Semana passada, a PUC de São Paulo teve dias agitados: Enquanto sua reitoria foi ocupada, seus e-groups andaram agitados pelo burburinho que envolvia uma outra discussão por e-mail, ocorrida durante a época das eleições, mas que se agravou bastante nas semanas que se seguiram, na qual uma estudante de quinto ano do Direito sofreu ofensas classistas e racistas. Na Ocupação, os estudantes se debatiam contra a política de mensalidades daquela Universidade, que desde os ajustes decorrentes do corte de verbas públicas para a universidades privadas nos anos Collor, da guinada da Igreja e, por fim, de uma crise subsequente em 2004, levaram a uma lógica de aumento das mensalidades e de seleção de ingressantes basicamente pecuniária, o velho entra quem pode pagar - e bem -, salvo os poucos prounistas (algo em torno de 10% dos estudantes da Faculdade de Direito, das outras, desconheço o número exato) que entram nas cotas desse conhecido programa do governo federal, o que permite que pessoas como a Meire, negra e de origem humilde, andem pelos corredores na condição de estudante - não de forma incólume, como podemos perceber: Os estudantes negros (pagantes ou não) e os bolsistas formam um corpo estranho em um meio cada vez mais homogêneo, contra o qual ocorre uma reação.
Enfim, esses fatos de repercussão pública são apenas a ponta do iceberg do que assistimos no nosso dia-a-dia, são apenas pontas mais salientes de todo um estado de coisas daquele que já foi o principal centro de pensamento e agitação política de São Paulo - provavelmente do país - nos anos 70-80, se duvidar, pesquise a biografia de boa parte das figuras mais influentes do PT, por exemplo, basicamente, a maioria passou pela Gloriosa. As duas prefeitas paulistanas egressas do PT, Erundina e Marta, tiveram passagem pela Casa, uma enquanto Professora, a outra enquanto aluna. José Dirceu, José Eduardo Cardozo são graduados no Direito, Mercadante foi professora da FEA e por duas vezes presidiu a associação de professores. Tudo isso, num momento no qual o Concílio do Vaticano II soprava bons ventos que, curiosamente, encontravam ressonância cá nos confins do Império Cristão. Atribuir as atuais mudanças pelas quais passam a PUC a problemas meramente administrativos-financeiros é falsificação histórica, pois nega a inegável inflexão política pela qual ela passou; vamos ser sinceros, cobrar quase três salários mínimos de cada estudante é um esforço semelhante ao de buscar saídas de financiamento - público, inclusive - para aquela Universidade.
A ocupação aconteceu, ironicamente, enquanto eu estava num grupo de estudos assistindo ao monumental Terra em Transe. Aparentemente, ela se deu na esteira de uma manifestação contra o aumento das mensalidades, cujas reivindicações foram negadas pelo conselho de administração - dois Padres que representam a Igreja e o Reitor - que desembocou na entrada deles naquele órgão -; ela terminou entre a noite de sexta e a madrugada de sábado, depois de um dia e meio. O que não só pode - como deve - ser questionado é maneira como ocorreu sua construção, afinal como mecanismo de pressão não resta dúvida que se trata de um ponto que pode ser válido, ainda que extremo. Não é segredo para ninguém que, não raro, o movimento estudantil comete erros e aqui foi um deles. A politização feita em relação a uma pauta consensual como essa - cuja discordância está no elitismo atroz ou entre aqueles que têm um um inominável rabo preso com a hierarquia - foi ruim e o processo de pressão, construído em cima da hora, novamente se perdeu em partidarismos e clichês. A forma repentina - e inexplicável - como ela começou foi a mesma de seu término.
Isso tudo levanta uma questão central. Se por um lado a burocratização das universidades brasileiras, processo nascido na ditadura e consolidado a seguir, torna os corpos administrativos acadêmicos em verdadeiros anéis burocráticos incapazes de responder ou, ao menos, de entender as demandas, por outro lado, o Movimento Estudantil está preso num modo de agir cristalizado, decorrente de uma leitura marxista equivocada: Parte-se de uma leitura iluminista, na qual as pessoas não fazem algo por que desconhecem o que se passa ou são impedidas de sabê-lo ou, em último caso, porque são inibidas por mecanismos policialescos-repressivos - e o que quem escapa a isso teria necessariamente um problema moral, resultando em vitimizações ou perseguições -, o que é um erro comum aos pensadores da tradição de esclarecimento, que de certa forma ainda está em Marx, muito embora ele tenha dado passos importantes para fora disso - mas que passa batido no ME, posto que o leninismo residual não assimilou a temática da Ideologia Alemã por motivos lógicos, afinal, Lenin morreu antes de sua publicação. No fim as contas, isso acaba se expressando de um modo mais radical no marxismo vulgar.
