sexta-feira, 6 de julho de 2012

América Latina: Sai o Paraguai, entra a Venezuela, México muda.

O cenário latino-americano agita-se como há tempos não acontecia. O golpe branco no Paraguai, que derrubou Fernando Lugo da Presidência, produziu efeitos pesados - diretos e colaterais - sobre a ordem sul-americana, tanto pela suspensão do país da Unasul e do Mercosul - no caso último, por meio do mesmo protocolo cuja assinatura serviu de pretexto para os golpistas - quanto por isso ter aberto a possibilidade da Venezuela ter ingressado no bloco - o que se confirmou nesta semana, mas não tinha acontecido até hoje pela ação do parlamento paraguaio, cuja agenda, ocidentalista e pró-americana, bloqueava a entrada da República Bolivariana. Mais ao norte, o México viu a contagem e a recontagem dos votos de sua eleição presidencial, com a vitória do conservador Peña Neto do PRI, depois de doze anos de governo do liberal PAN.

A curiosa permuta entre Paraguai suspenso e a Venezuela, patrocinada sobretudo pelo Brasil, é mostra de insatisfação do Brasil contra os congressistas do vizinho, que depois de anos bloqueando movimentos de expansão do Mercosul - que é amarrado de forma bastante rígida, exigindo unanimidade entre os Estados-membro para muitas espécies de decisão -, agora resolveram partir para a ofensiva contra o processo de integração, destituindo Lugo de forma inconstitucional sobretudo pela sua atuação pró-Mercosul. Para Hugo Chávez, que é novamente candidato à Presidência da Venezuela depois de ter se recuperado de um câncer, trata-se de uma vitória importante, porque facilita mais ainda o acesso do país à produção alimentícia de Brasil e Argentina - tendo em vista, ainda, que a economia venezuelana é plenamente complementar a do Mercosul, além de ser uma das principais do continente.

A suspensão do Paraguai do Mercosul, inclusive, abre espaço para mais transformações no bloco, com a possibilidade de uma aproximação maior do bloco da China, coisa que também não aconteceu porque o país vizinho não reconhece a China Popular, mas sim apenas Taiwan, o que impedia negociações do bloco com Pequim. O ponto é que com uma suspensão de algo em torno de um ano do Paraguai, as movimentações em torno de uma aproximação com a China podem ter um ritmo frenético, o que pode aumentar certas diferenças que Brasil e Argentina possuem sobre como lidar com o gigante vermelho do ponto de vista do comércio internacional. 

No mais, os líderes golpistas paraguaios parecem estar dispostos a aumentar a tensão contra a Unasul e o Mercosul, o que pode tornar a suspensão do país em ambas as organizações - por unanimidade, diga-se - em um processo sem volta. O isolamento internacional do governo de facto é, por enquanto, enorme, e nem mesmo Washington o reconheceu - estranhamente ou não, os únicos países a legitimarem o golpe foram a Espanha, a Alemanha e o Vaticano; trata-se de um eixo pouco usual de ratificação a golpes, embora a Espanha, sempre que governada pela direita, tenda a apoiar golpes na América hispânica, mas quanto a Merkel, trata-se de uma decisão surpreendente e estranha (um desagravo ao Brasil?).

Fernando Lugo, por sua vez, resolveu ir para a ofensiva contra e agora entrou com recurso na suprema corte paraguaia contra o golpe, manobra que não deve surtir efeito em si, mas é necessária como meio para levar a questão à Corte Interamericana de Direitos Humanos - onde ele tem grandes chances de piorar mais ainda a situação dos golpistas.

