quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Viveiros de Castro, Deleuze e Guattari


Viveiros de Castro - Lucas Zappa

DELEUZE E A ANTROPOLOGIA
Para a minha geração, o nome de Gilles Deleuze evoca de pronto a mudança de orientação no pensamento que marcou os anos em torno de 1968, durante os quais alguns elementos-chave de nossa presente apercepção cultural foram inventados1. O significado, as conseqüências e a própria realidade dessa mudança são objeto de uma controvérsia que ainda grassa. Para os servidores espirituais da ordem, aquelas muitas "petites mains" que trabalham pela Maioria2, a mudança representou sobretudo algo de que foi e continua a ser preciso proteger as gerações futuras – os protetores de hoje tendo sido os protegidos de ontem e vice-versa e assim por diante –, difundindo a convicção de que o evento-68 se consumiu sem se consumar, ou seja, que na verdade nada aconteceu. A verdadeira revolução se fez contra o evento e foi ganha pela razão (para usarmos o eufemismo de praxe), força que firmou o Império como a máquina planetária em cujas entranhas realiza-se a união mística do Capital com a Terra – a "globalização" – e a sua transfiguração gloriosa em Noosfera – a "economia da informação", ou "capitalismo cognitivo". (Se o capital não está sempre com a razão, dir-se-ia que a razão está sempre com o capital.) Para muitos outros, ao contrário, os inservíveis que não conseguiram não escolher uma trajetória minoritária, insistindo romanticamente (para usarmos o insulto de praxe) que um outro mundo é possível, a propagação da peste neoliberal e a consolidação tecnopolítica das sociedades de controle só poderão ser enfrentadas se continuarmos capazes de conectar com os fluxos de desejo que subiram à superfície por um brilhante e fugaz momento; já lá vão quase quarenta anos. Para esses outros, o evento puro que foi 68 ainda não terminou, e ao mesmo tempo talvez nem sequer tenha começado, inscrito como parece estar em uma espécie de futuro do subjuntivo histórico.3
(Filiação Intensiva e Aliança Demoníaca -- artigo de Eduardo Viveiros de Castro na Edição n. 77 da Revista Novos Estudos da Cebrap)


Eduardo Viveiros de Castro é, certamente, um dos maiores intelectuais brasileiros em atividade. Antropólogo reverenciado no mundo inteiro, dileto discípulo de Lévi-Strauss, seus estudos sobre as etnias amazônicas são de lapidar importância para a compreensão desse enorme enigma no qual consiste o humano - sobretudo no que concerne ao chamado perspectivismo ameríndio, conceito me relação ao qual ele foi um dos criadores, a partir de suas experiências junto às etnias ameríndias do Brasil, nas quais ele buscou investigar seu particular modo de enxergar a vida, o mundo e a si mesmos e recorreu ao conceito filosófico de perspectivismo - e ao aparato conceitual de Deleuze-Guattari - para traduzir, antropologicamente, os comos e os porquês daquelas culturas aos nossos olhos. A Antropologia é uma ciência fascinante, ela retira muitas das certezas que nós temos do mundo, verdades que nos são dadas e que somos incapazes sequer de questionar, na medida em que elas são postas de modo a parecer que sempre foram assim e, portanto, sempre serão - e se não foi, devia ter sido e deverá ser. Ela rompe essas nossas certezas e seguranças mais profundas, cumprindo a função fundamental de desfazer o véu do dito discurso ideológico - que articula as coisas para demonstrar os únicos caminhos possíveis - e nos faz refletir sobre as possibilidades da Ética - cuja função é chegar aos caminhos devidos (na verdade, aos caminhos possíveis para a felicidade) - e sobre a própria validade de ambos os conceitos, sobretudo, que o nosso modo de vida um entre inúmeros possíveis e que a possibilidade não cessa; é na obra de Deleuze e Guattari que a filosofia ocidental encontrará dos seus mais potentes arcabouços conceituais, cuja força formidável é capaz de sustentar o ingrata empreitada a qual se presta a Antropologia, tão dependente de ferramentas conceituais capazes de construir uma ponte entre a diversidade cultura e a nossa, tarefa para a qual a Filosofia clássica, a escolástica ou a racionalista-moderna se mostram insuficientes por conta de suas certezas tão profundas. Só uma filosofia assentada em devires - e não em deveres - como a vista no Anti-Édipo é capaz de tanto - cujo terceiro capítulo é dedicado a uma antropologia. Vale muito a pena ler a íntegra do artigo acima, pois além da bela apresentação ao essencial da obra daqueles filósofos franceses, Viveiros de Castro traz a problemática deles para o campo antropológico.

