domingo, 4 de março de 2012

Sobre a Identidade: o Nome de Deus

A Criação de Adão -- Michelangelo

Bruno Cava, para variar, nos brindou com mais um belo texto em seu blog, fruto das discussões que participou acerca do conceito de identidade no Ocupa Teoria - e de algumas conversas que tivemos. Identidade é muito sobre o que tratamos e polemizamos há tempos, já que a própria construção platônica - ou seja, o ramo tradicional da filosofia, embora eu prefira "sedentário" - se assenta sobre ela. Identidade é a condição de ser idêntico, isto é, nutrir um vínculo interior com algo igualmente revelado (na verdade, concebido). O processo de identificação decorre de um outro movimento que demanda a nomeação das coisas, isto é, identificar é organizar uma multiplicidade qualitativamente, estabelecendo um rótulo que delimita sua potência de agir, mas se opera em teias, juntando isto a aquilo e assim por diante (isto é como aquilo, logo precisa, ou é passível, agir até aqui e não até ali).

Quem somos? é, não à toa, uma questão tão recorrente, mas ela esconde a submissão a uma paixão triste. Não fosse isso, porque a preocupação em definir nossa existência e a quem isso interessaria, se pôr um limite em nós mesmos não parece muito vantajoso? Isso suscita a presença e atualidade o Poder enquanto instância que faz sombra à vida. Em primeiro lugar, não há poder sem mecanismos de identificação. Uma ordem precisa de um destinatário definido, ordens têm dificuldades para lidar com multiplicidades, por isso precisam, antes de mais nada, reduzi-las a termo - normalmente em uma linguagem binária como é, p.ex., a linguagem jurídica. Ordens, no entanto, são meios, portanto, falamos de um ordenante invisível e evidente como o deus de Victor Hugo.

Vejamos, a tradição judaica, enunciar o nome de deus é uma falta grave, pois isso seria uma subversão da ordem, uma vez que é o Pai que nomeia o Filho. Isso suscita o óbvio: os velhos hebreus já percebiam que uma estrutura de Poder se assenta sobre sua capacidade de nomear outrem, pois é impossível ordenar o inominado ou o inominável, a multiplicidade pura, o fluxo não codificado ou indecodificável - nesse sentido, desde as tarefas regulares do Estado em identificar seus súditos até a pretensão da tortura se unem em torno do mês fim, é preciso dizer nomes. Se o teológico - ou, no caso, o proto-teológico - sempre foi uma construção abstrata voltada para gerir coisas bem concretas por meio de simbolismos, inaugurava-se ali uma noção fantástica em forma de dobra.

Acerca dessa dobra, podemos dizer: (i) o Poder precisar ter a capacidade de nomear a tudo e a todos e (ii) o Poder não pode ser nomeado, pois aí ela estaria inserido em um plano de imanência na qual a sua pretensa hierarquia seria impossível - em um exemplo bem brasileiro, podemos dizemos que o STF é quem declara o que é constitucional ou não, mas não há outro entre que possa deliberar acerca da constitucionalidade de suas decisões, logo, suas decisões pairam sobre todos juridicamente, uma vez que não podem ser nomeadas e embora sirvam para nomear a todos (as pessoas e os atos).

Caminhando um pouco mais para o futuro e para o oeste, quando Platão se presta a desenvolver seu sistema, negando o desejo e disfarçando o papel criador do filósofo sob o manto da transcendência, ele tem uma preocupação eminentemente política: resolver as questões da democracia, que ele vê como nociva, hierarquizando saberes e desenvolvendo a instância da mediação - uma pré-teoria do Estado, digamos, uma teoria de órgão para o corpo, isto é, dar um status supremo à boulé (o conselho supremo de Atenas) para que ela capture de vez a irrupção do desejo já traduzida na forma de problemas (isto é, proboulema, as moções que os cidadãos submetiam à boulé).

