domingo, 19 de agosto de 2012

Assange no Equador: O Norte da Democracia Global é o Sul



Há poucos dias, Julian Assange, o criador de Wikileaks, voltou ao foco da mídia global em um episódio chocante, no qual a polícia britânica o tentou capturar com o fim de  extraditá-lo para a Suécia, onde responde a um processo duvidoso e viciado por questões políticas. Chegou-se ao extremo de uma tentativa de invasão da embaixada equatoriana em Londres, onde ele se refugiou por sua proximidade política com o governo Correa - agravado pelo fato de que a missão diplomática equatoriana chegou a ser pressionada para entregá-lo. Em um gesto corajoso, ele não só não foi entregue à polícia, como também recebeu asilo no pequeno Equador, apesar de ter potências como EUA e Reino Unido em seu encalço. O conselho de chanceleres da União Sul-Americana (Unasul), inclusive, ratificou seu apoio à decisão equatoriana.

Assange tornou-se o ícone da nossa época, quase um Che Guevara da pós-modernidade ao revelar ao Mundo em 2010, por meio do seu Wikileaks, o vazamento de telegramas diplomáticos dos EUA em todo o mundo, que comprovaram velhas teses, desmascaram certas figuras e, sobretudo, colocaram Washington em xeque. Depois disso, o fato de Assange passar a ser perseguido mundialmente pelos EUA eram favas contadas - e não tardou a surgir um misterioso processo por estupro contra ele na Suécia, cuja procuradoria passou a exigir paranoicamente sua extradição da Inglaterra para lá, embora ele não tivesse sido condenado e pudesse depor tranquilamente de Londres. 

O grande problema de tudo isso, é que o Estado sueco não deu garantias, em momento algum, de que Assange não sofreria uma segunda extradição, desta vez para os EUA, onde o establishment local já preparava algum julgamento farsesco, à moda do que eles realizam a todo tempo em Guantánamo. O ponto é que a legislação sueca de crimes sexuais é profundamente vaga além do fato de pesar contra Assange uma acusação pouquíssimo clara e com um conjunto de provas confuso. Nada que não pudesse ser esclarecido sem demandar sua extradição imediata, ainda mais considerando que isso aconteceu no calor do momento em que as revelações de Wikileaks abalava o mundo. 

Pior ainda, as movimentações políticas americanas contra Assange só provam mais ainda a natureza do material divulgado e constituem, como pontua Mark Weisbrot, em uma violação clara a tudo que o país de Tio Sam reivindica ser desde o pós-Guerra: o criador de Wikileaks não cometeu crime algum, ele apenas divulgou dados vazados, a exemplo de inúmeros jornais pelo mundo que repercutiram, inclusive mediante acordos direitos com o próprio site. Se alguém cometeu crime, foi quem divulgou dados sigilosos, embora, evidentemente, não se trata de uma questão penal estrita; se o ordenamento jurídico americano entende a revelação desses dados como "crime", o faz como qualquer poder soberano: ele tipifica penalmente a conduta que lhe interessa e, assim, ele torna passível de punição a revelação do seu modo de operar, invasivo e conspiratório, pelo mundo.

As revelações de Wikileaks não são pouca coisa. Se boa parte dos principais pensadores contemporâneos gastaram páginas e páginas dissertando sobre a guinada bélica americana após o atentado de 11 de Setembro de 2001 - e, depois, sobre uma crise econômica dentro da qual não surgiu qualquer alternativa prática radical - foi pelo singelo motivo que nada era capaz de disparar o novo: depois de Assange e sua ousada ofensiva, deflagrou-se, p.ex., movimentos como aquele que conduziu à Revolução dos Jamins na Tunísia - tributário direto dos dados de Wikileaks do funcionamento da ditadura de Ben Ali -, todo o processo da Primavera Árabe e, depois, dos occupy, todos modos de insurgência libertários, inseridos dentro da racionalidade das redes - sendo que até ali, o grande levante contra os EUA e a ordem imperial veio por parte do resmungo reacionário do al-quaedismo e de Bin Laden. 

