Negri |
Poucos pensadores do nosso tempo honraram tão bem o que disse Marx, nas Teses sobre Feuerbach, de que não basta apenas interpretar o mundo, mas que é preciso muda-lo, do que o italiano Antonio Negri. Arquétipo de intelectual engajado, ele viveu intensamente a Itália da segunda metade do século 20º, quando a industrialização tardia - e regionalmente desigual - acirrava brutalmente a polarização política e a consequente insurreição contra o Estado - particularmente corrupto e disfuncional, se comparado com seus pares da Europa Ocidental. Tratava-se de uma polarização de tal ordem que chegava a ser paradoxal, alternando do horror - as medidas sim de exceção do Estado, os atentados sob bandeira falsa para acusar a esquerda, os processos judiciais falsos - ao esplendor - um cinema político radical, um movimento estudantil e operário radical, uma crítica voraz. Nesse cenário, Negri foi o grande nome de uma geração de intelectuais que rompiam com a concepção de vanguarda, o imobilismo dos sindicatos - alinhados e enebriados pela corrupção e pelo ilusão do nacional-desenvolvimentismo - e burocratismo de um PCI - o maior partido comunista do ocidente, já praticamente esterilizado pela dupla vassalagem que prestava, a Moscou e ao institucionalismo do Parlamento. E Negri estava junto dos intelectuais por detrás do Potere Operaio, das organizações autônomas de mulheres, estudantes e operários extra-parlamentares e extra-sindicais, o que lhe valeu a maior honra que cabe a um filósofo: A acusação de terrorista e corruptor de jovens - cattivo maestro - por parte do Poder, acusado de ser mandante moral do assassinato do primeiro-ministro democrata-cristão Aldo Moro. A partir daí, sua vida é uma saga, da condenação e posterior prisão até o refúgio para a França da Doutrina Mitterrand, que abrigou tantos e tantos refugiados políticos italianos - passando pela sua breve libertação entre um fato e outro, ao ser eleito deputado pelo Partido Radical, o que lhe valeu uma imunidade parlamentar rapidamente cassada pelos seus pares. Seus anos na prisão, seu contato com a obra de Spinoza e depois sua estadia na França, na qual teve outro bom encontro, com Guattari e Deleuze que lhe deram toda assistência e lhes abriram as portas dentro da comunidade intelectual parisiense, produziram uma inflexão na sua obra, catalisando uma inquietação que já estava no jovem Negri. A história de Negri, narrada no documentário L'Eterna Rivolta é uma ode à única postura aceitável do intelectual em nosso tempo assim como é, também, uma obra sobre a História, não a que contam, mas a que deixam de contar sobre a Itália, que explica muito sobre o estado de coisas que aquele país está a viver e, também, sobre episódios específicos que chegam a interferir na nossa própria realidade política brasileira, como no caso Battisti. Para além de toda a parafernália jurídica que se possa alegar no caso do escritor italiano - e, acreditem, não é pouca coisa que pesa contra a extradição - ainda existe um pequeno detalhe chamado História, dentro da qual a história de Negri - como a de Pasolini e tantos outros - é chave para a compreensão do que foram os anni di piombo, compreensão elementar para o início dessa conversa e de tantas outras sobre a Itália de hoje.
P.S. Seguem aqui os seis capítulos de L'Eterna Rivolta (que também está na íntegra no link acima);
Obrigado!
ResponderExcluirDe nada ;-)
ResponderExcluirComo já te disse ótimo texto sobre Negri e sobre o que foram os anos de chumbo na Itália, é sempre importante nos lembrar disso, principalmente quando nos deparamos com as bravatas Berlusconianas sobre o caso Battisti.
ResponderExcluirObrigado, Luka. É o velho matar dois coelhos com uma cajadada só: Apresentar um intelectual como Negri e, ao mesmo tempo, trazer à tona uma questão tão importante quanto os Anos de Chumbo italianos, cujos impactos sobre o debate público ocidental são tão grandes que chegaram até aqui, nos confins do Império Cristão (como diria Leonardo Boff), na figura do caso Battisti. Para além das bravatas berlusconianas, é preciso desmontar as armadilhas que a própria esquerda caiu no caso por conta de parte da esquerda italiana - radicada no Brasil ou não. Afinal de contas, antes de conspiração exclusivamente de direita, o caso Battisti, se deve a uma conspiração autoritária, posto que parte relevante da esquerda italiana tem responsabilidade no caso, por contemporizarem com a direita e por, no fundo, também terem estado em combate com o espontaneísmo que emergiu no período - o que ajuda a entender porque tantos esquerdistas italianos, "comunistas" até, se valem da legitimidade prévia de sua voz para se alinharem com o que há de pior na direita mundial. É preciso desvelar a complexidade do caso em um sentido prático e específico - no que toca a liberdade de Battisti - e, em um segundo momento, para pôr o debate sobre o caso no seu devido lugar.
