terça-feira, 16 de setembro de 2014

O Porvir do Brasil II: A Veja, Marina e o Extremismo de Centro

Foto tirada daqui
A capa da revista Veja desta semana ilustra uma cena curiosa: Marina Silva seria vítima de uma campanha caluniosa, de uma fúria nunca antes vista numa corrida eleitoral. Mas o fato é que isso ilustra, antes de tudo, o próprio argumento da candidata face às críticas que ela tem sofrido (não à toa, a capa foi exibida no próprio perfil do facebook de sua campanha); se, por um lado, Marina passou a ser criticada porque apareceu com força nas pesquisas, por outro lado, sua resposta vem em um momento que ela, depois de um crescimento vertiginoso, está a perder terreno para sua principal rival, e postulante à reeleição, Dilma Rousseff. Nenhum dos dois movimentos é estranho à política, mas só é estranho que Marina o acuse em um momento no qual flutue para pior.

Até agora, nenhuma acusação expôs a vida pessoal de Marina como, verdade seja dita, ocorreu com Lula na derrota para Collor: até uma filha concebida fora do casamento do candidato, e futuro presidente, foi exposta -- Collor e FHC tiveram casos parecidos em suas vidas privadas, mas isso jamais foi utilizados contra eles nem pelos adversários (incluso aí o PT), tampouco pela mídia grande. No que toca às eleições em curso, como lembrou o filósofo Renato Janine Ribeiro, Aécio e Dilma estão expostos a críticas inclementes há tempos, por que então Marina, que é tão candidata quanto eles, estaria isenta dessas cobranças e questionamentos? Ou por que ela, por exemplo, comparou o PT com o "chavismo"?

Se essa última flutuação eleitoral se manterá ou se Marina vai se recuperar, não se sabe. O que interessa é que existe um fenômeno importante de fundo. Marina, ao cometer essa pequena contradição -- criticar o adversário por ele ter lhe criticado como se isso, em si, fosse um problema -- revela bastante disso. É a exposição de algo latente nos últimos anos que se popularizou pela crítica ao "Fla x Flu" político: o antagonismo recriminado uma vez que emerge no palco do debate público brasileiro; ele acaba posto em seu devido lugar como se fosse não a alma da política, mas uma deformação sua. É o velho "política, futebol e religião não se discute".

Nada novo sob o Sol. Se é conhecido o fato que alguns países sofreram com regimes ditatoriais de direita, outros com tiranias de esquerda -- outros de ambas. No caso brasileiro, ironicamente, apesar de histórico de autoritarismo sempre conservador (mesmo o varguismo, apesar das idas e vindas que a historiografia dá), sempre houve um fundo cordialista, uma moderação em relação ao intolerável. Alguns dizem que isso evitou a ocorrência de uma ditadura mais cruel, no entanto, o fato é que esse traço cultural jamais evitou qualquer golpe nestes brasis de meu deus, muito embora atravanque a democracia brasileira -- que resta como uma promessa não cumprida.

Sim, o mais agudo caso de extremismo político brasileiro -- como a atual campanha para as eleições gerais insiste em nos provar -- não está à direita ou à esquerda, mas ao centro. Vivemos às voltas com o fantasma do extremismo de centro. E não estou falando do PMDB apenas. Há uma série de partidos que se colocam ali pelo meio, prontos a negociar com qualquer um -- e de qualquer forma -- além de outros que, embora programáticos, não se cansam de atrair o debate político, e as práticas, para cima do muro.

Nesse sentido, o discurso de Marina aparece polarizando contra a polaridade entre PSDB e PT, mas se apresenta, curiosamente, como uma não-polaridade: ele seria síntese já dada dos dois e, também, critério de seleção dos "melhores" dos "dois lados" que seriam chamados a governar -- pronto a desmobilizar a polaridade. Curiosamente, um dos grandes problemas da polaridade entre PT e PSDB é ela ter enfraquecido, se reduzindo ao centro e ao vazio dos grandes consensos. 

