sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Depois da Tunísia, o Egito

A Multidão e a Polícia no Cairo 

O processo de descolonização do Norte da África e do Oriente Médio, coincide, a grosso modo, com um período de desmonte do Império Otomano e a ascensão dos Estados Unidos enquanto a grande potência econômica mundial. Washington opta por uma política de interferência permanente naqueles jovens Estados, geralmente por meio de aliados locais - quase sempre ditadores - e do controle direto de pontos estratégicos, com direito a incursões militares, em suma, imperialismo à americana em profusão por conta da localização estratégica de vários daqueles países e, claro, da existência de petróleo neles - o ouro negro, combustível da máquina capitalista americana. Instituições frágeis são subornadas, corrompidas ou simplesmente derrubadas por meio de golpes de aliados seus, autoritarismos amigos são erigidos e omissões honrosas escondem párias ou buscam justificações perversas para seus regimes. 


No entanto, algo está mudando no mundo e muito rápido: Se por um lado, a decadência gradual dos Estados Unidos - que se verificava pela queda da importância relativa do seu PIB em relação ao mundo - foi mascarada pelo colapso soviético, por outro lado, os Governo de Bush Filho e o de Obama trataram de acelerar o processo, às custas de irresponsabilidade econômica e decisões geopolíticas desastrosas. Isso muda completamente o jogo da geopolítica internacional e a hegemonia americana é abalada; se tivemos mudanças importantes na América Latina na última década, hoje, a grande região que inclui o Magheb e o Oriente Médio sente novos e bons ventos soprando: Somada à decadência dos americanos, a degeneração dos regimes que lhes são fiéis, o avanço tecnológico e o aumento da organização dos movimentos sociais naqueles países estão minando o esquema de Washington. 

Tunísia
Os eventos de Dezembro do ano passado colocaram abaixo o Ditador Ben Ali na Tunísia na chamada Revolução do Jasmim afetam todo Norte da África. O processo revolucionário tunisiano, aliás, em muito lembra a Revolução dos Cravos no Portugal nos anos 70, seja pela derrubada de um regime obtuso que era tratado com eufemismos pelas potências ocidentais devido à sua lealdade, quanto pela complexidade do processo - é provável que ele demore anos - e até por certas coincidências como, por exemplo, os insistentes boatos ecoados sobre os riscos do fundamentalismo islâmico tomar o controle da situação - algo parecido com o que se fazia no Portugal dos anos 70 em relação ao Comunismo -, quando, na verdade, o grande risco é mesmo dos integrantes do Velho Regime conseguirem neutralizar os efeitos da insurgência. Outro paralelo importante, é o quanto essa Revolução refletiu a realidade de uma região inteira, uma reivindicação que mais do que política, é geopolítica - e em certa medida, até cosmopolítica. Como dito, os efeitos da Tunísia se espalharam pelos seus vizinhos - e aqui, falo de Egito e Argélia fundamentalmente, mas isso tem desdobramentos agora sobre o Iémen e o Líbano.

Pois bem, hoje, o Cairo segue em plena ebulição, enquanto as coisas estão quentes na Argélia também. Como o Tsavkko lembrou bem, embora estejam no mesmo plano e sejam vizinhos, é necessário pontuar que as sociedades egípcia e argelina não são laicas com a da Tunísia. De fato, existem grupos religiosos importantes e beligerantes como a Irmandade Muçulmana no Egito e a Frente Islâmica de Salvação na Argélia, o que é um considerável combustível de risco - e o que pode, de fato, dar um caráter diferente para eventuais derrubadas dos regimes locais. Claro, isso não esgota, de modo algum, a legitimidade das reivindicações contra os regimes de Mubarak no Egito ou de Bouteflika na Argélia, mas apenas apresentam sim um fator de risco real inerente à sua eventual  (e quem sabe necessária) derrubada. 

A batalha campal do Cairo (Tahrir Square) 
O que estamos vivendo exatamente agora é um verdadeiro clima revolucionário no Egito: Dezenas de milhares de pessoas estão nas ruas do Cairo, o toque de recolher foi decreto, há violência policial, a sede do partido do governo foi saqueada e há um risco claro e iminente de queda do regime de Mubarak, o que deixa Washington em polvorosa: Não falamos de um país relativamente pequeno como a Tunísia, mas de um aliado estratégico de grande porte que recebe uma ajuda militar enorme. Palavrinhas como Canal de Suez e Israel devem estar tilintando na cabeça das lideranças americanas neste exato momento. O fato é que a multidão está nas ruas e ninguém tem controle da situação, mas pelo menos graças a cobertura da Al Jazeera - para variar - não estamos completamente cegos em relação ao que realmente se passa agora no Cairo, embora a torrente de informações que chega até nós seja fabulosa e enebriante.