ResponderExcluirBeijos
A obra de Antonio Negri e tutti quanti tem tudo para revitalizar o socialismo encarquilhado de nossa esquerda.
ResponderExcluirNota dez, que blogue fecundo e múltiplo, parabéns e te sigo.
Um abraço negriano.
Bruno Cava.
http://quadradodosloucos.blogspot.com
Olá, Bruno, bom vê-lo por aqui, rapaz! Estou nessa há um ano, desde que me meti a ler Spinoza; fui de lá para Deleuze/Guattari e depois, claro, não tinha modo - nem motivo - para não passar por Negri. Revitalizemos essa esquerda e deixemos as múmias para os egípcios!
ResponderExcluirabraços
Por falar em Spinoza, concluí direito com monografia título "Spinoza: ontologia da liberdade". Metafísica hardcore numa faculdade técnica, imagine. Deixemos os acadêmicos "duros" mumificar os autores, enfaixando-os com suas dissertações técnicas. Meu negócio, assim como parece o seu, é sair às ruas e fazer multidão. Agora, tenho umas resenhas por aí sobre Negri e cia. Aproveito pra recomendar, se ainda não leu, "Deleuze, Marx and politics", ed. Rutledge.
ResponderExcluirUm abraço.
Ola, Hugo.
ResponderExcluirNão entendi o que você quis dizer com a frase "única postura aceitável do intelectual em nosso tempo". Pode me dar uma luz?
Abraços.
Bruno,
ResponderExcluirEu também faço Direito, sei bem o que é isso. E que grande encerramento esse seu, hein? Sobre a Academia, é isso, uma mumificação, antes de mais nada, da própria vida, cujo fim é criar autômatos a serviço desse processo de esterilização e fagocitose dos saberes - especialmente os libertários - que ela, Academia, promove para o sistema. Ainda que seja importante, até certo ponto, se infiltrar por ali, não é possível - nem aceitável - se fechar naquele mundo, sob pena de se tornar inofensivo - é necessário cultivar certa clandestinidade estratégica e estar sempre à espreita, não percamos o ânimo, devenhamos animal!
abraço
P.S.: Dica anotada.
Euclides,
ResponderExcluirÉ uma excelente pergunta. A resposta tem bastante a ver com essa minha conversa aí em cima com o Bruno: Sair às ruas e fazer multidão, saber que todo esse conhecimento implica em responsabilidades - e que só tem sentido se praticado e transmitido. Negri não se ausentou da vida política de seu país, das demandas das minorias e, tampouco, se trancafiou na torre de marfim acadêmica que boa parte da própria intelectualidade de esquerda transformou em lar. É um pouco do que ele próprio fala na primeira parte do documentário - que, infelizmente, não tem legendas, ainda que o italiano nos seja em grande parte inteligível.
abraços
Conhecimento realmente só tem sentido se praticado. Mas não concordo com a "torre de marfim acadêmica", pois a escolha da introspecção e do não ativismo é igualmente válida.
ResponderExcluirA prática pode se dar no microcosmo até mesmo com maior impacto na sociedade do que com interferência direta. De qualquer forma, não acho que esse tenha que ser o objetivo do conhecimento.
Abraços.
