(A Liberdade Guiando o Povo - Delacroix)
O Brasil sofreu mudanças muito profundas nesses últimos anos. A grande narrativa estabelecida pela esquerda para derrubar o regime militar nos anos 70 foi, sem dúvida, a protagonista de tal metamorfose que vai dos fins do século 20º até o momento presente e dá a impressão que daí eclodirá algo novo. Complexa ao extremo, ela possuia uma estrutura muito mais principiológica na medida em que consubstanciava em uma intuição de justiça socialmente comungável, metas gerais e abstratas em comum, do que por uma fórmula pronta e estanque como era até ali. Os discursos, flexibilizados, continuavam a existir em profusão, mas o seu não raro antagonismo deixava de ser motivo para rachas insuperáveis porque existiam vigas estruturantes que de certa forma as atavam, nem que fosse pela intenção comum.
Havia princípios, nortes, mas isso, por óbvio, não dispensaria uma formulação mais regrativa, isto é, determinante e específica. Em suma, a ideia de um projeto, metas mínimas já deixavam de ser suficientes porque se fazia necessário criar planos de execução. Isso vai provocando a erosão desse consenso; o que também é marcado pela natural saída dos grupos anti-ditadura que não estavam preocupados em construir uma saída contra-hegemônica, mas mesmo dentre os que compartilhavam dessa saída, surge um dilema, especialmente nas fileiras do PT no que vai de 89 a 02 - seja pela sobrevalorização da disputa no sistema de representação burguês ou pelo fracasso em construir uma estrutura que comportasse o discenso de forma construtiva. A Carta ao Povo Brasileiro foi esse documento necessário que, no entanto, não se construiu coletivamente, ao contrário foi a prevalência de um discurso interno sobre vários outros - o que não quer dizer que era o pior plano, mas que não foi construído da melhor maneira.
O ponto é que o Governo do PT foi um sucesso dentro de várias áreas. Ainda que, insisto, tenha apenas arranhado algumas potencialidades do próprio projeto de 88, qualquer comparação elementar entre o Governo atual e os outros três que tivemos de lá para cá, concede uma ampla vantagem para Lula. A crise no projeto petista, uma crise nas suas estranhas provocada pela maneira como a elaboração do Plano saiu, o enfraqueceu, mas eis aí que foi hora do Plano B do petismo tomar força: O Lulismo. O uso do simbolismo do Pai como forma de realizar o projeto até o final. Isso está em Lenin, o uso do simbolismo nacional de modo subversivo, o direito sendo produzido para quando atingir o seu fim ser removido e o mesmo para o Estado-nação; aqui, falamos na figura do Pai - Na União Sovietica isso foi um desastre, será que o mesmo vai se operar aqui?
É à sombra dessa figura magnânima que se desenrola a política brasileira de hoje, vamos investiga-la: A figura do patriarca é o elemento central da política nacional; o pai que paira e que pode ser visto tanto como aquele que nos protege e nos guia quanto como aquele que nos reprime - e essa é a máscara que usaram os maiores líderes do país, Pedro I, Pedro II, Vargas e, como simulacro, em Lula. A revolta que deu origem à república foi a de uma elite que já se considerava madura o suficiente para se aceitar tutelar, o ato que transformou Vargas em nosso Monarca Absoluto, um gesto de arrependimento cristão da mesma elite, que agindo como filhos pródigos elegeram nosso guia. A Ditadura Militar foi uma tentativa de negação do patriarca, instalando o projeto que os oligarcas rurais barraram, a República da Espada - e a História se repetiu como farsa. O patriarcalismo lulista, no entanto, é uma farsa calculada destinada a realizar o projeto democrático e popular, uma artimanha que, como toda farsa calculada, pode se tornar verdade.
Vamos voltar um pouco mais, o país pós-ditadura era, sobretudo, um país esvaziado em termos narrativos. A grande narrativa nacional acabou porque seu último sustentáculo, a aura de pureza em torno dos militares, se esvaziou. Esse foi o tempo em que se massificaram as narrativas modernização, em grande parte estrageiras, que deu origem à Grande Narrativa a qual eu me referia no começo. A luta no Brasil dos anos 80, 90, para além da luta interna no campo da esquerda, foi uma luta disso contra a anti-narrativa da direita que depois da sua derrota acachapante, travou a agenda do país para negociar o processo de transformação baseado no velho mandamento do "mudar tudo sem mudar nada". Isso se consubstancia no Plano ironicamente chamado de Real, sem dúvida a maior ilusão em massa já vista por essas terras, o escolhido para ser seu guia foi FHC, figura ímpar na história nacional, intelectual de relevo - mas longe de ser o que ele se julga - que na tentativa de materializar seu desejo de poder, assumiu uma máscara política que nada mais é do que ridícula caricatura maquiavélica.