O México, por sua vez, assistiu há quase uma semana o seu processo eleitoral. O país permanece distanciado do resto da América Latina e superdependente dos Estados Unidos e a eleição de Enrique Peña Neto (PRI) não há de mudar substancialmente isso, embora marque um corte importante, uma vez que rompe o ciclo de doze anos de reformismo liberal do PAN e um retorno à tradição da política mexicana. Foi a saída que os mexicanos produziram depois da falência do país por meio da aplicação da agenda do PAN, que não é incomum ao que, por exemplo, a direita brasileira propõe: resolução da questão das drogas ao estilo guerra às drogas, ultra-liberalização da economia e  aproximação visceral com os Estados Unidos.

Embora longe da Presidência há doze anos, o PRI dá as cartas no Congresso local há um bom tempo, possuiu larga maioria na Câmara dos Deputados e foi um importante bloco no Senado durante o governo Calderón (PAN), com uma atuação que passa pela sistemática manutenção do status quo mexicano - isto é, sempre resistente a reformas mais profundas no sistema mexicano, sejam mais à direita ou à esquerda, o que nada mais é a tônica com a qual o partido governou o México por sete décadas, exceto talvez pela guinada ultra-liberal que ele deu no final dos anos 80 no governo Salinas de Gortari, mas que depois reverteu, voltando apenas ao fisiologismo centrista habitual.


A campanha de Peña Neto, bancada por velhos oligarcas desalojados do poder, é um fenômeno de propaganda semelhante ao que elegeu Piñera no Chile, não só na forma como no possível desfecho: o novo presidente mexicano é uma figura fraca e torpe, cujo carisma pessoal dificilmente será suficiente para mudar o fato que é pouco preparado para as demandas que se impõem. Naturalmente, os problemas mexicanos atuais são muito mais graves do que de qualquer outro país importante da América Latina, o que torna tudo pior. 


Novamente, a exemplo de 2006 - quando uma enorme sombra de fraude pairou sobre o processo eleitoral e lhe prejudicou -, a esquerda mexicana obteve uma votação maciça, com López Obrador do PRD obtendo 31% dos votos contra 38% de Peña Neto (no México, não há segundo turno nas eleições majoritárias), mas mesmo a grande capacidade de mobilização e a potência do discurso de transformação não conseguiram furar a barreira eleitoral e suas armadilhas - isso mesmo levando em consideração, inclusive, o tamanho do movimento #YoSoy132, uma verdadeira primavera mexicana, que embora apartidário, confrontou abertamente a velha política mexicana e, talvez por isso, também a figura pessoal de Peña Neto.                                                                                   


Peña Neto começa esgotado sem ter largado, enquanto os movimentos de reivindicação ganham força, mas é preciso acirrar a estratégia e furar o fortíssimo bloqueio imposto por uma das mais resilientes oligarquias do continente.


Elas por elas, a crise mexicana não tem data para terminar, enquanto a aliança de governos de esquerda que fizeram a América do Sul optar pela outra via da bifurcação saiu fortalecida do episódio paraguaio, mas ainda há muita água para rolar e inúmeros problemas para resolver e outros tanto aumentando. A ver.




5 comentários:

  1. Hugo, diferentemente de quando discutimos o caso de Honduras, desta vez concordo contigo. É certo que o processo de deposição do presidente paraguaio ignorou completamente disposição do artigo 17 da Constituição daquele país que, naturalmente, assegura o contraditório e ampla defesa.
    Todavia, acredito que não foi formalmente correta a suspensão do Paraguai dos dois organismos internacionais, pois embora fosse o caso previsto pelo Protocolo de Ushuaia II de suspensão por ameaça à democracia, igualmente o mesmo pacto previa que se ouvisse o país que se pretenda suspender - o mesmo contraditório e ampla defesa que foram negados a Lugo. É lógico que se tratou, na prática, de um instrumento de pressão diplomática para mostrar a desaprovação do continente (tão abalado por autoritarismos) a qualquer tipo de ferimento das instituições (ou golpe, como queira chamar).
    Do mesmo modo, embora eu acredite que a entrada da Venezuela no bloco só tem a acrescentar em termos pragmaticamente econômicos (apesar dos desmandos e do pouco apreço de Chávez à imprensa livre, à oposição e à alternância de poder), não foi uma decisão oportuna.
    Não creio que seja o melhor procedimento a seguir decidir algo de tal importância (que exige unanimidade dos votos) num cenário de instabilidade e estado suspenso um dos membros do bloco.

