domingo, 25 de abril de 2010

Cuba, Yoani e o Socialismo

O debate sobre Cuba, como eu sempre insisto em dizer, é uma dos debates mais viciados do nosso tempo. Não cabem aqui observações contrafactuais sobre 1959,  processos genuinamente revolucionários como aquele não são feitos, mas sim se fazem por si próprios:  A Revolução é uma consequência necessária de um determinado estado de coisas - um conjunto de decisões políticas ao longo do tempo, somado a questões estratégicas e peculiaridades econômicas -, onde o poder político estabelecido não é mais capaz de responder às demandas econômicas, de modo que a ordem posta não é consegue mais se sustentar e algo novo irremediavelmente nascerá - sobre esse "algo novo" cabe uma análise, afinal, as consquências de uma Revolução não estão estabelecidas de forma definitiva no momento de seu clímax, diferentemente da sua ocorrência em si, onde encontrados certos pressupostos, está posta. Isso se diferencia do próprio Golpe de Estado, pois nesse caso há uma crise de liderança que acaba, por algum motivo e de qualquer forma - especialmente violenta -, sendo trocada; a ordem política estabelecida não caiu - porque não estava em xeque mesmo -, apenas foi transformada com a inserção de uma nova liderança.

A Cuba dos anos 50 estava às voltas com o estouro de uma Revolução, pois a ordem estabelecida na sua tardia - e sui generis - independência, temperada com a Emenda Platt, estava alcançando um estado de insuficiência crítico - e a crise, no sentido grego da palavra, o momento onde esse decide e distingue às coisas, se conecta em seu modo mais puro e profundo ao conceito de Revolução. Muito embora pode se alegar que a vida em Cuba era melhor do que no restante da América Latina naquele momento, aqueles que se usam dessa argumentação se esquecem ou simplesmente ignoram dois fatores (I) A ordem estabelecida não tinha mais meios para se sustentar daquele momento em diante; (II) Citando de ouvido um conservador como Simonsen, se você corta uma pessoa ao meio, coloca a cabeça no forno e os pés na geladeira, a média entre as temperaturas levará a crer que tudo está bem com ela - ora pois, a boa qualidade de vida no período era uma miragem estatística, em um lugar onde alguns viviam como cidadãos do mundo desenvolvido e outros viviam na miséria, logo, essa foi uma das causas do próprio esgarçamento da ordem.

No processo revolucionário, é o Movimento Revolucionário 26 de Julho, de Fídel, Che e tantos outros que se sai vitorioso, para pouco depois, com a reação americana, jogam a nova Cuba que nascia para o outro lado da Cortina de Ferro - o que também não é fruto apenas disso, como também da posição ideológica de muitos dos combatentes, como o próprio Che e Raul Castro, o que empurra a figura que emerge da Revolução como uma liderança, Fídel Castro, para os caminhos do Marxismo. Cuba se torna uma economia planificada, com todas as vantagens e defeitos de uma delas, precisa suportar o duro golpe do embargo americano - pesadissímo, principalmente se levarmos em conta que inscipiente porém necessária indústria cubana estava estruturada sob o modelo americano, dependendo do comércio de peças e maquinário com o grande irmão do norte. Os revolucionários que apenas em 65 se organizam em torno de um Partido Comunista - único, incontestável, vanguardista - já desde 59 criavam mecanismos de distribuição de renda, uma rede de proteção social, adaptavam o padrão industrial ao soviético, apostavam de forma crescente na solidariedade internacional e, também, restringiam certas liberdades civis e perseguiam homossexuais como se sua condição fosse um "desvio burguês".

