terça-feira, 11 de novembro de 2014

Os 43 do México: A Memória das Lutas da Terra de Zapata

Um crime abalou o mundo. Em Setembro último, 43 estudantes mexicanos despareceram no seu país depois de terem sido detidos pela polícia. O ocorrido se deu em Iguala, município localizado a apenas 190 km ao sul da capital mexicana. Os relatos são trágicos: eles teriam sido entregues pela polícia aos traficantes que comandam a região, os quais teriam dado cabo de todos eles e, depois, desaparecido com os corpos -- que até o presente momento não foram encontrados. 

As causas são mais bizarras ainda: o foragido prefeito de Iguala, José Luis Abarca Velázquez,  teria dado a ordem à polícia municipal e optado pela solução final. Ele fez isso depois de ficar furioso com um protesto dos estudantes contra sua esposa, ligada a um dos cartéis de tráfico que comandam a região e possível candidata à sua sucessão. 

Os estudantes vinham da Escola Normal de Ayotzinapa, na qual estudavam, e passavam por Iguala, pois se dirigiam para a Cidade do México, onde participariam das marchas de 2 de Outubro, dia central das jornadas de luta daquele país, quando se rememora o massacre da Praça de Tlatelolco, ocorrido em 1968. 

Tlatelolco, aliás, se trata de um dos episódios mais trágicos da história daquele país: o massacre se deu quando o governo mexicano autorizou que atiradores de elite fuzilassem, sem dó nem piedade, os estudantes universitários que lotavam a praça, protestando contra as péssimas condições sociais do país às vésperas das Olimpíadas da Cidade do México (ironicamente chamada de "Olimpíadas da Paz").

Eis que a História se repetiu como tragédia sobre tragédia. 

As escolas normais mexicanas, como aquela da qual vieram os estudantes, são um dos derradeiros marcos ainda existentes do projeto libertador da Revolução mexicana. O "normalista" é, acima de tudo, um forte e um inconformado; ele vem das classes mais baixas e se dedica a uma formação que busca transforma-lo em professor -- ou líder comunitário -- para as regiões mais carentes. Por isso, ele tem uma importante histórico de questionamento contra o falido sistema político mexicano. 

Os normalistas desaparecidos em Iguala, na verdade, honraram sua tradição -- a tradição dos oprimidos --, expondo um país dominado por cartéis de tráfico poderosíssimos, o quais estão altamente conectados com o poder político. O sacrifício deles não foi, como nunca é, em vão.

Há, portanto, uma intensa dimensão histórica no processo em questão, um contexto bastante determinado e preciso, que coloca o episódio para além de um caso pontual de "traficantes matando estudantes no terceiro mundo" ou de "corrupção policial"; tampouco falamos de um crime de Estado pontual, mas de um grande crime continuado que se dá desde a destruição, lenta e silenciosa, da Revolução Mexicana. 

Hoje, o México que aí está, se trata do perfeito exemplo do que as elites latino-americanas (inclusive a nossa!) defendem para o nosso continente: uma política externa totalmente rebaixada aos Estados Unidos, uma economia precarizada e condicionada ao Mercado e, sobretudo, um Estado grande na hora de praticar a repressão social e política. 

A tal guerra às drogas, a política de proibição e esmagamento militar do tráfico, pelo jeito serve apenas para ampliar o problema, enganando a população enquanto, na verdade, se produz drogas como nunca -- a preços altos garantidos pela proibição legal. 
Praça do Zócalo, centro nevrálgico do México, ocupado em protesto

Enquanto o populista presidente mexicano Enrique Peña Nieto, do Partido Revolucionário Institucionalista (há muito um fantasma do que foi a Revolução), segue sob pressão internacional para investigar o massacre, ele se depara com uma mobilização interna gigantesca para a qual certamente não está preparado.

Para se ter uma ideia, embora tenha sido expulso de seu partido, o  prefeito de Iguala veio do centro-esquerdista PRD, a menos pior das grandes agremiações partidárias mexicanas. O sistema mexicano, não resta dúvida, está falido como há tempos os zapatistas nos dão mostras. 

O porvir do México repousa na conexão entre o magnífico investimento desejante das ruas, em revolta com o arbítrio do poder soberano, com a bela Revolução que um dia o México presenteou o mundo, mas que restou diluída, implodida e mitigada pela máquina oligárquica do país. A luta no México é brasileira não num sentido humanitário, ou pelo simplismo que diz que o "México é aqui" -- ou que o Brasil pode virar um México --, mas porque aquele contexto singular de lutas nos atravessa em sua atualidade: derrotar o fascismo que está como face secreta, mas bem concreta, das "democracias-liberais", criar novos mundos, libertar, libertar, libertar...





domingo, 2 de novembro de 2014

A Marcha pela Intervenção Militar e a (nossa) Responsabilidade Histórica

Ontem, algo em torno de duas mil e quinhentas almas foram à Avenida Paulista pedir o impeachment de Dilma Rousseff e/ou uma intervenção militarO evento em questão, por seu turno, foi fruto de uma convocatória por Facebook que chegou em torno de 100 mil confirmados; ainda que a adesão presencial não tenha sido nem de 5% do total, a gravidade das pautas  fala por si.

