, encaminhados via Alesp, de esvaziar a ainda incipiente Defensoria Pública Estadual, passando a defesa gratuita de réus pobres para a OAB ao mesmo tempo em que propõe retirar a autonomia funcional daquele órgão, submetendo-o à Secretaria de Justiça - o que dificulta mais ainda o acesso à Justiça da população pobre.


Enquanto projetos não aparecem nas áreas de Saúde ou Educação, somado à manutenção  da estagnação de rendimentos dos servidores da área, o governo estadual anunciou, na contramão do Governo Federal, aumento dos tributos conjugado com a continuação do arrocho fiscal, implementado desde o ano passado. 


Paralelamente, Alckmin esforça-se para, ao contrário de Aécio e Serra, garantir o lançamento de uma candidatura própria do PSDB para a Prefeitura de São Paulo, com o intuito de fortalecer sua posição dentro do partido - mas o que pende sobre uma linha tênue, pois não só o eventual bônus dessa manobra seria capitalizado pelo atual governador, mas todo seu ônus também (sobretudo, em caso de derrota).


Com um cenário relativamente confortável na Assembleia Legislativa, e as incertezas do PT local - o que resulta na debilidade da oposição parlamentar -, o governador bandeirante segue em um cenário onde sua alta margem de manobra é precisamente a sua maior ameaça, sobretudo quando isso lhe autoriza a ousar. Nesse sentido, sua luta para esvaziar a influência do PT em muitos dos grandes municípios paulistas em 2012 faz algum sentido. 


Seja como for, os próximos três anos já tem uma tônica mais ou menos desenhada no estado, com acirramento das tensões urbanas nas grandes cidades, sobretudo São Paulo, e a hipertrofia do policialismo como saída, enquanto demandas específicas por serviços de educação e saúde tendem a continuar aumentando. Os contornos das políticas para a Justiça parecem mais preocupantes, mas dificilmente irão melhorar, o mesmo vale para a política universitária. Tudo isso com o seu governador como o mero gestor de um programa delineado. 



quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

A Metrópole Global: Economia da Dívida e o Leviatã Imobiliário

Favela da Rocinha no Rio
As metrópoles brasileiras testemunham a maior escassez de imóveis para alugar em dez anos, o que ajuda a entender o violento aumento de seu preço nos últimos tempos. Evidentemente, a crise imobiliária não se restringe ao Brasil, embora aqui, por óbvias circunstâncias históricas, estejamos às portas de uma situação limite: os milhões de brasileiros que vivem nas ruas ou em áreas irregulares são aquelas pessoas que foram, simplesmente, deixadas para morrer ao relento, mas que de alguma forma lutam nessa circunstância ou no locus definitivo de resistência urbana, a Favela.

No dito capitalismo cognitivo, o global e o local estão apartados por uma dobra, cuja relativa operação de desdobramento exige, dentre outras coisas, a compreensão de como se articula o sistema imobiliário: se em um nível macroeconômico, ele representa uma problemática que se afirmou na presente crise - e não nos esqueçamos que ela começa justamente no sistema imobiliário norte-americano -, no nível urbano, é a especulação imobiliária que dita a gestão dos espaços - e não há nada mais local do que a crise econômica em curso, nem nada mais global do que o aprofundamento da piora nas condições de moradia.

Na medida em que as condições gerais da exploração da vida, no capitalismo, não permitem à maioria das pessoas adquirir moradias, o século 20º foi profícuo em políticas de correção disso, o que quase sempre aconteceu pela articulação entre construtoras, imobiliárias, bancos e seguradoras: a lógica de endividamento decorrente do New Deal diz respeito, fundamentalmente, às hipotecas imobiliárias; os trabalhadores teriam acesso à moradia, desde que contraíssem uma dívida a ser paga em décadas. 