A opção pelo marxismo-leninismo, forjada pela necessidade conjuntural e por alguma convicção, melhora a vida em Cuba, ainda que traga novos dramas à tona. A Liberdade que motivara a Revolução pode ser sempre posta de lado, pois sempre surge uma justificativa, uma explicação "racional" para tanto. A política lá pode não ter chegado aos níveis de opressão policial do Leste Europeu, mas ela não está nas ruas ou em praça pública, a existência de um Politburo - um escritório político - já é por si só emblemática no sentido de onde está confinada a Política. O país, no entanto, prossegue melhorando materialmente até que a avalanche do colapso soviético lhe traga, jogando-lhe numa gravíssima crise econômica entre os fins dos anos 80 e metade dos anos 90. Economicamente, a vida de Cuba de 1995 para cá, não vai mal, segunda a CIA e a CEPAL a produção cresce, em especial de 2003 para cá (entre 11% e 12%), seja pelo seu intercâmbio com seus parceiros tradicionais do Ocidente - notadamente Canadá e alguns europeus -, pelo crescimento latino-americano e, também, pelo crescimento chinês e a recuperação da economia russa - cessada pela atual crise mundial -, parceiros seus dos tempos da Guerra Fria.

Uma cada vez mais complexa ilha, onde o impacto da globalização se faz presente expõe as limitações que qualquer regime tecnocrático de partido único possui; a doença de Fídel Castro, líder máximo do país, que acaba tirando-o do poder é emblemática nesse sentido; a passagem do poder para seu irmão mais novo - e também revolucionário - Raul, demonstra a incapacidade do sistema em se renovar e suscita que alguma reforma mais profunda se opera nos escritórios onde o poder se encontra guardado - as próprias reformas de Raul são um exemplo disso. A própria questão da dissidência cubana começa a aparecer com mais força. É nesse cenário que aparece a figura da filóloga e blogueira Yoaní Sánchez, uma personagem complexa que ganha projeção mundial, com um blog traduzido para 18 idiomas (!), fazendo, por coincidência, oposição ao regime.

Para entender bem esse fenômeno, é bom compreender que a lógica do nós contra eles, em relação a qual o próprio Castro bebeu na fonte por décadas para governar, não existe. Não há uma guerra entre revolucionários e a "máfia cubana de Miami" nem entre tiranetes bolsheviks e amantes da liberdade e da democracia. Dentre os grupos que se opõem ao Regime, vamos encontrar desde social-democratas como um Osvaldo Payá até uma liberal bem extremada como Sánchez - subestimada ao extremo pela extrema direita mundial, sempre ciosa de fatos novos de novos argumentos para justificar sua posição paranoicamente anti-cubana -, ademais,  dentre os membros do partido, há quem queira mais abertura e um desenvolvimento do socialismo no sentido da democracia - e não faltam, entre os vários atores políticos cubanos, quem odeie Castro porque gostaria de estar no lugar que ele ocupou por décadas.

Voltando a Yoani, o que ela faz em seu popularíssimo, blog, o Generación Y não deixa de ser um castrismo às avessas. Em recente entrevista a Salim Lamrani, especialista em relações cubano-americanas poe Sorbonne, muitas das contradições de Yoani vem à tona. A entrevista é um verdadeiro massacre porque pega em questões cruciais como o suposto sequestro que ela sofreu e nunca provou ou a suposta censura sistemática que ela sofre do governo cubano - bem com sua posição bem liberalecas sobre o que ela entende pela transição em Cuba, em suma, o receituário porra louca utilizado pelos oligarcas 'comunistas' nos anos 90 e que resultaram na sabida tragédia econômica por aquelas bandas. Lá dá para ver diálogos como:

 

SL - A senhora não pode negar que o jornal espanhol El Paístem uma linha editorial totalmente hostil a Cuba. E alguns acham que o prêmio, de 15.000 euros, foi uma forma de recompensar seus escritos contra o governo.

YS - As pessoas pensam o que querem. Acredito que meu trabalho foi recompensado. Meu blog tem 10 milhões de visitas por mês. É um furacão.

SL - Como a senhora faz para pagar os gastos com a administração de semelhante tráfego?

YS - Um amigo na Alemanha se encarregava disso, pois o site estava hospedado na Alemanha. Há mais de um ano está hospedado na Espanha, e consegui 18 meses gratuitos graças ao prêmio The Bob's.

SL - E a tradução para 18 línguas?