O FHC de hoje é uma figura que dá pena. Derrotado, o seu pesadelo onde ele é esquecido cada vez mais se aproxima, seja pela força do Lulismo diretamente ou, indiretamente, pelos efeitos eleitorais que isso produz e leva seus próprios correligionários a escondê-lo. O que FHC faz? Algo mais do que seus companheiros de partido, haja vista que se presta a debater publicamente, ainda que o resultado disso, a via de regra, seja pífio - como a entrevista dele ao Estadão , uma peça de afirmação do Lulismo pela negação, onde Lula é o bicho-papão cuja sombra pesa sobre os seus quase-mea-culpa de sorriso amarelo, as ilações do que poderiam ser um Governo Dilma beiram as teorias conspiratórias udenistas e, no fim das contas, o que está posto é uma crítica às virtudes do atual governo (por um misto de inveja com discordância idelógica) e não aos seus defeitos; FHC diz:
"Hoje, em lugar de procurarmos combinar representação clássica com participação, corremos o risco de substituir tudo isso pela figura do tutor. É um perigo. Daniel Bell (professor de filosofia na Universidade Tsinghua, de Pequim) escreveu um artigo dizendo que os chineses têm uma ideia diferente dos ocidentais: com a generalização do voto e o desejo da massa de contar com uma figura simbólica, eles têm medo de não eleger os mais capazes e sim os de maior poder de comunicação."
Em cada gesto, em cada análise, existe o ranço contra o Lulismo, a democracia como um massa amórfica, pronta a assumir a forma necessária para cumprir um fim, a destruição da figura do Patriarca, o monstro que ele achou ter destruído por duas vezes, mas voltou mais forte ainda das profundezas do inferno; se por um lado ele acausa Lula e Dilma de planejarem transformar um Brasil numa China com o seu economicismo, por outro lado, a ideia da meritocracia chinesa, algo que de certa forma remete ao feitiche-mór dos nossos bacharéis, aparece de forma simpática: O que melhor se comunica pode não ser o melhor político, a arte política perde sua autonomia e se torna apenas um espaço vazio a ser ocupado por intelectuais dos mais variados setores que, por certo, irão colocar ordem. O discurso do PSDB hoje, não existe, é um anti-discurso, não raro terceirizado, trata-se de um anti-lulismo, um anti-povismo, nem mais como engôdo ele serve - como se comprova na fala de FHC onde ele, ao tentar deslegitimar o movimento reivindicatório dos professores paulistas, acaba contradizendo tudo que disse sobre educação e ainda demonstra um esgotamento da sua narrativa em dirimir contradições.
No fim das contas, o que temos é a velha dicotomia entre o Coronel e o seu filho Bacharel, a eterna relação esquizofrenia que dita os rumos da nossa política. O grande ponto é que o Lulismo, a grande marionete da qual o petismo faz uso para se realizar, assume-se na figura do Coronel para desmontar o jogo. Quando Roberto Jefferson plagia um artigo de Olavo de Carvalho, não temos apenas uma cena que remonta ao ridículo da nossa história política, mas também, nada mais nada menos, do que denúncia - e o pânico da nossa elite - de que Lulismo está, na verdade, corrompendo a oligarquia rural e não o contrário, como sempre aconteceu; Aí, temos um ponto de inflexão sim, numa tática que pode ser sim desvirtuada - e talvez pela própria espectativa de ser desvirtuada é que ela esteja rendendo frutos até agora. Veremos até quando, na política quanto mais você radicaliza no alcance dos fins que você pretende, mais você se aproxima de passar por cima dos valores que possibilitam que você chegue lá, portanto, não é fácil saber o que acontecerá e a causa disso é que o jogo se dá longe da praça pública demais para termos alguma visão mais exata dele.
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