Euclides,
ResponderExcluirA introspecção é fundamental em vários momentos da nossa existência - em muitos casos, até de forma prolongada e até completa -, mas eu não concordo que ela deva ser a regra de vida de um intelectual. As pessoas podem fazer o contrário perfeitamente - ou até devem, de acordo com a perspectiva de vida que elas têm -, mas eu creio que ao fazê-lo de forma permanente não há como não se esterilizar enquanto intelectual. E prática no "microcosmo" - no fim, tudo é cosmos -, na minha acepção, é um dos inúmeros modos de destrancar-se da "torre de marfim acadêmica" - o que eu estou questionando são tais casos de alheamento ao que se passa que produzem como consequência, como já presenciei, casos como de uma professora puquiana interrompendo uma aula de Marx para destratar o funcionário que se atrasou para trazer um projetor.
abraços
Bom, mas eu não disse que deve ser regra. Só que fica difícil querer "corrigir a existência" quando você se aprofunda intelectualmente.
ResponderExcluirVeja, o próprio exemplo da professora que você dá é perfeito para debatermos. São essas contradições persistentes que afastam muitos intelectuais da "vida prática", digamos assim.
Eu abandonei duas faculdades na PUC por situações similares a que você descreveu, preferindo cotidianamente ser coerente com minhas crenças do que tentando "penetrar no sistema" por caminhos que considerava eficientes. Aliás, abandonei tudo que envolvia ativismo, optando por procurar no tal do microcosmo algum terreno fértil para mudanças.
Enfim, papo de um desiluido.
Você mesmo acompanhou mais dessas contradições no caso "feminazi", onde corporativismo e ideologia cega imperaram em detrimento de uma luta comum coerente com os princípios que prega.
Não dá para lutar pela democracia ao lado de gente autoritária. Se você me convencer de que seres humanos são confiáveis, aí podemos destruir juntos algumas "torres de marfim". ;)
Abraços.
Euclides,
ResponderExcluirMas eu não lhe convenceria que seres humanos são confiáveis, muito pelo contrário, se você perguntasse o que eu penso, eu diria que eles não são confiáveis de maneira alguma porque são como nós mesmos - e nós mesmos não somos confiáveis, é necessário encarar a própria miséria humana. Mas, concordo, não é possível ter por companheiro alguém autoritário, muito embora as circunstâncias que a política nos reservam sejam únicas e que nós mesmos também sejamos autoritários em tantos momentos.
O ponto é que quando falo de engajamento intelectual, não estou pressupondo que pessoas tenham de fazer a mesma coisa de Negri, isso seria ilógico, mas sim que é preciso ao intelectual ter a mesma postura frente aos seus - e no fim das contas a nós mesmos - e ao seu tempo para dar significado à sua condição como tal. E postura é uma forma de encarar a vida, conhecimento que é destinado à própria reprodução é estéril.
Devo muito da minha formação a um professor de História - que vez ou outra aparece por aqui nesta caixa - que poderia perfeitamente ter feito um mestrado e um doutorado e estar hoje numa USP ou numa PUC, mas não, ele estava lá dando aula para moleques. Por uma perspectiva burguesa aquilo não fazia o menor sentido, por outro lado, alguém poderia dizer que ele estava se omitindo enquanto intelectual de fazer algo "relevante", mas não, aquilo que ele fazia era a mais pura forma engajamento, compartilhando seu saber com crianças e adolescentes - e o que é esse micro senão parte do macro que está mais perto de nós?
abraço
Poderíamos conversar ad eternum sobre isso; recairíamos numa das interpretações da máxima eternizada por Shakespeare.
ResponderExcluirEngajar-se ou não se engajar - eis a questão.
Dou exemplos práticos que direcionaram minha escolha.
Você faz Direito na PUC-SP?
Pois bem, acompanhei uma pseudo-ONG nascida aí, a Bê-a-Bá do Cidadão. Ela nem existe mais, acho, mas veja uma antiga descrição no site do CVSP:
http://www.voluntariado.org.br/organizacoes_sociais/busca_cep.asp?cep=&paginacao=17&tipo_busca=1&categoria=&sub_categoria=&acao=buscar
"Promove a educação de jovens e adultos em questões jurídicas e sobre direitos e deveres do cidadão."
Estive presente em diversas das "aulas de cidadania". Vi, de fato, moradores de periferia colocando na berlinda os engajados jovens brancos que recitavam terminologias jurídicas e procedimentos burocráticos. Foram lá com uma visão catequisadora e sairam com o rabo entre as pernas. Lembro-me de uma "professora" dizendo que era importante reciclar, atentar para os dias da coleta seletiva. Ouviu um pai de família dizer que acordava as 3h da manhã, chegava as 22h em casa e que a última coisa com a qual iria se preocupar era em separar o lixo. Até porque, nem mesmo o caminhão de coleta tradicional passava de maneira regular, fazendo acumular lixo nas margens dos córregos e proporcionando a proliferação de ratos, baratas e, consequentemente, doenças.