YS - São amigos e admiradores que o fazem voluntária e gratuitamente.

SL - Muitas pessoas acham difícil acreditar nisso, pois nenhum outro site do mundo, nem mesmo os das mais importantes instituições internacionais, como as Nações Unidas, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, a OCDE, a União Europeia, dispõe de tantas versões de idioma. Nem o site do Departamento de Estado dos EUA, nem o da CIA contam com semelhante variedade.

YS - Digo-lhe a verdade.
Ou:
SL - Como a senhora chegou até Obama?

YS - Transmiti as perguntas a várias pessoas que vinham me visitar e poderiam ter um contato com ele.

SL - Em sua opinião, Obama respondeu porque a senhora é uma blogueira cubana ou porque se opõe ao governo?

YS - Não creio. Obama respondeu porque fala com os cidadãos.

SL - Ele recebe milhões de solicitações a cada dia. Por que lhe respondeu, se a senhora é uma simples blogueira?

YS - Obama é próximo de minha geração, de meu modo de pensar.
Só são algumas partes, o resto dá tédio de copiar e colar. É o tipo da coisa que você se depara e diz: Ah, tá! Enfim, não colabora em nada para o debate sobre Cuba ou sobre os rumos do Socialismo na ilha - ou, quem sabe, da própria contestação do socialismo enquanto sistema funcional. Nhecas. simplesmente uma argumentação tão sofisticada quanto aquilo que podemos ler na Veja todas as semanas. Note, peloamordedeus, que não é porque Yoani Sánchez ser fraude intelectual que muitos dos problemas cubanos deixem de existir ou que certas denúncias dela não seja realmente válidas, apesar dos pesares. O problema é saber analisar o jogo, delimitando quem são os atores, quais seus interesses e qual a situação real da ilha. Eis o ponto.

P.S.: Nada é tão simples e este humilde blogueiro segue acreditando que o socialismo é o melhor caminho para lá - ou mesmo para essas bandas -, esperando abertamente por argumentos que provem o contrário (ou não), ainda que saiba que sem republicanismo e democracia, a tendência é mesmo que medidas socializantes se desmanchem no ar.

6 comentários:

  1. Hugo,

    Eu li a entrevista seguindo um link postado pelo Maurício Caleiro no Twitter. Como já dizia o título, encostaram ela na parede legal!

    Não acompanho o blog da Yoany (gostei do template que ela usa, estou procurando um assim pra mim, rs...), mas a entrevista passou a impressão de que ela seria um tanto ingênua. Não no sentido de não saber o que está fazendo, acho que ela sabe muito bem (se bem que história do sequestro poderia ser melhor contada), mas talvez ela não perceba, ou perceba mal, a dimensão dos interesses que ela, conscientemente ou não, favorece e que vão muito além do desejo de democratização da ilha.

    Outro dia ouvi de um senhor que já esteve em Cuba a uns trinta anos que se o regime ruir de um dia para o outro, todas as conquistas sociais da revolução vão por água abaixo. Segundo ele, apesar do sistema educacional de Cuba ser exemplar, os cubanos não estão minimamente preparados para sobreviverem numa economia capitalista e competitiva e ficariam reféns dos exilados ricos que voltrarem dos EUA. Exatamente como antes da revolução.

    Não sei se ele está certo, mas se estiver seria um triste final. Não sei qual o rumo que os Cubanos pretendem dar ao seu Socialismo, mas ou a elite que governa o país começa a pensar numa politica que faça o capitalismo servir ao povo Cubano ou o povo cubano vai acabar servindo ao capitalismo dos outros.

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  2. Hugo,

    Blogs como o seu é que deviam ter tradução para 18 línguas!

    :)

    Tietagem à parte, é certo que devemos 'acertar' a República em primeiro lugar.

    Um abraço,

    Luis Henrique

    ps: aliás, hoje mesmo foi dia de eleições municipais em Cuba, e aniversário da Revolução dos Cravos.