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    1. Nunão, eu creio que processo de retirada de chefes de Estado, no plano jurídico, exige bem mais do que uma mera subsunção simples deste ou daquele dispositivo, mas sim uma conjugação sistemática de uma série de procedimentos - sejam tais chefes de Estado democraticamente eleitos ou não (como em monarquias parlamentares, nas quais, ainda assim, é possível destituir o Rei).

      No caso hondurenho houve cerceamento de defesa, sequestro e deportação ilegal do Presidente, por exemplo. No caso paraguaio, houve uma acusação inválida - pois sequer havia instrução probatória -, cerceamento de defesa e a ratificação em tempo recorde do processo na corte suprema local. Enfim, são casos muito parecidos, uma vez que a análise sistemática de ambas as constituições conduz à conclusão de que ambas as destituições foram golpes brancos - embora em Honduras tenha havido o uso de força em caráter complementar à movimentação institucional.

      Quanto a suspensão do Paraguai no Mercosul, ela foi acertada, uma vez que o golpe aconteceu na forma de objeção, direta e abertamente, à própria ordem do bloco. Não é que o Estado paraguaio não tenha tido tempo para se defender, mas sim que os líderes que se apossaram do poder via destituição - a nosso ver, inconstitucional, portanto, golpista - do Presidente Lugo, o fizeram mediante ataque à estrutura jurídica-internacional do Mercosul na figura do protocolo de Ushuaia II conforme narramos no nosso post inicial sobre o Paraguai. Não foram os países do bloco que tiveram pressa ou negaram nada, mas sim os golpistas - tanto que a decisão se deu por unanimidade, tanto no Mercosul quanto na Unasul (que conta com pelo menos dois governos conservadores, no Chile e na Colômbia, assim como o Chile também é signatário dos protocolos de Ushuaia).

      Sobre a Venezuela, trata-se de uma economia grande e de um dos países mais abertos, por força de sua atual Constituição, a programas de solidariedade internacional no mundo. São bons requisitos, somado à questão geográfica, para que ela seja aceita no bloco. É evidente que críticas podem ser feitas ao governo Chávez no plano ideológico e metodológico, mas não do ponto de vista jurídico formal: ele governa de forma constitucional - por meio de uma carta redigida e aprovada por uma Assembleia Constituinte eleita, sendo que a carta ainda foi referendada por meio de sufrágio universal -, foi eleito e reeleito democraticamente dentro das regras eleitorais da Venezuela. Isso, reitero, não o isenta de críticas, mas de uma objeção de princípio, no sentido platônico, sim. Do ponto de vista pragmático, inserir a Venezuela neste momento, acabou sendo um golpe de mestre contra a articulação do golpe paraguaio, que não só pertence ao Paraguai, mas se estende por toda uma cadeia reacionária que perpassa o continente (não com o apoio das direitas de Chile e Colômbia, mas com, pasmemos, a do Brasil como se vê pela retórica do PSDB, por exemplo).

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    2. No mais, é evidente que as reflexões que eu faço aqui estão para além de tudo isso. Por mais que o direito constitucional nos forneça mecanismos de organização prática relativamente bons, sempre haverá o problema da aplicação e da maneira como a exceção (como suspensão de direitos e garantias) pode se tornar regra pela força normativa dos fatos - isto é, a exceção está na regra, o que alude ao problema da decisão final, qual seja, o calcanhar de aquiles do Direito (não devia ser a sim, mas as coisas podem ser).