Cairo -- Tahrir Square
Trata-se, com efeito, de um momento espetacular: A História pulsa intensamente viva depois de a terem declarado morta, tesa e dura, não tem nem um quarto de século. Os desdobramentos desse eventos são surpreendentes e se projetam para o Leste e também para o Sul. A hesitação de Obama em aceitar a nova - e desfavorável - situação geopolítica americana para, assim, poder negociar uma nova ordem mundial multipolar não evitou, naturalmente, que as mudanças necessárias se operassem por vias outras. O resultado é semelhante - e em larga escala - ao que se viu no Leste Europeu nos anos 80, só que em larga escala: Uma potência hegemônica que perdeu a sensatez e o substrato moral assistindo à derrocada do seu controle do espaço por conta da multidão nas ruas. É um momento revolucionário e, como tal, nos reserva uma miríade de desdobramentos possíveis para tão logo. Fiquemos à espreita.

*imagens de Fethi Belaid/AFP (foto 1)  Mohamed Abd El-Ghany/Reuters (foto 2) e Mohammed Abed (AFP) (fotos 3 e 4) -- retirado do álbum do Boston Big Picture sobre o Cairo e a insurgência no Maghreb e no Oriente Médio onde você pode encontrar outras belas fotos dos fatos.

Atualização (19:02): Assistam à Al Jazerra em inglês. O bicho tá pegando.

6 comentários:

  1. É sempre bom lembrar duas coisinhas a respeito do Egito. Primeiro, o fracasso do projeto neoliberal no país, desde Anwar Sadat o país tem sido o mais aberto a investimentos e amigável aos negócios do mundo árabe, os resultados são pobreza e desemprego, mas isso é pouco mencionado, afinal o que os amantes dos Chicago Boys que adoram brandir o Chile por aí iriam dizer sobre um país que segue toda a cartilha neoliberal e está na lama.

    Segundo, é como podemos estar vendo um renascimento do nacionalismo árabe, em questão de semanas as revoltas se espalharam da Tunísia pra Argélia, Egito, Iêmem e já falam de Jordânia e até a Síria. Só lembrar que foi o fracasso deste projeto que abriu caminho pro fundamentalismo islâmico dá conta da importância disso, o pior que pode acontecer na minha opinião é novamente o Ocidente torpedear as chances de lideranças laicas como El-Baradei (que não me parece exatamente um anti-ocidente, trabalha na ONU etc) chegarem ao poder, só pra depois amargar a hostilidade dos doutores da Sharia.

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  2. Hugo,

    Eu estou atônito com o que está acontecendo agora no Egito. O país é peça chave para a manutenção dos regimes políticos do Oriente Médio e África do Norte. Se cair, pode levar junto outros governos.

    Não sei se existe ainda, mas o Egito foi um dos grandes entusiastas da formação de um grande bloco formado pelos países árabes que se formaram da desintegração do Império Otomano. Seria a "Pátria Grande" deles, formada por Egito, Líbano, Palestina, Síria, Jordânia e Iraque. Um ideal que tinha grande aceitação popular. Houve até um passo bastante ousado neste sentido no final dos anos 50, se não me engano, numa associação entre Egito e Síria/Líbano _ a República Árabe Unida.

    Como disse, não sei a quantas anda esse ideal pan-arabismo no Egito ou nos outros países da região, mas uma mudança de regime no Egito sem dúvida vai causar uma dor de cabeça enorme em Israel e no seu eterno aliado, EUA.

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  3. Sim, Derfel, há mais de trinta anos o Egito está inserido no esquema do Ocidente, economicamente, politicamente e estrategicamente. Mas eu penso que cada vez mais, estamos diante não de um Estado Mínimo, mas um Estado Grande, cujo projeto, entretanto, põe a si mesmo e a toda sociedade em função da manutenção e reprodução do Capitalismo (local e, sobretudo, internacional), usando das ferramentas que tem à disposição, agindo e se omitindo para tanto. Também sou um pouco cético, o que está acontecendo é fascinante, mas ao mesmo tempo tem suas armadilhas logo adiante - mas, claro, nesse momento, o Ocidente conta com os fundamentalistas para ter um álibi.

    abraços

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  4. Eduardo,

    Estamos atônitos nós todos. Eu penso que a Tunísia, por si só, foi um catalisador incontestável do que poderia ser o início a uma Revolução Árabe; agora, com o êxito das mobilizações no Egito, isso pode ter entrado em curso mesmo: Trata-se, sem dúvida, de um corte histórico radical que vai alterar severamente a geopolítica mundial. É incrível ver a História passando diante dos nossos olhos como agora.

    abraços

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  5. Maravilhoso ver mulheres marchando juntas. Espero que, livre, o Egito as libere.

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  6. Sim, Sueli, estamos na torcida aqui também - aliás, dentro de um cenário de eventual ascensão da Democracia ao longo do Maghreb e do Oriente Médio, a questão da mulher naquelas sociedades certamente será uma das principais pautas a emergir.

    beijo

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