O abraço que Assange recebe do governo de Rafael Correa, o jovem presidente equatoriano eleito na esteira do vento democratizante produzido na resistência ao privatismo latino-americano, é um símbolo curioso: é a união do maior ícone rebelde do nosso tempo com o que há de virtuoso em termos de movimento político e (des)apropriação do Estado pelo mundo. Um bom encontro alentador neste 2012 que se afigura como um anti-2011, pela envergadura da reação às explosões multitudinárias vistas ano passado. A postura reacionária de EUA, do Reino Unido e, surpreendentemente, da pacata Suécia assusta. Hoje, mais do que nunca, o Norte da democracia global é o Sul. 


6 comentários:

  1. Cara, devagar com o andor. É bom que alguém proteja o Assange, tudo isso cheira muito mal mesmo, mas daí a o Correa virar um herói da liberdade de expressao, ignorando-se tudo o que ele faz no próprio país, vai uma bela distancia.

    Sobre o Wikileaks em si, sei lá. Vale mais pelo golpe midiático do que pela informacao em si. Ou alguém achava que as embaixadas americanas (ou russas, francesas, ou iranianas) cuidavam de corte e costura? O apoio dos EUA a esses regimes, como a ditadura brasileira, era sabido por qualquer pessoa minimamente informada. O Philippe Sands escreveu o ótimo The Torture Team, descrevendo as entranhas do mecanismo que levou a Guantánamo, sem recorrer a nenhum desses documentos, só com documentos oficiais e entrevistas.

    As vezes essa histeria com a informacao "secreta" parece jornal brasileiro, que nao quer uma informacao objetiva mas sim estampar na capa algo com um "diz Dilma" ou "diz Dirceu" no fim. Outro dia o Estadao tava acusando o Dirceu de ter sido Ministro da Casa Civil e, acredite!, feito articulacao política *durante*, veja voce, seu tempo como Ministro. Um acinte! Um tapa na cara da sociedade brasileira!

    As vezes o Wikileaks é isso: acusar os Estados Unidos, esses malditos!, de ter uma política externa, trocar telegramas, fazer pressao, defender interesses americanos, até fechar os olhos pra violacoes de direitos humanos. Quando qualquer manual razoável de política externa já traz tudo isso. Enfim, nao que nao mereca crítica, mas esse olhar falsamente indignado cabe melhor a grande mídia do que a um blog de um cara inteligente como voce.

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    1. O andor aqui é rápido mesmo, Carlito: Uma coisa são hipóteses, conjecturas, outras são provas e é isso que o Wikileaks trouxe, sobre tudo não época na qual a própria lei do valor está subvertida e a revelação de dados ganha outra conotação (tanto em termos de potencialização real dos movimentos pelo mundo quando na estruturação simbólica de um novo modo de luta, hackerismo político de primeira linha e verdadeiramente ofensivo). E não adianta pôr isso na conta de um anti-americanismo qualquer: Wikileaks mostra que o rei está nu de vez e isso precisa ser atacado, fazer uma crítica que vai do "todos já sabiam", "todos fazem isso" ou "esse indignismo anti-americano" é um pouco raso além de contraditório entre si - e diferente de acusar Dirceu de articular quando ele estava numa função juridicamente designada como de articulador. Também não adianta diminuir a posição de Correa nisso tudo, e cabe fazer a pergunta inversa: depois de um ato por conta do qual ele não ganhava absolutamente nada diretamente, ao contrário, por que ele seria o inimigo da liberdade que muitos querem fazê-lo parecer?

      abraços

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  2. Complicado isso ae, hein.
    Acredito que seu texto falha em 2 pontos:
    1 - Exagera, tipo muito, nos efeitos dos vazamentos feitos pelo Wikileaks. Há de colocá-los no seu devido contexto. A Primavera árabe e o Occupy podem até ter algum débito com o Wikileaks, mas sem um olhar mais aproximado do desses processos se descamba para uma visão ingenua da coisa: eles souberam o que acontecia daí agiram. Como se a questão tivesse sido saber somente.
    2 - Mais importante, o otimismo do "norte da democracia é o sul". Se de fato formos o norte da democracia... HOUSTON, WE HAVE A PROBLEM. Por que aqui temos:
    - México - e seus processos democráticos muito, muito suspeitos;
    - Venezuela - e o personalismo de Chavez;
    - Brasil - e a democracia do gerente;
    - Paraguai -
    - Equador - Correa desrespeitando a recente constituição do país;
    - Peru - estados de sítio constantes para se lidar com greve de mineiros.
    Resumindo, apesar de não sermos mais uma região marcadamente ditatorial, não há nada de novo abaixo do Equador.