12 comentários:

  1. Assim como o problema do marxismo não é Marx, mas alguns marxistas, o do pós-modernismo não é Deleuze, mas alguns deleuzianos. Viveiros de Castro não se inclui! uma das hibridações conceituais mais produtivas dos últimos tempos. Espero que venha logo a tradução do último dele em francês, "Metafísicas Canibais".

    A quem quer conhecer um pouco mais, valem a coletânea de entrevistas da ed. Azougue e a revista Cult deste mês. Quem quer ir mais a fundo, pode começar com "A Inconstância da Alma Selvagem", Cosac Naif 2002. Outra referência é a entrevista dele ao Café Filosófico: "A morte como ritual", em http://cafesfilosoficos.wordpress.com/2010/08/10/a-morte-como-ritual-eduardo-viveiros-de-castro/

    Gosto muito, embora em algumas raras passagens me inquiete certa tentativa de aplicação a fórceps dos conceitos de Deleuze. Perspectivismo por sua vez é nietzschiano.

    Curioso: eu estava escrevendo o comentário aqui, e pintou o seu lá no Quadrado, sobre Battisti :-)

    Abraços.

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  2. Bruno,

    O perspectivismo já está, para falar a verdade, presente entre os helênicos - ali pelo século IV e III a.C., quando da expansão de Macedônia -, mais precisamente entre os céticos - que assim se chamavam justamente por isso (cético deriva do verbo grego σκέπτομαι [sképtomai] que é ver à distância, ver em perspectiva). Kant já traz um pouco dessa tradição na sua obra - ainda que não tenha adentrado devidamente nele, o que, suponho, deveu-se à própria natureza do seu projeto filosófico -, mas a quem é creditado a própria criação do conceito atual de perspectivismo é Leibniz - talvez porque isso seja uma bola que Spinoza tenha deixado pingando na área - , embora seja Nietzsche que vá trabalhar sua problemática de forma radical, o que teve um impacto decisivo nas obras de Foucault e de Deleuze e de Guattari. Na conversa sobre Viveiros de Castro estou lendo com atenção seus artigos - e socializando-os -, mas ainda sou um reles recém-iniciado na sua obra - que, no entanto, tenho particular interesse. E concordo quanto a Marx, é um autor muito mal lido, principalmente porque se olha de onde ele está vindo, mas não para onde ele está pretendendo ir.

    abraços

    P.S.: Que coincidência! Mas estou acompanhando teu blog também com muita atenção, você anda produzindo bem e num ritmo alucinante.

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  3. Hugo, já conseguiu ler o livro do Zizek sobre como Deleuze acabou hoje se encaixando fácil (até fácil demais) para servir como uma espécie de um dos vários gurus do espírito do ("novo") capitalismo contemporâneo (e que é necessário, por falta de descrição melhor, aplicar Deleuze no Deleuze, já que se tornou um Deleuzianismo, uma imagem um tanto que esvaziada e cooptada - necessária polir o pó, passar um óleo nas juntas, uma iconoclastia para reafirmar o ortodoxo, ver a lógica por trás da afirmação etc)?

    É uma pena que seja já meio que "velho" porque ele pôde incluir alguns factóides pro repertório sobre o "culto ao evento-carnaval" que não estão no livro (sobre como até direitistas e liberais com fedor do Sarkozy como Bernard-Henri Lévy se gabam em estar em 68, utilizando os lugares comuns totalmente esvaziados de sua geração como se fosse propaganda da Levis ou Pepsi Revolution - ou até mesmo sobre a cultura "freela"/ "estagiária" de "liberdades" "espontâneas" como o "neutro não ideológico"; como tais noções de "erupções" são como um peido forçado ou fazendo a máquina continuar por ter uma válvula de escape, é uma liberdade próxima demais da concepção dominante; assim como uma homem fala sobre liberdades quando se fala do pornô de escravidão assalariada industrializada ou qualquer outro tipo de laissez-faire).