Claro, o elemento chave que acaba escapando a essa forma de análise é o Desejo. A lição que Spinoza nos legou, Reich redescobriu e o Deleuze e Guattari trouxeram à baila com maestria no Anti-Édipo é que mesmo os sistemas mais terríveis são fruto do desejo das pessoas, da produção de seu inconsciente. A omissão diante do descalabro também se motiva por isso, o desejo de estar alheio, de não se envolver de não se comprometer. Por que os explorados não fazem greve o tempo inteiro, se o mecanismo que lhes oprime não cessa? Falta a compreensão que a economia política é uma economia libidinal, não somos autômatos que produzimos e trocamos formalmente coisas, a produção e a circulação do produto na forma de mercadorias é, antes de mais nada, uma permanente interação de afetos. Compreender essa coextensividade entre os campos do desejo e o social é central, mas isso escapa ao que está posto no ME, que é dos meios mais conservadores que se pode conceber. Isso faz com que a não-participação dos estudantes na vida (e na política) acadêmica, fenômeno cada vez mais recorrente, se torne algo próximo de uma contradição indissolúvel para a esquerda acadêmica. É necessário incluir, mas não se abre mão de suas concepções e práticas, além do fato de que as pessoas devem estar enquadradas em um certo padrão, do contrário, não servem.
Por outro lado, uma direita universitária passa a se afirmar com força, e não é dentro de um crítica liberal ao esquerdismo, mas na figura de uma direita raivosa, sem consciência social e que, não raro, se articula com os anéis burocráticos que administram as Universidades - na PUC não é diferente, na USP também não -, mas esses setores sabem manusear com cada vez mais habilidade o desejo. Enquanto a esquerda está presa num racionalismo insuficiente - que chega ao autoritarismo por não saber como lidar com questões como a sujeição voluntária, portanto, ao autoritarismo não como política, mas como sintoma de pane -, essa direita se impõe pelos preconceitos, por uma intervenção clara e direta no imaginário geral, construindo fantasmas plausíveis e alimentando esperanças vãs, em troca do seu bilhete para ascender à primeira divisão partidária. Em cursos com um projeto ideológico firmado, como na maior parte das humanidades (à esquerda, naturalmente), ocorre uma desmobilização bem grande, enquanto em cursos como o de Direito, onde isso não ocorre, surge uma polarização entre esses dois projetos estudantis - o mesmo acontece em disputa para DCE's, como na própria USP e UFRS. No nosso contexto, isso se cruza com os interesses da Igreja e os interesses de sobrevivência de uma burocracia acadêmica, enquanto os estudantes ficam no fogo cruzado. Nessa ambiente de degeneração, casos de discriminação e agressividade se constroem nas rachaduras formadas. O espanto da sociedade em relação aos absurdos que se passam no meio Acadêmico é o escândalo decorrente na fé cega no potencial do Esclarecimento. É esse o quadro complexo que temos em mãos agora.
Bom mesmo seria um movimento estudantil liberal de esquerda, pra fazer frente tanto ao movimento que nunca saiu do Che e ao movimento da direita analfabeta.
ResponderExcluirDaniel, olha, eu tomo por impossível existir um movimento liberal de esquerda - por definição, liberalismo é uma tradição de pensamento de direita mesmo, o que não se confunde com uma postura libertária (isto é, antagônica ao autoritarismo), que pode existir tanto à direita (com o liberalismo de verdade mesmo) quanto à esquerda (anarquismo, socialismo-libertário), do mesmo modo que temos também as suas contrapartes autoritárias.
ResponderExcluirEu não vejo autoritarismo como representação de iniquidade humana, mas como fruto da insuficiência teórica de um determinado projeto, à luz da sua aplicação prática, uma expressão do desejo de concretizar a todo custo uma abstração que perdeu seu significado por força dos fatos. Aquilo que chamamos de direita autoritária, como o fascismo, p.ex., executa uma política autoritária de forma sistemática, posto que ele é, por natureza, forma de reação, nascido do fracasso de algum sistema liberal (ou pára-liberal). Dentro da tradição de esquerda, podemos dizer isso do Stalinismo, meio de reação desesperada decorrente da insuficiência de outro projeto, o leninismo; o autoritarismo soviético dos anos 20 é diferente daquele dos anos 30-50, enquanto o primeiro é o autoritarismo enquanto sintoma da insuficiência de um projeto, o segundo é um projeto de reação para defender o que supostamente é o primeiro.