A experiência jurisprudencial romana, por sua vez, nos legou uma linguagem misticamente bipartida: se eu digo que vou escrever, faço uma afirmação concreta da minha potência e do meu desejo, se eu digo que tenho o direito de escrever, tudo muda, pois eu estou dizendo que eu posso em virtude de que alguém deve permitir ou criar meios para que eu consiga fazê-lo. Tudo isso parte de um pressuposto místico de que alguém deve algo para mim, de forma finita ou não, isto é, há uma servidão deduzível de uma dita essência das coisas.

Se o direito moderno é estatal e absoluto, certamente isso decorre do fato de que a teoria da justiça da filosofia helênica - organizada como forma de selecionar multiplicidades, enquadrando o desejo - passa a falar a língua do juridiquês romano e aceita o deus sem nome hebreu. A dívida torna-se infinita, não porque assim o é nosso grande credor, mas sim porque não temos como pedir ou exigir perdão de um credor absoluto que é o supremo inominável nominador e, não se esqueçam, quem nos nomeou. Ele pode enunciar ordens para nós e nós não temos, efetivamente, como lhe dirigir a palavra. Se pairam dúvidas se há mesmo o deus sem nome, na prática, não resta dúvida que há um Estado que faz suas vezes. 

Como toda servidão é voluntária, nos acomodamos com isso e pagamos um preço alto que é submetermos nosso desejo, desde muito, aos avatares do inominado. Tanto que por mais que gostemos das revelações de Wikileaks, não deixamos de ver aquilo tudo como um pecado muito grande: tudo bem de sermos identificados, pode parecer ruim, mas há boa intenção nem que seja só nos fins, mas desfazer o mistério da operação divina de identificação - que é meio caminho andado para passar a nomear seu agente, jogando seus avatares no mundo mortal - nos é assustador.

Na Internet, vivemos a primeira experiência em larga escala na qual a identidade era relativizada - nesse sentido, a Internet é literalmente cínica, pois, como os velhos cínicos, que decorriam de Sócrates, mas eram alheios e antagônicos aos platonismos, máscaras são só meios para atuarmos na patética representação que Platão quis converter as nossas vidas, para ironiza-la. Sem um dispositivo de identificação absoluta, o Poder topa com um cenário que lhe escapa pelos dedos, daí essa busca insistente por mecanismos disciplinares ou mais flexíveis de fichamento dos usuários da rede.

O mesmo podemos dizer sobre a luta das minorias: ninguém é uma minoria (mulher, homossexual, pobre etc), mas o é tornado por meio da identificação, o que produz efeitos reais. Quando essas minorias se levantam, naturalmente o fazem de forma identitária, usando-se do vínculo com aqueles com o quais estão vinculados na desdita. A diferença entre um grupo emancipador e um grupo sectário é que o primeiro compreende que a identidade é um ente imaginário e não real, que a luta é para fora e rumo ao Oceano, para devir multidão, enquanto o segundo quer se fechar na Ilha na qual ele mesmo foi exilado.

Lutar contra a identidade não é, portanto, questão de optar entre ela e o anonimato - como observa bem Bruno, usando-se do perspectivismo -, mas sim, complemento, por meio de uma teoria suficientemente cínica* que consiga fazer uso dessas diversas máscaras pragmaticamente - como faço quando escrevo este blog com minha identidade civil numa época em que aqueles que pertencem à minha geração se calam por medo do controle (jurídico, econômico, moral etc) ao qual ela é submetida. Ao mostrar desprezo pelas amarras que a sociedade me impõe quando escrevo em nome próprio, não afirmamo a identidade, mas sim a sobrecarrego, por não me render às expectativas que o dispositivo de identificação pretende me incutir quando me identifica.

E tudo isso é parte da nossa tarefa positiva de trazer à baila como todos esses jogos de espelho patéticos só servem para esconder que, no fim das contas, o exercício do Poder se volta unicamente para a auto-satisfação do seu operador paranoico, uma criança mimada e ela mesma medrosa.


Nenhum comentário:

Postar um comentário