    Mas o que chegou a ir pro livro é bem mais interessante (certeza um dos que eu mais gosto do Zizek, que explica bem seu gosto semi-irônico em relação a certo "conservadorismo" - parecido mas muito distinto do Chomsky - e disciplina etc; seu aspecto "Leninista pré-68").

    taí o livro:
    http://www.4shared.com/document/waB-Zn5z/ZIZEK_S_Organs_Without_Bodies_.htm

    E outra, já viu o "The Coming Insurrection" (francês no original, mas eu lá sei escrever)? Achei em geral muito bobo, mas em raríssimas passagens parecia algo muito acima mesmo dos atuais grandes, como se em alguns parágrafos deixaram um mané fodido escrever. Muito curioso.

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  4. Anônimo,

    Eu considero Zizek um pensador contemporâneo muito importante, embora frequentemente discorde dele. Ademais, uma leitura mais aprofundada da sua obra não está na minha perspectiva no curto ou médio prazo, mas a sua dica fica anotada desde já. Resumidamente, eu penso que se depois de Reich, continuar colocando o desejo como falta é bem complicado, isso se tornou praticamente inviável depois de Deleuze e Guattari terem identificado o desejo como produção do inconsciente - estivessem eles errados e nenhuma tirania seria possível, pois os oprimidos agiriam compulsivamente contra a opressão, fazendo ruir qualquer tentativa de sujeição prontamente.

    Sobre o que Zizek escreveu sobre Deleuze, já imaginava que ele tivesse feito algo do gênero mesmo, mas para além da crítica dele, penso que é meio bobo gastar tempo debatendo sobre o fato de Deleuze estar sendo usado pelos ideólogos do capital, afinal de contas, o Poder sempre fagocitou o pensamento libertário para os seus fins e sempre o fará - quando não conseguiu, o usou como justificativa descontextualizada para suas ações, basta ver o que é feito com a obra de Marx ao longo dos últimos cem anos.

    abraços

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  5. Difícil de discordar... Já até Marx dizia que ele não era nenhum marxista.

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  6. Antropologia?!? Rapaz, agora você está perigosamente perto do lado negro da força. :)
    Se já não leu, não perca o "Aprender Antropologia", do Laplantine. É uma espécie de "antropologia for dummies", e, independentemente disso, um dos melhores livros que já li.

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  7. De fato, Anônimo, Marx não era marxista como ele próprio sublinhou ao longo da vida e, veja só, depois o próprio Engels fez questão de reforçar dizendo que o Materialismo Histórico não se voltava para movimentos ideais, mas sim para movimentos reais - o que excluiria de pronto a possibilidade de falar em "marxismo" enquanto movimento filosófico, social e político. Ironias da história, essa conotação de "marxismo" surgiu entre o pessoal do movimento socialista alinhado a Bakunin para, por sua vez, desqualificar seus opositores pró-Marx. Essa apropriação da obra alheia, seja pela via de um certo messianismo - como no caso de Marx entre a esquerda - ou pela própria fagocitose de conceitos para fazer exatamente o contrário, é dos fenômenos mais interessantes que existem - e merece, ele mesmo, um olhar antropológico.

    abraços

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  8. Ora, HWB, já tem um tempo que fomos para lá - é o que eu sempre digo, nada como uma armadura negra e uma voz de mergulhador dentro de um escafandro! Só sabres de luz não me bastam ;-)

    abraços e a dica tá anotada

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  9. Cara, como assim você acha que sabres de luz não bastam?? Acho que é porque você não viu este vídeo... :-)

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  10. Aproveitando a deixa de Deleuze, e sempre sem perder de vista a prática e o materialismo, peço a licença para sugerir a resenha "Pode sair coisa boa quando Deleuze encontra Marx?", a partir de livro de Maurizio Lazzarato, em http://quadradodosloucos.blogspot.com/2010/12/pode-sair-coisa-boa-quando-deleuze.html
    Abração.

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  11. Valeu pela dica, Bruno - na verdade, já tinha lido esse seu post, mas recomendo fortemente a leitura para quem ainda não o fez.

    abraços

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