A campanha eleitoral municipal começou oficialmente há dois dias, ilustrando um dos maiores problemas brasileiros: a organização de seus municípios, a forma como a urbe é vivida, compartilhada e experimentada - e cidade brasileira que se preze como tal, admitamos, é uma zona interditada já na entrada, mas há quem queira desinterdita-la aí para transforma-la em arapuca; aprazível a uma primeira vista para capturar-nos na saída, como tantas cidades modelo pelo mundo. Ruim está, pior do que está, fica - às vezes até de maneiras mais perigosas do que hoje, quando tudo está bem na nossa frente, escancarado.
Sem civismos artificiais, as eleições municipais também possuem uma faceta importante, pois são as prefeituras que, no limite, executam as políticas públicas. Se um Prefeito manda extensivamente menos do que o Presidente ou os governadores, por outro lado, é ele, dentre todos os citados, quem detém o maior controle sobre uma territorialidade juridicamente qualificada e circunscrita, qual o seja, o município. O locus da política é a pólis, isto é, a cidade, no nosso caso, o município (o dispositivo jurídico mediante o qual a cidade se expressa no nosso meio e tempo).
Dentro de uma perspectiva que adote a luta social no contexto do espaço urbano, as relações éticas de habitação e resistência, como paradigma é possível escolher dois enfoques válidos: o primeiro deles é aquele que parte da análise das peças do jogo político - ainda que não se iluda com a aclamação eleitoral, mas que conceba os efeitos reais de seu exercício -, tendo em vista a gradual nacionalização dos pleitos municipais; o outro é o que olha a partir das demandas reais, de problemas que podem ser específicos de determinados lugares, mas que costumam ser fruto da lógica de administração universal.
Podemos e vamos usar os dois enfoques, conforme for, ao longo desta campanha. Primeiro, que sem entrar frontalmente no mérito do nosso sistema político - ou mesmo da nossa forma de pensar a política -, é fato que dentro de seu jeito de funcionar padrão, há um esgotamento programático como nunca antes visto. E se nunca se pensou tão pouco a cidade, nunca se nacionalizou tanto uma campanha municipal: os acordos e desacordos entre os partidos são pensados e pesados em uma lógica estritamente nacional.
Por isso, não se espante com a aliança entre PT e Maluf em São Paulo - ou o que levou José Serra a surgir como candidato tucano em São Paulo - , o apoio - agora público - do PT ao ex-tucano Eduardo Paes no Rio, ou desconfie do que realmente levou ao rompimento do PT com Aécio Neves em Belo Horizonte. É 2014 em curso, seja nos nomes envolvidos, e é a política federal em curso, como sugerem as chantagens dos "partidos da base".
Vamos nos ater sim a tais questões bem como outras, socioeconômicas, como as questões de moradia e políticas higienistas pró-remoções - do Pinheirinho à Vila Autódromo e pelo país adentro - não porque elas constituem o centro do problema, mas sim porque elas são como fios da meada: ajudam a entender o processo em curso e a transforma-lo, embora o novelo seja mais complexo. Por isso talvez assumamos a tarefa de dizer que tal ou qual candidatura possa ser considerada, enquanto outras não.
Não é pensar a cidade em termos de produção - enquanto ordenação de qualidades e quantidades -, mas sim de um devir pólis, uma experiência intensiva de visita ao habitat ele mesmo da política, da vida em coletivo, se esgueirando e deslizando pela captura e pelo controle - que fazem, por exemplo, a pólis restar reduzida a termo jurídico na forma de município, perfeitamente adestrada. Queremos uma cidade livre, onde possamos transitar como nômades sem rumo - e liberdade é caminho, alegre e potente, e não fim.