Não existe de forma dominante no movimento estudantil algo como Stalinismo - existe em alguns grupelhos, uma espécie de apologia a Stalin, não Stalinismo mesmo -, mas o autoritarismo enquanto sintoma de pane do projeto, o desespero pela insuficiência que leva a uma degeneração das práticas. A saída é desenvolver alguma prática que passe por fora da dogmatização e aceite a crítica, o diálogo e a imanência. No plano estudantil, é necessário fazer coisa até mais simples: Botar os pés no chão e debater o elementar, o que não é fácil de propor em um meio no qual as pessoas, no máximo, tem um pouco mais de vinte anos.
abraços
Belo, belo post, Hugo. Conversei com colegas que participaram da ocupação e li uma série de análises de gente próxima -- distribuídas em diferentes listas, que ainda acompanho (não sei como dou conta, mas enfim).
ResponderExcluirSeu texto foi o que mais se aproximou da minha visão. E não, não é por isso que achei um belo post, mas porque você faz uma análise excelente das condições em que esta ocupação foi realizada.
Sou veterano da ocupação de novembro de 2007, quando, após nove meses de "negociação" com o Consun (atual Consad), foi negado aos estudantes a participação nos debates finais do redesenho institucional. Aquela ocupação, que durou seis dias e terminou de maneira trágica (com a invasão da Polícia pela primeira vez no campus desde 1977), serviu, ao menos de exemplo.
Os estudantes que ocuparam a reitoria na semana passada acertaram ao deixá-la, na madrugada de sábado. O reitor, a fundação e o Consad se negaram a conversar com a situação daquele jeito -- e a alternativa policial não estava descartada, o que seria um desastre do tamanho de um bonde para todos os lados, movimento estudantil incluso.
É preciso ser realista e estudar mais. As mensalidades não vão cair -- não tem como, diante dos enormes custos correntes e financeiros que a PUC tem diante de si.
Isso, é claro, não significa imobilismo, mas estudo...
Abração
João,
ResponderExcluirEu creio que essa ocupação não deveria ter acontecido, o movimento de politização da mensalidade não foi bem construído - ou melhor, foi construído pelo alto e acabou girando no vazio, esqueceram de combinar com a base - e acabou dando no que deu. Mas a questão das mensalidades deve ser pautada, mas de uma maneira mais inteligente. O ponto é que existe uma contradição, existem custos que aumentam, existe o problema da dívida, mas as pressões por aumento das mensalidades são desproporcionais a isso e, inclusive, desproporcionais ao aumento da renda - o que gera um impacto tremendo no perfil de estudante que a Universidade seleciona - e, ao mesmo tempo, também não há um retorno efetivo em qualidade da estrutura. A postura que eu entendo que o Movimento Estudantil deveria tomar é de continuar uma pressão nesse sentido para arrefecer os ímpetos da Reitoria e (sobretudo) da Fundasp (a mantenedora), mas na esfera propositiva, é necessário que se cobre os atuais administradores a buscarem novos recursos, é possível recorrer a fundos de fomento à pesquisa e isso não é feito (isso desopilaria uma parte relevante da receita) ao passo em que negociar algum meio de recebimento de verbas públicas seria interessante - convenhamos, existem canais políticos para tanto. Uma postura mais propositiva do ME em esclarecer o que se passa com as contas e pressão para buscar novas formas de financiamento sem descaracterizar internamente a Universidade seria interessante. Isso exporia certos flancos e suscitaria mistérios que passam desapercebidos, como por exemplo o fato de saber que parte das micro-reformas do Prédio Novo foram feitas com um empréstimo tomado a fundo perdido junto ao Estado. Agora, medidas de intervenção e pressão mais extremos só surtirão efeito não apenas com a devida condições objetivas - aqui, uma conjuntura favorável, o que não existiu -, mas também com um inflexão radical na forma de atuação no Movimento Estudantil. É necessário repensar o ethos do se mover, o sectarismo, o racionalismo vulgar e a presença partidária estão esgarçando qualquer possibilidade de resistência a isso tudo. Mas está difícil dialogar com a moçada. Creio que agora é um bom momento para a devida reflexão.
abração