domingo, 30 de janeiro de 2011

Egito: ElBaradei, os EUA e a Ordem Global

El Baradei na Praça da Libertação - Al Jazeera, tirada do live bloggin do Guardian

O Egito segue agitado, milhares de manifestantes continuam, neste exato momento, na Praça Tahrir - curiosamente, a Praça da Libertação -, o centro nevrálgico do Cairo, onde ficam o Museu Egípcio - que foi depredado no tumulto -, a sede do partido da ditadura - agora, felizmente, os destroços dele - e a sede da Liga Árabe, entre outros edifícios proeminentes. Eles exigem a renúncia do Ditador Hosni Mubarak, passo essencial para a democratização do país - e Mubarak, aliás, é alguém que está no poder desde que o General Figueiredo era nosso Presidente, portanto, muito antes deste humilde redator nascer e o mesmo, suponho, vale para a maior dos leitores deste blog. Na noite de sexta, Mubarak praticamente coordenou seu pronunciamento oficial com o de Obama em Washington (e o "praticamente", aqui, é um eufemismo diante de toda essa farsa): Sua fala, diversionista, defende seu governo, traz a promessa de endurecer com os manifestantes - como se isso já não estivesse acontecendo -, enquanto o discurso de seu aliado, Obama, passou por genéricas reformas democráticas e pela defesa dos direitos humanos (tudo isso em relação a uma Ditadura esclerosada que ele não deixou de conceder uma ajuda militar bilionária durante os  mais de dois anos de seu governo). 

Até agora, a única reforma democrática que vimos foi a risível nomeação de Omar Suleiman para vice-presidente (cargo até então inexistente), a típica coisa que por qualquer lado que se olhe é completamente absurda: Como bem anota Robert Fisk, trata-se do septuagenário chefe do serviço secreto egípcio, contato-mor com Israel, em suma, uma atitude que além de não ajudar a Ditadura em nada, ainda põe mais lenha na fogueira das manifestações, dado o fato dele ser uma figura naturalmente odiada no país. Por outro lado, aportou no Cairo, Mohammed ElBaradei, Prêmio Nobel da Paz em 2005 e ex-diretor geral da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), cuja atuação naquela organização  foi marcada por ter denunciado que os documentos que diziam que o Iraque adquiriu armas nucleares eram falsos - o que, naturalmente, causou toda uma animosidade com a administração Bush, embora suas posições passem ao largo de serem anti-ocidentais. Sua presença na própria Praça Tahrir conclamando as massas a continuarem o que começaram é mais um importante fator de pressão - ElBaradei é uma voz respeitada dentro do Egito -, o que, junto com a presença de veteranos da Guerra de 67 contra Israel nos protestos, gera um clima de pressão enorme, sucedido inclusive pela convocação de uma greve geral no país. Apesar dos riscos todos e da imprevisibilidade dos eventos, é fato que a ditadura Mubarak foi ferida de morte, a questão é que sua queda o mais breve possível é importante para a concretização de um regime verdadeiramente democrático ao contrário de uma saída gatopardiana - que deve estar na cabeça dos estrategistas de Washington e que estava na fala de Obama. A julgar pelo engajamento massivo da sociedade egípcia, as chances de uma saída secular e, ao mesmo tempo, autônoma aumentam consideravelmente - nesse sentido, ElBaradei pode ser uma chave importante.

