(Trecho de uma aula de Deleuze sobre as ideias, os afetos e afeccções em Spinoza)
Recentemente, em uma conversa por e-mail sobre Spinoza, a minha amiga Flávia Cera - dona da excepcional Mundo-Abrigo -, me deu uma excelente dica sobre o pensador luso-holandês: O Webdeleuze, site onde está publicado uma quantidade interessante de cursos que ninguém mais, ninguém menos do que Gilles Deleuze deu sobre pensadores como Kant, Leibniz e, claro, o próprio Spinoza, além de manuscritos, imagens e aúdios. Ontem, estava lendo um desses cursos, datado de Janeiro de 78 - onde o pensador francês trata das ideias, dos afetos e das afecções em Spinoza - e topei com esse trecho, absolutamente genial que me provocou um estalo.
Resumindo um pouco do que se trata o texto, encontramos que, embora Spinoza adote, a princípio, a definição clássica de ideia como um símbolo representantivo de alguma coisa, ele afirma que as ideias, em si, são uma coisa própria e se diferem dos seus ideados - a coisa representada -; mais do que isso, nossa relação com o mundo não se resume às ideias que temos sobre ele, mas também aos afetos - no sentido de sentimento mesmo - que temos sobre as coisas que conhecemos - quando você, meu caro leitor, entra neste blog, você não apenas tem certa ideia do que ele significa, mas também sente alguma coisa, portanto, sua compreensão sobre ele não se limita a como você o representa mentalmente, mas também como você o sente. Além disso, há outra espécie, que são as afecções, grosso modo, o resultado da interferência de uma corpo sobre o outro, mas não vou entrar nessa parte em específico.
O que me chamou a atenção mesmo foi esse parágrafo em especial que eu transcrevi. Uma sacada de Deleuze sobre uma das muitas ideias que Spinoza levantou no Tratado Teológico-Político (mas também tem algo da Ética aí): A dominação política tendo por fundamento a tristeza. O trecho fala por si próprio. Spinoza, que era um intelectual profundamente atuante em seu tempo, lutou tanto contra as superstições que fundamentavam a dominação religiosa quanto contra o despostismo esclarecido da Casa de Orange - que era esclarecido, mas não deixava de ser despotismo -, portanto, ele sabia muito bem sobre o que falava.
Exemplos históricos não nos faltam. Desde a forma de dominação realizada pelo bolshevismo na União Soviética, responsável por arruinar a Revolução com o maior potencial emancipatório da história humana - bem como os seus regimes derivados pelo mundo -, até a esquizofrenia do nosso mundinho globalizado e pós-modernoso se sustentam na necessidade de ter pessoas frustradas, apáticas e, portanto, incapazes de exercer seu potencial criativo, estando, assim, submetidas à sujeição.
No nosso tempo, as pessoas estão submetidas a um sistema que lhe rouba o significado na vida e as condiciona a guiarem suas ações para um enriquecimento meramente material, elemento que lhes permitirá adquirir coisas de todos os tipos de coisas, vendidas sob as promessas de servirem como o bálsamo definitivo para essa lacuna nas suas existências, mas esse vazio nunca fecha; quanto mais consumimos, mais nos sentimos frustrados por não termos mais. Estamos tristes o tempo inteiro. Quanto mais a sociedade de consumo avança, mais estamos consumidos enquanto os donos do poder, aqueles que ganham o que gastam, estão incólumes.
Para fechar o quadro, os setores que se prestam a promover o discurso e a ação contra-hegemônica, nos mais variados espaços, não raro, trazem em seu interior uma lógica de dominação; quantos partidos de esquerda não se organizam numa estrutura profundamente hierarquizada, que barra a ação criativa e criadora de seus membros de modo decisivo, repetindo internamente a mesma lógica de dominação que dizem combater? O bolshevismo russo é um belo exemplo disso, seja enquanto organização contra-hegemônica ou, depois, enquanto corporação total - e totalizante - da União Soviética - bebendo na frustração aguda de uma sociedade que não podia se expressar, onde o exercício da política, assim como de todas as outras artes, era monopólio exclusivamente seu.
Em suma, tudo isso faz um enorme sentido. A verdadeira ação política libertadora deve ser norteada pela alegria, pela superação do binarismo e representar, assim, uma subversão da prática da dominação, não a sua substituição - onde entraria em cena um leviatã escarlate, demiurgo social, cujo lider, revolucionário e herói, estará destinado a ser ser déspota e sumo-sacerdote do credo oficial.
Fala, Hugo
ResponderExcluirCreio que o exercício do poder também passa pela manipulação (ou melhor, do direcionamento) das paixões alegres, pois estas são necessárias para o funcionamento da máquina produtiva da sociedade. No nosso caso, por exemplo, constrói-se um ciclo de realimentação esquizofrênico: tristeza -> portanto, compre -> alegria -> portanto, trabalhe - > tristeza -> ... num regime feudal, substitua 'compre' por 'reze' e temos outro gênero de arapuca.
Ah, e se por binarismo você se refere à lógica do Terror segundo o Alexandre Nodari... superá-lo é o mais difícil desafio - construir mil casas usando somente palito de dente e cola branca seria muito mais fácil!
Luis,
ResponderExcluirÉ uma boa questão, mas esse processo de direcionamento seria insustentável porque, ao estimular paixões alegres, os súditos teriam sua potência de agir aumentada e, assim, exerceriam sua criatividade ao máximo, tendo meios para questionar tanto o déspota quanto o sacerdote.
Se esse estímulo fosse demasiado, o que ocorreria seria a exaustão dos súditos, o que, aí sim, inviabilizaria o processo produtivo. Por uma perspectiva causal, se você estimula o consumo, na realidade, a felicidade momentânea seria fugaz - em suma, quando o sistema estimula o superconsumo, ele não está produzindo alegria, já que essa paixão dificilmente compreenderia a ideia de direcionamento ou controle, mas sim um simulacro cuja utilidade é a produção de tristeza.
Quanto ao binarismo do qual o Alexandre se refere, creio que sua origem está, sobretudo, no idealismo burguês - e, portanto, não é fácil superá-lo mesmo, mas não é complexo.
um abraço