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  3. Edu,

    Pois é, cara a Yoani tem uma posição de direita liberal mais ou menos parecida com os liberais russos dos fins dos anos 80, em certa medida havia algo de desequilibrado no discurso que se justifica pela falta de liberdade propiciada pelo regime, algo de ingênuo em relação aos países "ocidentais" e um quê de manipulação, de bolshevismo às avessas. Sempre vi um pouco disso nela, mas essa entrevista é tão demolidora que eu cheguei a me surpreender. Sobre os destinos da ilha, evidentemente, muito deveria ser transformado, mas dependendo de tudo como as coisas ocorram - e a experiência do Leste europeu é suficientemente emblemática nesse sentido -, pode acontecer um desastre. Honestamente, eu não acredito no Capitalismo. As reformas que Cuba precisam, ao meu ver, passam pela incitação a uma livre iniciativa cooperativada, pela saída da política dos burôs e, até onde eu sei, nada disso é capitalista.

    um abraço

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  4. Luis,

    18 línguas? Tadinha da humanidade ;-)

    Creio que a questão republicana, quando analisamos as desditas dos regimes socialistas - ou melhor daquilo que eu classifico "bolshevismo" - pelo século 20º é o ponto-chave: Como pensar em um regime socialista onde uma organização denominada "partido" tem tamanha proeminência? Antes que alguém me acuse de fazer uma crítica burguesa, é bom resgastar o significado inicial do que é República na Roma antiga, o que implica sim na ideia da cognição seguida da apropriação do espaço comum pela própria comunidade - é o se dar conta do todo, o autoconhecimento da coletividade, o oposto da alienação -, elemento sem o qual, o socialismo, cedo ou tarde, se degenera.

    abração

    P.S.: Sim, no próprio blog de Yoani ela fala disso. Sobre a Revolução dos Cravos, ano passado, escrevi algo sobre ela e hoje, José Milhazes fez um belo post a respeito.

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  5. Cubanos são um povo azarado. Caíram na mão de um regime stalinista puritano e conservador. E sua voz de "oposição" é Yoani Sanchez.

    A Yoani acha que há algo em Cuba que é de
    propriedade dos EUA. E é contra a bem-sucedida campanha militar de Cuba na África, que abriu caminho para a independência de Angola e o fim do Apartheid...

    Isso pode ser visto na entrevista. Ninguém merece.

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  6. caetano,

    Não diria que o regime cubano é stalinista - eu classifico o stalinismo como uma categoria do bolshevismo, por sua vez, uma espécie de socialismo centrado na figura de um partido único, tecnocrático, cientificista e monopolizador da vida política de um povo, sob a prerrogativa de ser o elemento racionalizador disso. O Stalinismo entra aí como uma categoria possível disso: É stalinista o bolshevismo onde a poder se centra numa figura carismática que exerce o poder de forma personalista conduzindo o povo, supostamente, para o comunismo de acordo com procedimentos onde não importa, sob aspecto algum os meios. Mesmo que o regime da ilha seja personalista, ele sempre teve certos freios que simplesmente não existiram na União Sovietica ou mesmo na China de Mao - um bom exemplo de stalinismo.

    E, sim, Yoani, entregou o jogo na entrevista mesmo; além de se sustentar algumas teses direitistas bem arcaicas, ela demonstrou uma incapacidade argumentativa aguda. Se mesmo diante de entrevistadores dóceis - que sempre se prestaram a levantar bolas fáceis para ela cortar -, ela já deu sinais de fraqueza, dessa vez, foi um desastre: O que se viu foi um massacre. Isso não é à toa, o grande opositor do regime cubano, o lobby americano, odeia a ilha por suas virtudes e não por seus defeitos, logo, a voz que eles elegeram para servir como a oposição dentro da ilha, tinha de ser isso mesmo - isso mesmo, Yoani, jamais foi liderança do que quer que seja, apenas uma opositora medíocre que cresceu na base de uma superexposição dos holofotes. Sua desmoralização não muda o fato de que existem problemas graves acontecendo neste exato momento na ilha, mas certamente ajuda a descontruir a tese idiota de que Cuba é o inferno.

    um abraço

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