Os atuais eventos no Egito e no Mundo Árabe, aliás, são um atestado de que a ofensiva imperialista americana iniciada por Bush Filho em 2001 - e mantida inercialmente por Obama - entrou em colapso. Se  a  política externa americana estreada no Congresso Berlim-África (foto) de 1884 - primeiro fórum internacional de relevo do qual os americanos participaram - era caracterizada por feições peculiares - o controle de pontos estratégicos de acesso para mercados no lugar do controle de enormes territórios e populações e, também, a dominação indireta por meio de aliados -, isso não quer dizer que ela deixava de ser uma espécie de Imperialismo, embora isso também não seja igual ao que é tocado há dez anos: Essa política externa americana tradicional só foi reforçada por Roosevelt, mas é Bush Filho que irá altera-la, lançando-se em uma ofensiva direta e belicosa pelo Oriente Médio - talvez ressentido pela forma como o imperialismo americano tradicional não conseguia reverter uma curva onde a economia americana perdia importância relativa ao Globo. Isso pouco tem a ver com o 11 de Setembro, não custa lembrar que das primeiras atitudes de Bush foi bombardear o Iraque ainda em 20 de Janeiro daquele ano, portanto, bem antes do atentado em Nova Iorque. Seja como for, Bush e o establishment americano subestimaram a capacidade econômica do país e desequilibraram o sistema econômico mundial com esse movimento, o que, junto com a farra de desregulamentação do sistema financeiro e certas idiossincrasias do Capitalismo - a saber, o velho problema da realização do valor - causaram a atual guerra. A ascensão chinesa, a desvinculação da maior parte dos países latino-americanos da sua esfera de controle e, por fim, o desabamento das ditaduras mediante as quais ele controla o mundo árabe são sinais claros de que ou essa insanidade é cessada agora - em prol da construção de mecanismo multilaterais efetivos - ou os EUA assistirão ao agravamento de seus problemas econômicos e políticos nos próximos anos - quem sabe, levando todo o mundo junto.

P.S.: A Internet segue controlada no Egito, enquanto isso, a Al Jazeera (que está dando um show de cobertura) teve seu sinal cortado no Egito assim como repórteres da Telesur foram expulsos do país.

12 comentários:

  1. Como bem disse, a ascensão da China, a desvinculação de países latino-americanos do controle norte-americano, além do desvanecimento dos ditadores de plantão têm desmentido a falácia de alguns jornais, ao estamparem em suas capas que os EUA têm crescido, têm se recuperado da crise etc. O capitalismo selvagem, às custas da miserabilidade de muitos, da exploração da força de trabalho de tantos outros...está fadado a sucumbir. Que venha a democracia!

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  2. Nirsan,

    Os EUA sempre usaram, de forma hábil, o seu Imperialismo tanto para saciar o apetite do seu grande capital quanto, veja só, como uma astúcia para projetar para fora a pressão resultante de sua questão social. Mas o passo que Bush deu foi maior do que a sua perna - do mesmo modo que a saída de Obama de emitir dinheiro para manter essa loucura está sendo fatal política e economicamente. Não acho que uma hecatombe americana seria a melhor saída, talvez, uma saída pragmática que apontasse para um fortalecimento da ONU com os EUA usando do que resta da sua força para tocar esse projeto, mas isso é quase impossível diante do grau de degeneração do sistema político deles.

    abraços

    P.S.: Há tempos dizia que os americanos estavam diante de uma bifurcação entre o caminho britânico (o abandono de uma política imperialista que tinha se tornado um ônus) ou o caminho soviético (insistir numa grandiosidade incompatível com suas capacidades). É claro que abdicar do imperialismo fará os americanos a enxergarem certos demônios internos (como a exploração do trabalho) de frente, o que seria curioso.

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  3. Caro Hugo,

    É claro, o “capital” não é bobo, mas chega um momento em que se contradiz e cai em suas próprias armadilhas! A partir do momento que explora outros países, principalmente com intuito de explorar recursos e mão de obra barata, tira de si a responsabilidade social.

    Realmente, não é saudável a ninguém que os EUA se afunde... Mas é patético ouvi-los falando em “democracia” sendo que são grandes apoiadores das ditaduras e da desigualdade social – as principais formas de sustento de sua economia. Mais patético e triste é perceber como os norte-americanos (classe baixa) se deixam iludir acreditando que, por serem norte-americanos têm todas as chances para crescer e ser vitoriosos; porque vivem em um país democrático e do bem estar social. Que balela! Um discursinho capitalista falacioso, para que prevalece a máxima "cada um por si e Deus por todos", eximindo o Estado de suas responsabilidades.

    Sinceramente, não tenho idéia do que seria uma possível solução para a mudança ideológica e política dos EUA. É algo para talvez, uns 50 anos. A crise já é alguma coisa, um alerta pelo menos...

    Quanto a enxergar seus próprios demônios, está mais do que na hora, não acha?