A suavidade daquelas parcelas sempre escondeu a dureza da governança instaurada a partir dali: como decidir os rumos sobre a própria vida, se uma dívida lhe fixa a certa territorialidade (que não é só a vizinhança, mas também a família, o emprego etc)? Ironicamente, os próprios recursos que eram "concedidos" aos trabalhadores pelo "benévolo" bem-estar à americana, na verdade, nasciam da abundância geral por eles produzida, mas que era, em seguida, espoliada para, depois, ser devolvida parcialmente para a realização do valor - só que de forma condicionada. Eis o mistério da dívida.

Enquanto os trabalhadores restaram condicionados daquela maneira, um mercado paradoxalmente mobilíssimo foi edificado em cima dos valores das moradias e do próprio risco especulado: a promessa da salvação (aqui, de não morrer ao relento) se estruturava pelo velho duplo esperança - a alegria de ter uma casa própria no futuro, o que alimentava a resignação no presente - e medo - tanto a tristeza por, eventualmente, poder vir a perder aquela posse, ou mesmo de não recebê-la, o que estrutura o mercado de seguros (e dos seguros de seguros).

Não por acaso, a presente crise americana foi disparada quando esse mesmo mecanismo começa a falhar com a insolvência dessas dívidas por uma série de motivos - inclusive pelo próprio aumento artificial desses valores como forma de alimentar as dívidas para o consumo (tendo em vista a deflação salarial dos anos 80 para cá), o que dá pano para manga e é assunto para outros posts -, o que não expôs apenas a base oca do sistema americano como também trouxe à baila a insustentabilidade das políticas de moradia, haja vista que um número crescente de americanos perdem suas casas.

Os países socialistas também não tiveram melhor sorte no século 20º, com sua produção de moradias de forma diretamente estatal e massificada - cujo legado é uma arquitetura homogênea e um imobilismo urbano, com o Estado estipulando diretamente aos cidadãos como e onde eles morariam, restringindo mudanças, reformas ou mesmo a construção habitacional em caráter cooperativo, fora da sua esfera disciplinar. A construção de moradias estatais em caráter para complementar a oferta não deixou, no entanto, de ser adotado de forma mista pelo mundo, sobretudo para atender os mais pobres - e no terceiro mundo, não deixou muitas vezes de ser um paliativo insuficiente que atende mais as relações promíscuas do Estado com as empreiteiras do que às necessidades dos mais humildes.

Mesmo a social-democracia europeia, com um misto de incentivo ao crédito imobiliário, a construção de moradias populares para os pobres e, ainda, uma potente legislação que força à realização da oferta de imóveis habitacionais - com medidas tributárias extrafiscais que visam a impedir a permanência de imóveis desocupados - não chegou à resolução do problema: enquanto o Estado move-se burocraticamente para produzir moradias, o incentivo às construturas e imobiliárias nem sempre é suficiente para que elas produzam e, não resta dúvida, se medidas legais, administrativas e judiciárias forçam a realização da oferta imobiliária, por outro lado, elas não atuam na ampliação da constituição de uma oferta potencial. 

Embora a baixa pressão demográfica arrefeça os problemas, é fato que a questão dos imigrantes - admitidos para sub-empregos e, assim, para o capital europeu driblar de forma branca a legislação trabalhista - exponha cada vez mais essa problemática. O controle de mercado exercido pelas imobiliárias, por outro lado, lhes permite abrir mão do risco de bancar novos empreendimentos e faturar o máximo que elas podem sobre o preço dos aluguéis e imóveis já existentes, o que causa aumenta dos preços.

Voltando ao caso brasileiro, temos três eixos históricos elementares: (i) a escravidão, que determinou durante séculos o agrupamento de enormes contingentes humanos no confinamento - e terminado tal período, o mesmo sistema os largou ao relento -; (ii) é a política iniciada em Vargas e recrudescida pelos militares, qual seja a expulsão das massas camponesas para as metrópoles para servirem de mão-de-obra barata para o capital, sem moradias suficientes; (iii) a atrofia histórica do nosso sistema financeiro, e depois seu crescimento como parasita da inflação decorrente da irresponsabilidade estatal, que não produziu, ao contrário do "primeiro mundo", uma indústria imobiliária potente.

