sábado, 15 de janeiro de 2011

A Revolução Tunisiana

retirado daqui
A Tunísia, uma república árabe do norte da África, está passando por um processo revolucionário. Falamos de terras cuja  história é simplesmente fantástica: Sua aparição na História Universal começa com a expansão fenícia para o norte da África, o que resulta na construção de um importante entreposto comercial sobre o qual é edificada Cartago, das mais poderosas cidades da Antiguidade. Durante séculos a fio, cartagineses disputaram com as cidades-estado helênicas e com os romanos a hegemonia do Mediterrâneo. Sua derrota definitiva para os romanos foi dos maiores eventos da Antiguidade e seus ecos sentimos até hoje, o centro do mundo conhecido passou irremediavelmente para a Europa de onde a cultura ocidental (europeia ou, se muito, euro-originária) se projetou continuamente, num processo ainda em curso - o obstinado Delenda Carthago est de Catão, pelo jeito, surtiu efeitos. O que hoje é a Tunísia passou de colônia romana para o domínio árabe, depois otomano e, por fim, francês, até sua independência nos anos cinquenta. Sua independência foi parte do grande movimento nacionalista e anti-imperialista que, ao fim da Segunda Mundial, agitou o mundo - em especial África e Ásia, onde França e Portugal ainda mantinham uma decrépita estrutura imperial. Mas nem tudo são flores e a História nos ensina que irrupções revolucionárias nem sempre se traduzem em libertação real. Não, o problema não são os romanos, os árabes, os turcos ou os franceses - nem mesmo o colonialismo -, mas sim os velhos mecanismos de dominação que eles puseram em prática; mantenha-os e você apenas estará trocando os atores, mas a peça encenada ainda será a mesma. Cinquenta e quatro anos de autoritarismo nacionalista - e apenas dois presidentes em sua existência independente - somados a muita corrupção e exploração depois, irrompem revoltas populares e o velho Estado entra em colapso - com direito até ao habitual, e ensurdecedor, silêncio da mídia ocidental, o que é a praxe quando das quedas de tiranias amigas. Mas há algo de novo aqui: Como bem observa Elizabeth Dickinson na Foreign Policy (aqui, em português), essa pode ser a primeira Revolução Wikileaks, afinal de contas, um dos grandes deflagradores da revolta foi, justamente, o conteúdo dos telegramas da  diplomacia americana sobre a Tunísia revelados por aquele site (movimento?), seguido por uma medida atabalhoada do regime local em tentar censurar a rede e perseguir ciberativistas. Ainda é cedo para dizer o que pode acontecer com a Tunísia, as coisas estão em plena ebulição, mas esperemos que elas se encaminhem bem desta vez. Seja como for, as informações do Wikileaks não são tão inofensivas quanto alguns gostariam que fossem.*


*fiz algumas pequenas correções e alterações no texto, mas nada que tenha mudado o sentido dele. A maldita pressa, sempre ela.


Atualização de 16/01 às 00:25: Interessante ler o post do embaixador português na França (sim, ele tem um blog) sobre o caso - ele exprime bem uma visão, não muito incomum, da diplomacia europeia sobre a questão: Os europeus perderam uma ditadura amiga bruscamente e estão temerosos enquanto resmungam.

8 comentários:

  1. Realmente o que acontece na Tunísia precisa ser acompanhado com atenção. Não acho que o WikiLeaks tenha sido definidor profundo do que ali acontece, mas uma gota d'água, a lenha a mais para incendiar a floresta.
    E quando falo isso não é pra diminuir a importância do WikiLeaks, mas justamente levando em conta o processo que contas no post, pra mim o WikiLeaks serviu de catalisador, em diversos outros lugares também o poderia ter sido, mas talvez a realidade tão pauperizada de outros países que tiveram telegramas importantes revelados ajude na contenção do avanço...
    Tenho expectativas positivas no que acontece na Tunísia agora é acompanhar o desenrolar dos manifestos e das eleições que já foram chamadas.