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  4. Sim, sim, Nirsan, de acordo. E, pelo amor ou pela dor, essa política americana irá ser interrompida. Claro que existe uma hipótese boa - uma saída negociada - ou o desastre - o que pode nos levar juntos, seria horroroso. Mas eu penso que a questão americana passa muito além da própria ideologia, isso tem a ver com uma questão cultural que só é possível por conta da forma peculiar que sua economia é estruturada - e depois de Deleuze e Guattari, sabemos que a economia política vai bem além de relações formais de produção e troca, ela, antes de mais nada, é uma economia de afetos que são trocados, onde o investimento do desejo é essencial para sua produção assim como estrutura seu sistema de trocas (assim como o próprio recalque operante).

    Uma mudança nos EUA passa, no meu humilde entendimento, tanto mais por uma mudança no sentir e na percepção das coisas do que numa mudança de pensamento, o que pode tornar as coisas mais simples ou até mais complexas dependendo do caso - e veja você o exemplo tunisiano que iniciou essa coisa toda: Não houve uma virada radical no pensamento e na consciência daquela sociedade, mas uma liberação do desejo em uma escala enorme num curto espaço de tempo devido a eventos relativamente simples (a militância wikileakista, o sacrifício do camelô). Um mês desfez 23 anos de tirania e ainda gerou um efeito dominó na sua região.

    Nesse sentido, a perda da base material que mascara certas inerências do Capitalismo pode ser o começo de mudanças bastante profundas - e consideravelmente rápidas - nos Estados Unidos.

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  5. Sim Hugo, é feito de trocas, muitas vezes desiguais e desproporcionais. Quanto ao “desejo”, o capitalismo cria desejos, não necessariamente desejos realmente necessários à sociedade.
    De fato a mudança deve ser impregnada na cultura norte-americana, não somente na política ou no mundo das idéias...é muito mais complexo e é trabalho para muita reflexão e análise.
    De toda sorte, é possível vislumbrar um futuro melhor, as mudanças estão acontecendo...

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  6. Estão e elas vão continuar a acontecer. Cá do nosso canto, apesar das agruras do que acontece - e sobre o que ainda vai acontecer - é impossível não comemorar este momento.

    abração

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  7. Muito boa síntese, como sempre, Huho.

    Não tenho otimismo com as manobras de Obama e Hillary. Eles voltaram a defender, basicamente, o mesmo discurso da desacreditada diplomacia americana e do próprio ditador Mubarak há 30 anos: lentas mudanças, reformas pontuais, respeito aos direitos humanos.

    A revolução no Magreb é uma revolução dos pobres. O componente religioso é incidental. Luta-se contra o fosso entre ricos e precários, decorrente de décadas de neoliberalismo promovido pelo estado, o que gerou uma juventude sem renda e sem participação política, alheada do consumo; e contra a política externa condescendente com o plano geopolítico da aliança EUA-Israel, que esfacelou de vez o consentimento popular nas ditaduras.

    Essa revolução está ocorrendo sem dirigismo, sem bandeiras ou ícones religiosos, sem vanguarda leninista, é realmente sem precedentes, algo nunca visto. Está com a cara da revolução multitudinária descrita por Antonio Negri em "Poder Constituinte" ou "Multidão".

    Nesse sentido, El Baradei pode ser o 9 Termidor. É o império capitalista tentando salvar alguma coisa da revolução social, que ameaça disseminar por toda a região, pela Europa (lembremos da imensa população árabe capilarizada em situação precária nesse continente) e, quem sabe, até o outro lado da Ásia. Claro que Baradei é mais do que isso, e sua trajetória não me deixa desacreditá-lo, mas na falta de alternativas, é óbvio que as potências ocidentais estão jogando com essa peça.

    Não vejo porque terminar a revolução. Nem na Tunísia nem na Argélia nem em país algum. É a mesma revolução. Num artigo de hoje, o Fisk está certo: o começo do fim.

    Abraço!

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  8. Bruno,

    Obrigado. Mas eu também não tenho otimismo algum com a dupla Obama-Hillary. Como eu disse logo após a declaração de Obama pelo Twitter - e que reiterei no post -, aquilo que foi uma jogada diversionista que procurava colocar os EUA numa posição não comprometedora diante dos abusos e, ao mesmo tempo, passava um recado: Os EUA estão empenhados agora num lance gatopardiano, é preciso que algo mude para nada mudar.