Fato a se lamentar, sobretudo se pesarmos todo o legado de violência de Estado, crise social e econômica que os militares, em 21 anos de ditadura, deixaram para o nosso país. Pior ainda, é a sensação de que na hora em que a parte derrota resolve pedir a bola e encerrar o jogo, algo vai mal.

A crise em questão, pois, é de legitimidade. O que está esgarçado não é esta ou aquela força política propriamente, mas a própria substância do sistema. O perigo disso é que a crise apresenta um forte conteúdo suicidário: a erosão se faz em direção ao Nada, diante do vazio que se daria dessa explosão sagrada, basicamente teria contornos fascistas.

O mito da salvação tem um pé no teatro clássico e o outro no messianismo. Entre os helênicos e os romanos, um deus brota do nada na cena e resolve uma impasse -- o theos ek mekhanes helênico ou o dei ex machina romano --, enquanto para a tradição messiânica, um enviado do divino nos salvaria do nosso próprio destino -- com um dualismo importante sobre o custo de sua morte.

A ideia, tanto de golpe quanto de revolução, bebe nesse fantástico sincretismo. A ruptura pode apontar para um vida nova ou para o abismo. O caso brasileiro, no qual as tensões sociais se acumulam e não encontram uma resolução razoável nas instituições, é, pois, grave. E é grave justamente porque a solução, ou minoração de parte dos problemas, encontra uma forte reação social.

O último processo eleitoral, marcado por uma forte disputa resolvida por uma vantagem mínima a favor de Dilma, coroou essa conjuntura de trevas. A insistência de líderes tucanos de manter a ofensiva e se negar ao diálogo, mesmo passada a votação, colaborou para o quadro visto ontem. E isso veio da boca de um FHC, ecoado por um Alberto Goldman -- que ontem, entretanto, teve de recuar diante dos fatos de ontem.

Hoje, a rivalidade entre petistas e tucanos, que poderia ser altamente qualificada, infelizmente, faz mal para ambos e para o país. Mas se é possível fazer uma crítica do discurso e da prática petista por vários aspectos, é certo, no entanto, que quem tem flertado com setores extremistas é, infelizmente, o PSDB. 

E isso cobra a conta de um partido como o PSDB que, bem ou mal, se forjou na luta contra a ditadura e por uma redemocratização mais qualificada. Se arriscar a abrir uma caixa de pandora dessas, por resultados eleitorais momentâneos, é o mesmo que lançar a democracia brasileira em uma espiral incontrolável.

Se o aspecto representativo da democracia brasileira está em xeque, por outro lado, a ação do Congresso em barrar o desenvolvimento dos mecanismos de democracia participativa é igualmente sintomático.

As instituições de 1988 estão em crise, ironicamente no cinquentenário do golpe militar -- naquela ocasião, a adesão de uma direita liberal ao golpismo foi decisivo: e aquilo tudo, afinal de contas, levou a uma espiral de eventos que engoliu muitos dos conspiradores de primeira hora, resultando em um fascismo louco que tomou a vez do que deveria ser uma democracia "limpinha", a qual estaria assentada num bipartidarismo "purgado" de elementos populares e de esquerda (ou da "corrupção"). 

O que se viu no Brasil dos anos 60 e 70 foram as entranhas das forças armadas e do Brasil profundo emergirem para a cena pública. Se alguns liberais o fizeram de forma desavisada, agora as consequências são conhecidas. E nem é, ou não deveria ser, preciso refrescar a memória de um FHC, de um Goldman, de um Serra, de um José Aníbal ou de um Aloysio Nunes etc. O mais irônico é que o PSDB não precisa de nada disso para voltar a vencer, talvez precise de muito menos, mas certamente não é elevando o tom das notas erradas que encontrará o caminho das pedras.

E as esquerdas, que novamente se vêem diante dos impasses e os dramas de um governo trabalhista, precisam proteger o terreno comum que as unem, do contrário, se unirão, como sempre, no cárcere. Dilma, por seu lado, terá de reconhecer a gravidade da situação e, assim, em vez de montar um corpo ministerial apenas "conciliador" -- como lhe parece tentador --, precisa compor um quadro mais pró-ativo -- no qual terá o papel de maestrina, não de solista. A presidenta terá também de lembrar, para seu próprio bem, com quais setores pode efetivamente contar nos piores dessa eleição.

A cacofonia, essa imensa barulheira da política brasileira de hoje, serve apenas aos perversos e aos oportunistas. Um canoa furada que, ainda por cima, soa mal. Fujamos disso.