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  2. Sim, Luka, as informações que o Wikileaks trouxe à luz foram apenas um elemento catalisador da revolta, mas acrescento: Um catalisador providencial, seja pelo efeito imediato ou pelo eco que ele produz. Só o fato da ditadura ter caído já é ótimo, mas a vitória popular depende de muita coisa. A história das revoluções é gloriosa em seus percalços...

    beijo

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  3. Que bom que a História é como a estória daquele filme que marcou a infância de nossa geração, Hugo.

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  4. Boa lembrança, Luis - chorem fukuyamistas!

    abraços

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  5. Hugo,

    fico sabendo disso tudo pela tua nota, e agradeço.

    Só escreve aqui para te pentelhar: se entendi bem você sugere que a derrota de Cartago transferiu o centro de poder no "mundo conhecido" para a Europa.

    Mas a Europa só se tornou o centro do mundo após a revolução industrial, e mesmo o império romano era periférico em relação ao império persa, a Índia ou o império chinês.

    Isso pensando pelos mesmos critérios que consideramos a Europa/EUA como centro hoje: liderança econômica, cultural e militar.

    Acho que estudar a história antiga como se Grécia e Roma fossem os centros mundiais da época é apenas mais eurocentrismo.

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  6. André,

    De fato, muitos povos julgavam seus Estados como o centro do mundo - a China está aí para não me deixar mentir (bastava ver a etimologia do seu nome em mandarim que é, justamente, país do meio [zhongguo]).

    No entanto, o que eu quis exprimir com a expressão "mundo conhecido" - e por isso não usei simplesmente a expressão "mundo" - era aquilo que, do ponto de vista das culturas do mediterrâneo, convencionava-se por mundo - em que pensem algumas divergências cartográficas aqui e acolá.

    A vitória sobre Cartago deu à república romana condições geopolíticas para empreender o processo que resultou na sua expansão e na constituição do seu Império, materializando-se como um corte fundamental na História.

    E isso implicou em um processo de expansão cultural e política como descrevi que dura até hoje e, sim, explica porque se fala em Comunismo na China e porque o Japão é uma Monarquia Parlamentar. Uma vitória cartaginesa e a história seria outra.

    abraços

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  7. Salve, Hugo,

    Tenho lido com muita avidez os acontecimentos na Tunísia. A esqueda antiquada se apressa em tentar enquadrar as lutas tunesinas em seus modelos prontos. Como se fosse mais uma confirmação de seus esquemas anquilosados. Acho que é o inverso. Para não engessar, é preciso buscar no processo constituinte da Tunísia (14 jan 11), e também na revolta dos precários da Itália (14 dez 10), a matriz de um pensamento de esquerda.

    Tenho minhas dúvidas se podemos chamar de primeira revolução do Wikileaks. Me parece que Wikileaks e Facebook, assim como a telefonia celular, tiveram um papel importante na articulação dos movimentos, mas nada substitui sair às ruas e se bater com a polícia da ditadura, expondo o próprio corpo em desafio ao poder soberano. Mas de fato as redes sociais catalisam e potencializam. Em termos de militância, saímos da era "coletivos & reuniões" e entramos na era "redes & vibrações".

    O grande desafio da multidão tunesina agora é constituir uma democracia islâmica. Provar que é possível conjugar democracia radical com seu modo de vida. E a partir daí servir de memória para movimentos de democracia noutros países árabes, seja naqueles tomados por tiranias servis aos EUA, seja nos regimes teocráticos.

    Abraço.

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  8. Sim, Bruno, é por aí mesmo. É o uso do produto tecnológico-informático como forma de potencializar a luta política - e não seria ela mesma, a ciência da política, uma espécie de tecnologia? É a maravilha da revolta na qual o homem se apropria dos instrumentos que servem à sua exploração - direta ou pela administração do trabalho - para fins opostos. A esquerda velha da Europa, a essas horas, está de braços dados com a direita, criando o fantasma do "fundamentalismo islâmico infiltrado na sociedade tunisiana" como forma de deslegistimar a multidão nas ruas. São idealistas que criam modelos para tudo e, caso algo (a própria natureza que seja) escape a eles, dirão que está errado - como dizia o velho Spinoza.

    abraços

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