    A Revolução que se expande pelo Mundo Árabe é sim das minorias e seu caráter multitudinário - e anti-vanguardista - é uma confirmação de muito do que Negri e Hardt têm produzido nos últimos anos. Mais do que isso, ela os confirma porque não é uma Revolução política, mas sim Cosmopolítica e cosmopolita - e, de fato, não é possível estabelecer um corte entre Tunísia e Egito (e todos os demais), mas sim um mero picote, uma descontinuidade contínua com fins meramente didáticos.

    Sobre ElBaradei, eu não chegaria a tanto, ele pode ser a chave para um governo transitório ou, pelo menos, um bom fator de pressão ele é - e um fato de pressão que não se dobra fácil com pressões. Mas entendo o que você diz, como eu coloquei, ele é, de todo modo, um homem do establishment global, ainda que razoavelmente decente no que faz.

    E concordo com Fisk, depois desses eventos, o exercício do Poder não poderá jamais ser exercido da mesma forma. A intensidade desse bom encontro e como ele produz uma liberação do desejo é algo ímpar: Não é questão de saber que existe exploração ou que os EUA tem um papel sujo no Oriente Médio e no Norte da África, mas de desejar não mais está sujeito (pelo menos não dessa forma), não é entender isso, é ter tesão para não estar mais debaixo disso. Os tiranos árabes perderam seu encanto, não estão mais conseguindo fazer as pessoas ficarem tristes.

    abaços

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  9. A questão chave dos entraves a alguma forma de democracia nos países árabes é a soberania nacional desses países. Esses regimes autoritários todos têm tido comportamento em geral dócil ao que realmente importa na Europa e nos Estados Unidos: seus interesses financeiros e geopolíticos na região. A única democracia viável para os americanos e europeus teria que ser como a deles próprios: muda o partido no poder mas o essencial [as estruturas de poder econômico e ideológico] continua igual. Isso é impossível tendo em vista que "manter esse essencial" no terceiro mundo significa manter-se a serviço dos países ricos. A discussão ideológica é uma mera cortina de fumaça: vejam o caso de China e Cuba, dois regimes praticamente iguais recebendo tratamento diametralmente oposto da política externa americana. O exemplo é tão óbvio que dá vergonha de citar, e o fato de ter que citá-lo dá uma medida da estrutura de poder ideológico na mídia...
    Agora, quando as pessoas todos se juntam na rua e começam a gritar "chega!"...

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  10. Exato, Paulo, essa é uma questão onde aquilo que existe no plano interno daqueles países é, olhe só, necessariamente fruto de uma designação da ordem global atual - e vice-versa. De tal forma, uma mudança lá implica em uma mudança de lá fora. É verdade que esse tema já esteve posto na América Latina - ou mesmo na Europa - em outras ocasiões, mas é fato que nunca na História recente a ficção na qual se constitui o Estado-nação ficou tão à mostra. Ao meu ver, apesar de que isso se deva sim às peculiaridades dos países árabes, eu penso que o grosso desse processo é uma decorrência do processo de globalização.

    No caso do tratamento desigual de China e Cuba, sim é a própria ideologia a todo vapor, transformando iguais em desiguais (embora igual em gênero, porque em espécie a China é bem pior do que Cuba) do mesmo modo que ela transforma desiguais em iguais (as simetrias falsas). Mas para além desses jogos da consciência existe toda uma escala inconsciente - e seu investimento no campo social - que precisa ser mais bem compreendida: As pessoas não se juntaram na rua e começaram a gritar "chega!" porque tomaram consciência de sua exploração, mas porque algo as permitiu desejar fazer isso contra todo o recalque estabelecido pelo sistema; enfim, é tentar entender como aquelas tiranias, de uma vez só, perderam a capacidade de resignar as pessoas.

    abraços

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  11. Imagine se fosse em Cuba, como seriam bem diferentes as manchetes dos 'jornais-padrão' em todo o mundo...

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  12. Sim, Luis. É a boa e velha ideologia: Condenavam Lula porque eles diziam que ele queria um terceiro mandato (isto é, eles queriam que ele quisesse um terceiro mandato para poder recrimina-lo) ao mesmo tempo em que fecham os olhos para a gloriosa emenda da reeleição de FHC - aprovada nós sabemos como. Ainda assim, isso é só uma pequena parte do processo de dominação.

    abraço

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