      Em outras palavras, o único mecanismo real de exercício efetivo da política não está, nem pode estar, no Poder, mas sim fora dele. Diante das arbitrariedades convalidáveis - feitas, por certo, por autoridades competentes - é só a multidão organizada e nas ruas que pode desfazer o feitiço, num processo que passa necessariamente pela atestação da ficcionalidade e insuficiência do Direito e do Estado para dar conta de si mesmo - e é aqui que mora minha crítica ao chavismo, não nos termos jurídicos e Estatais como se quer colocar indevidamente (quanto a crítica é ideológica), mas sim em termos filosóficos justamente por ratificar as linhas gerais dessa perspectiva que é, precisamente, o projeto moderno.

      abraços e apareça sempre por aqui

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  2. Concordo com vários pontos da sua argumentação. Não vou me ater a Honduras pois, confesso, não me interei completamente do caso como neste do Paraguai, e realmente o que lá houve foi uma experiência de deposição não institucional de um chefe de Estado - um golpe. Me resumi à falta de defesa, mas como você bem apontou a acusação não tinha provas e mais uma série de coisas. Foi bem mesmo o que você disse, usaram um rótulo institucional para mascarar o golpe.
    Sobre a Venezuela, o que sempre defendi foi que as críticas que se podem fazer ao governo Chávez (já apontei algumas inclusive) realmente não são justificativa para negar a entrada do país no bloco. Realmente, como você aponta, bem ou mal o governo de Chávez é constitucional e ele se submete a sucessivas eleições, referendos e plebiscitos aparentemente sem qualquer fraude, assim como não há notícia de graves violações de direitos humanos naquele país ou algo do gênero. Não há por que negar inúmeras oportunidades de integração pelas críticas que se pode fazer contra o governo Chávez, por isto sempre apoiei a decisão de nosso legislativo em aceitar a entrada da Venezuela no Mercosul. É importante fortalecer esse nosso bloco regional.
    Ainda assim, não creio que fosse oportuno aproveitar a suspensão de um membro, um cenário de instabilidade para dar entrada à Venezuela no Mercosul. Pareceu uma admissão precária, como se fosse tudo planejado para alijar o Paraguai da decisão aproveitando o golpe daquele país.
    Por fim, me chamou muita atenção uma das coisas que você fala no final do seu comentário. Realmente o golpe paraguaio foi convalidado pela sua Corte Suprema. Penso que se o mesmo acontecesse por aqui, a quem recorreríamos da instância máxima? A cortes internacionais que o nosso Supremo ignora? O povo nas ruas teria força para rever isso?
    Realmente, parece certo a ficcionalidade e insuficiência do direito como você diz. Penso que temos uma ordem jurídica que pode ser torcida pelas intenções de poder cujo único limite parece ser também o uso de força negando completamente as convenções já feitas.

    Sempre acho aqui uma boa leitura e que invariavelmente me põe a pensar, pode ter certeza que apareço sempre, um abraço!

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    1. No que toca especificamente à inclusão da Venezuela, Nunão, a posição do Paraguai, embora seja a menor economia do bloco, sempre foi respeitada - isto é, jamais colocaram os ganhos econômicos e estratégicos da admissão de Caracas à frente do que estava já estava construído no bloco. No entanto, a manobra dos golpistas foi retaliada, quer dizer, a paciência dos grandes do bloco com a imaturidade institucional do vizinho chegou ao limite e a admissão venezuelana, bloqueada por motivos meramente ideológicos, aconteceu como resposta - inclusive porque o golpe paraguaio, apesar de nacional, está em consonância com um movimento continental contra a integração (e, não coincidentemente, contra a democracia). Foi uma manobra dura, sem dúvida, mas acho que foi bem-vinda. Se o golpe agredia, de cara, o processo de integração, o ato dos golpistas teve um custo porque o tiro saiu pela culatra e a integração avançou com eles isolados internacionalmente.

      Sobre questões jurídicas mais profundas, a inquietação em relação à decisão final é central. A única forma de controle disso está nas ruas e não nos palácios, mas isso requer organização, muita organização.

      abraços

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