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    1. Anônimo,

      1. Digamos que seja uma questão mais de gratidão do que de dívida, não foi no campo das obrigações - isto é, da obra e da produção - que Wikileaks ajudou a disparar todo esse levante multitudinário, mas sim fora dele: é de devir-revolução que eu falo, do contrário, Assange poderia exigir o seu direito de gerador, o que não é o caso, não há vínculo de jure algum como nexo entre uma coisa e outra.

      2. Yes, Houston has a problem, mas não Quito, por si só. Eu defendo o governo Correa por seus aspectos de antigoverno, da maneira como ele ajudou a promover a inclusão de um sem número de pessoas e, também, por ter sido a primeira força política a considerar a figura do índio no contexto nacional equatoriano. Não adianta nivelar isso no mesmo patamar do México - dilapidado por ter assumido na íntegra a agenda direitista pró-americana -,os problemas históricos do Paraguai - hoje solapado por uma tirania branca-, a questão do desenvolvimentismo dentro do processo de andamento de um governo plebeu no Brasil, a implicância que parece surgir do nada e maximiza os defeitos do chavismo - que eu já critiquei suficientemente por aqui, basta pesquisar por "Venezuela" no cursor ou na nuvem - ou a herança conservadora e os entraves do nacionalismo de Humala. Até porque, os dois primeiros processos estão inseridos dentro das ofensivas americanas na América do Sul, enquanto os três últimos tratam-se das ambiguidades de processos libertadores e empoderadores da massa plebeia dos países citados: basta ver, p.ex., a evolução dos indicadores sociais do México - ou mesmo do Paraguai, onde o governo Lugo antes de ser solapado, estava paralisado pela mesma oligarquia que o derrubou e que controla o país desde seu surgimento - e os de Brasil, Venezuela e Equador - a experiência peruana ainda é recente e ambígua. No mais, ditadura mesmo só existe uma agora no Paraguai, por mais que se questione os líderes mexicanos. E mesmo que se faça referência à exceção...bem...regra e exceção são contíguas, a questão é para onde se volta o estado de exceção em questão (eles não são a mesma coisa...): e há sim um monte de coisas abaixo do Equador, as massas que passaram a comer nos últimos anos mandam lembrança.

      abraços

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    2. o mesmo anônimo lá de cima.
      Observar que para continuar a defesa da, vamos dizer, democracia sulista foi necessário alargar o escopo da discussão; não mais tratando de democracia apenas - no que eu mantenho meu post anterior -, mas adicionar ao assunto os aspectos socio-econômicos dos governos "sulistas" - no que, de forma geral,mas não tão otimisticamente, concordo contigo.
      Dito isso, fica claro que não é a democracia daqui que se diferencia da de lá, mas é uma experiência socio-ecônomica específica cheia de questões.
      Ou, eu me enganei, e por "democracia" vocês quis falar dessa experiência sulista. (No que: desconsiderar minhas palavras nesse sentido.)
      PS.: Sobre Correa, as acusações que citei são relacionadoas ao trato com as populações indígenas no Equador. uma explanação melhor elaborada aqui: http://www.latitudesul.org/2012/08/07/esquerda-contra-rafael-correa/

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    3. Uma pequena observação sobre o último comentário anônimo. É difícil tratar a democracia separada de seus resultados sócio-econômicos, em especial os distributivistas. Até porque, sabemos que as desigualdades tiveram origem em sistemas e processos opressores que a democracia surgiu para combater, e sabemos também que a desigualdade corrompe o princípio democrático. Uma democracia que produza governos sem nenhum comprometimento com as graves questões sócio-econômicas não é digna desse nome.

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