Pior ainda, que PT e PSDB, uma vez no poder, tenham perdido a noção do simbólico, tendo feito alianças dignas de dar um nó na cabeça de qualquer um. FHC se aliou com ACM (e também com Sarney!) porque, de fato, precisava, mas o fez de modo que terminou numa camisa-de-força; Lula, mais inteligente, soube tirar ganhos práticos de certas alianças, mas fez outras nas quais nada ganhou (nem poderia) e apenas desmobilizou seus próprios militantes e apoiadores, desconsiderando a potência do simbólico em produzir realidade (vide Maluf e Collor). Dilma lida pior com as alianças que herdou do que seu mestre e antecessor. Marina, por seu turno, quer internalizar esse aliancismo e não esconde isso.

Nos finalmente, é fato que nunca houve Fla x Flu na política brasileira contemporânea, no sentido de um antagonismo duro, inclusive porque a polaridade entre PT e PSDB. Seja porque o antagonismo do futebol, que é uma simulação da guerra, não é da mesma ordem de qualquer antagonismo político -- nem mesmo de uma simulação da guerra civil -- ou, também, porque não houve uma disputa política dessa monta. A lógica por trás da crítica do Fla x Flu, essa sim, leva, na prática, a um trajetória de esvaziamento pela eliminação da divergência e do dissenso. 

E a dissonância entre a premissa plebeia do "política não se discute" (ou o elitista "não façamos disso um Fla x Flu") e o "são todos farinha do mesmo saco" explica o mal-estar indeterminado (e imenso) sob o qual vivemos: e não é sobre "inconsciência" que isso se trata, mas da força gigante que cerceia (pela esperteza ou pela violência) a discussão, mas que não consegue apagar o desgosto com o resultado disso.

Embora limitada sob vários aspectos, a tese do peemedebismo de Marcos Nobre faz sentido: no fundo, há uma (des)articulação cordialista que embaralha a capacidade transformadora, ou de reles resposta às demandas usuais, da política brasileira. Eis o nosso problema. O insight de Nobre funciona porque ele denuncia a ausência de tensões (e, por que não, de paixões) como o nó górdio. 

Marina não pretende mandar o PMDB para a oposição, mas dividi-lo e conquista-lo -- trazendo para junto o PMDB que lhe interessa --, só que o fundamento de sua política é se colocar ao centro do centro e governar. Assim, a ideia de uma impossível coexistência entre transgênicos e não-transgênicos ou de uma "elite" como rótulo genérico para os "melhores" -- sem considerar as diferenças e antagonismos entre, vamos supor, seringueiros e banqueiros -- se tornam possíveis. O mesmo pode se dizer de independência do Banco Central e se defender sob a alegação de que o problema está em quem critica.

Dilma, durante os últimos quatro anos, buscou governar a economia pela técnica e, com a outra mão, trazer para o campo da média ponderada -- inclusive associada à ideia de "mídia técnica", na verdade, a mídia tradicional -- a discussão política sobre no campo dos direitos e liberdades individuais. Ela não ousou criar tendência, apenas contornar o que era difícil e se situar num ponto intermediário entre o desejado e o absurdo. Hoje, em campanha, descobriu que só isso não basta. E bastará menos ainda num eventual segundo mandato.

A ameaça de uma radicalização, como tomada de uma posição inequívoca e direta, é uma sombra que nos acompanha há tempos, mas ela não é real: é esse cordialismo de fundo que reduz e nivela o nosso maior problema. E não se trata de um problema moral ou transcendental, mas uma construção com fundo lastro material, estruturada primeiro como prudência prática diante das contingências das agruras da vida colonial e, depois, como armadilha do poder. O cordialismo nasce da necessidade de contornar o inconfrontável, mas se torna depois vício e até arte de governo flexível, inteligente e moderníssima mesmo enquanto arcaísmo. A opção pela democracia, ou melhor para o devir-comum da democracia, implica em mais e melhores polêmicas.





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