O "déficit habitacional" brasileiro é enormíssimo: ano passado ele estava em 5,5 milhões de moradias.  Isto é, estimando que o tamanho médio de uma família brasileira é de 4 pessoas por lar, falamos de 22 milhões de pessoas deixadas simplesmente ao léu, deixadas para morrer sem abrigo. O governo Lula e sua continuação com Dilma Rousseff, busca tem metas ambiciosas para reduzir esse déficit, tanto com a capilarização do crédito imobiliário, à moda das social-democracias, quanto pelo programa Minha Casa, Minha Vida, que visa, em uma articulação entre Estado e inciativa privada, construir moradias populares em larga escala. 

No entanto, a problemática urbana, que apenas se agravou nas últimas décadas, se opera  debaixo disso, com a proeminência da governança do mercado imobiliário nas cidades: seus empreendimentos vão, aos poucos, assumindo uma parcela cada vez maior das construções urbanas, que passam a ser feitas, a partir daí, pra suprir demandas econômicas que se alheiam das demandas sociais por moradia, o que o leva a uma gestão dos espaços urbanos completamente violenta - o que não poderia ser articular sem a participação do poder público, como verificado na administração das grandes cidades brasileiras, seja na São Paulo administrada por Gilberto Kassab ou no Rio de Eduardo Paes

Outro ponto, e aí o processo brasileiro se entrecruza com uma tendência global, é que a financeirização do capitalismo força, cada vez mais, a exploração da propriedade e não mais da produção. O capitalista quer a segurança da renda - isto é, o ganho sobre a propriedade - e não o risco do lucro - o ganho sobre a produção, pela exploração do trabalho -, o que não consiste em uma deformação do capitalismo, mas a própria forma que ele tomou, uma vez que  há muito o capitalismo se encontra socializado na forma do mercado acionário, cujos ganhos estão ancorados em expectativas cada vez mais descoladas da produção - e o acionista não deixa de explorar a escassez dos títulos de maior retorno.

Trocando em miúdos, interessa ao mercado imobiliário, assim como para o capital de forma geral, que haja escassez, pois isso é precisamente a base material para a ampliação de seus ganhos hoje, o que joga sombras mais escuras sobre o argumento keynesiano padrão que identifica o rentismo como desvio de rota e não como o novo caminho. Com o agravante dos problemas de mobilidade urbana do Brasil e a ausência de leis - e de fiscalização - que façam valer a função social da propriedade, o teto para o aumento de aluguéis torna-se cada vez mais alto.

A Favela - assim mesmo, com maiúsculo -, dentro dessa realidade, opera como esse espaço resistente de quem habitou apesar disso lhe ter sido negado, pois resolveu não morrer. Isso passa bem longe da concepção apocalíptica, na qual ela é mero espaço de confinamento onde estão os deixados para morrer - quando, na verdade, ela é uma linha de fuga desse processo - ou mesmo da concepção romântica, para a qual ela é uma forma alternativa de habitação e coexistência - quem está lá é porque precisa, então a Favela é um  meio da luta por moradia digna, não um fim possível para esse processo. 

A renegação da Casa que lhe foi negada, a saída radical do sem-teto, não deixa de ser outro meio não menos pungente nessa luta. A experiência dos mutirões, ainda que primitiva e experimental, aponta para um norte ainda pouco explorado: a construção de casas de forma cruzada pelos membros de um território, o que invariavelmente afirma o comum existente entre eles, aponta para um norte interessante tanto à fuga do capital quanto da insuficiência socialista. 

Seja como for, mesmo uma breve investigação sobre a desdita habitacional como esta aponta para uma relação muito íntima entre a Casa e a Economia - que vai para além da etimologia da segunda palavra, ou talvez explique a íntima ligação entre as duas coisas (e da problemática entre a Casa e a Cidade, algo que já está nos primórdios da filosofia ocidental em Platão e Aristóteles). Em um ano de eleições municipais, a crise das metrópoles brasileiras não pode ser ignorada, tampouco as variáveis dessa crise devem ser simplificadas porque não há saídas fáceis, mas não resta dúvida que nunca antes o local e o universal estiveram tão próximos.