Para os "politizados", isso não era muito relevante, pois o "projeto" fazia parte de uma agenda maior, a de rechear currículos e passar uma imagem de "consciência social", de "bom-mocismo". Aposto um braço que hoje vários participantes contam com orgulho sobre a experiência, talvez até participem de novos "projetos", cheios de idéias cosméticas e ações inócuas.
Nem tudo é o que parece...
Bom, fui voluntário também da SOS Mata Atlântica, que passava vídeos ideológicos em suas reuniões, doutrinando os ativistas com falácias mil. Tive, porém, a sorte de presenciar a indignação de uma pessoa que pensava com a própria cabeça. Ela resolveu atentar para a incoerência de um vídeo atacando indústrias de sintéticos se na própria ONG o filtro de água tinha ao lado copinhos de plástico. A resposta de um dos fundadores, constrangida, foi a inviabilidade de solicitar aos voluntários trazerem seus próprios copos de material menos agressivo ao ambiente. Garantiu, no entanto, que os copinhos eram reciclados. Sem comentários...
Lutavam, como muitos da esquerda, contra uma abstração, a indústria, o plástico, o sistema. As pessoas, no cotidiano, nada tinha a ver com o problema.
Encerrando a chatice, uma das minhas últimas participações em movimentos sociais foi na UNE, atualmente aliciada pelo PT e que há muito é uma instituição autofágica. O único comprometimento ali é, ironicamente, o mesmo do candidato tucano José Serra em sua vida política: o poder. A UNE é uma mera ponte para cargos públicos de maior visibilidade, desconectada da vida estudantil e de qualquer princípio básico de democracia. Só vi uma faísca de esperança intelectual em alguns estudantes ligados ao PSOL e ao PSTU. Recomendo dois documentários que tocam nessa ferida:
http://video.google.com/videoplay?docid=-6687999969467622762#
http://www.youtube.com/watch?v=wP3wAlsYF1s
Desanimador.
Aproveitando o ensejo, se Spinosa achava que era uma sátira e não uma Ética o que a humanidade havia construído em termos de moral absoluta, gostaria de saber o que ele diria dessa pós-modernidade prevista por Nietzsche.
Euclides,
ResponderExcluirMas eu não discordo de grande parte do que você falou, agora, o que eu estou tentando dizer é que do mesmo modo que uma ética kantiana, fundada em todos os seus imperativos impostos à moda prussiana, é uma falácia, o mesmo se pode dizer do vazio comum da nossa época, ainda de ordem cartesiana, na qual o sujeito é o centro do mundo em sua inconsequência e infantilismo e, em relação à qual, só é possível fazer uma sátira - para citar tua boa lembrança do trecho inicial do Tratado Político.
A postura intelectual à qual eu me refiro - e credito a Negri - tem menos a ver com uma profissão de fé uma adoração aos elementos totalizantes e uma busca dos bons encontros junto à multidão, longe dos aparatos burocráticos, sejam partidários ou acadêmicos - e isso nada tem a ver com uma obrigação moral iluminista, mas também não se iguala à pasmaceira libertina que temos aí à mostra.
E, sim, eu conheço bem a PUC, sei da limitação desses movimentos e também não tenho dúvidas de que Negri pense o mesmo de movimentos congêneres. Não é de fervor esclarecedor que a postura dele se trata e, pela última vez, não é disso que eu estou tratando - nem é isso que costumo tratar elogiosamente aqui.
abraços
P.S.: E perca suas esperanças com PSTU e PSOL, é mais do mesmo.
Minha esperança era em alguns estudantes e não nos partidos. Mas só esperança mesmo...
ResponderExcluirSe bem que acho que o Tsavkko discordaria de você, pelo que acompanho no blog dele. Não muito, mas discordaria.
Abraços.
Sim, Euclides, no fim, os partidos são os estudantes e, embora existam pessoas muito boas neles, politicamente, a conversa muda de figura. E o Tsavkko é meu amigo, concordamos em muitas coisas e discordamos de outras tantas mesmo, disso, inclusive, c'est la vie...
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