quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

O Crack, A Metrópole, O Deixar Morrer

Pino Daeni -- Desalento
Internação compulsória de viciados em crack -- que começa no Rio e é copiada em São Paulo -- está na ordem do dia. Questão delicadíssima por sinal. Trata-se de algo que está no cerne da nossa sociedade, no âmago do funcionamento de nossas metrópoles. Uma ferida tão exposta que resta ocultada a cada esquina. É sobre invisibilidade e invisibilização que estamos falando, vontade de morrer, mas também um jogo de omissões bem pontuadas, afinal.

Deixar fazer, deixar passar e deixar ir, eis o singelo lema que iria animar o movimento liberal até hoje. Mas há uma outra parte deste dizer, talvez a mais importante dele, que resta oculta: deixar morrer. O liberalismo de verdade não mata, deixa morrer -- e se você morreu, é responsabilidade sua por ter morrido na contramão atrapalhando o tráfego. 

Os crackeiros carregam um pouco disso: pobres diabos famintos que perambulam pelas ruas, largados à própria sorte, consumindo uma substância que lhes dá, por um instante, um prazer que nunca sentiram (nem sentirão) em uma vida inteira de desgraças. Hoje, eles são protagonistas deste interessante debate, mas sua existência secreta e, ao mesmo tempo, óbvia é chave. 

Pois bem, o vício do crack é algo relativamente novo no Brasil, uma processo que se instalou entre as classes mais precarizadas das áreas urbanas, sobretudo dos anos 90 para cá. O crackeiro, em metrópoles como São Paulo, não é, ou era, alguém simplesmente sem valor, ao contrário, via de regra ele cumpre uma função importante junto à especulação imobiliária: são largados em áreas cujo interesse momentâneo do "mercado imobiliário" é deixar prédios inteiros vazios, a espera de preços melhores. 

A existência do crackeiro é permitida tacitamente pelas forças policiais, o que torna tais áreas inabitáveis, as tirando dos olhos da boa sociedade até (e se) os interesses mudarem, fato do qual resulta a sua retirada -- manu militari se for preciso, como aconteceu na São Paulo de Kassab; o capitalismo não trabalha a partir diretriz de produção para o consumo real, mas sim de produção para consumo em abstrato e com a negociação de expectativas, o que resulta em excedentes vazios ou inutilizados.  

O crack também se trata de uma boa medida, no sentido perverso da gestão da vida, para se livrar de um contingente populacional -- eliminando mesmo ou reduzindo sua durabilidade --, caso ele se torne incômodo. Sua disseminação é deixada solta por aí e populações inteiras morrem, são deixadas para morrer. Evidentemente, o crack não é causa, mas consequência, antes dele há toda a miséria afetiva, econômica e social por detrás das camadas mais pobres da metrópole.

A atual política de internar compulsoriamente viciados em crack -- o que corresponde a maioria dos usuários -- é a típica políticas de bondade que esconde muita coisa. Que nos explica como um sistema supostamente calcado na permissividade precisa, para responder às suas demandas, se contradizer. Ninguém deseja curar o crackeiro, é preciso apenas tira-lo da vista, higienizar as ruas e tocar as coisas nos termos necessários. Ninguém, sejamos francos, está preocupado em curar as chagas sociais que causam isso.

O crackeiro é conduzido a uma cura impossível -- uma vez que a dificílima cura para seu vício depende da vontade do viciado. Ele está deixado para morrer longe dos nossos olhos.  E passa a adquirir nova importância econômica, como objeto internável, coisa que certamente não é gratuita e envolve uma economia médica -- afinal de contas, alguém há de ganhar com isso. Argumentar pela  resolução das causas é prontamente desqualificado em nosso meio. E até lá, o que faremos? Dirão alguns. No entanto, a questão verdadeira é: e como as coisas conseguiram chegar até aqui?

Destruição e criação (de um ser humano, inclusive), embora frequentemente pareados na forma de um binarismo, são elementos de natureza diversa: é muito, muito, mais fácil destruir setores inteiros a ponto deles consumirem crack a fazer o contrário. Os confinamentos de viciados estão para a cura desse vício como as sangrias medievais estão para a cura de qualquer mal. A cura para tanto é psicológica mas é social, sem a última, a hemorragia não terá fim.

Atualização das 16:50: segue aqui um belo texto de Lucas Portela sobre a presente questão e a política de confinamento em geral.

7 comentários:

  1. e seria bom comentar hugo, completando o raciocínio perfeito sobre a "sujeira" urbana como necessária para a queda dos preços de regiões inteiras para que o mercado imobiliário possa realizar a especulação necessária. compram os terrenos e os prédios, negociam a portas fechadas com o estado políticas de "revitalização", que na verdade, são todas, sem exceção, políticas de gentrificação, e quando tudo está pronto? retiram provisoriamente a "sujeira" para que a área se valorize.

    quem ganha com isto? o estado e o mercado imobiliário. o estado tem suas campanhas financiadas pelas construtoras... (é só ver o exemplo da maior financiadora de campanha do país ANDRADE GUTIERREZ que vem se beneficiando dos investimentos públicos em diversas áreas em todo país) e tb as construtoras e empreiteiras (e o mercado imobiliário) pq se beneficiam das ações do estado que investe pesado na área com transporte, iluminação, jardinzinhos, museus, óperas, teatros.

    (obs: arquitetos e urbanistas e ambientalistas e o setor cultural entram na reta da frente com seus discursos alienados defendendo uma cidade mais linda, mais criativa, mais limpa, mais organizada e mais cheia de riachos e centros culturais)

    o jogo é perverso do começo ao fim e é preciso ficar bem de olho aí em sp. o pt engavetou o projeto de operação urbana da nova luz, mas autorizou a retirada dos crackeiros da área...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Exato, natacha. A questão é menos que vivemos em um sistema que reduz a multidão em um conjunto de corpos matáveis, mas que antes de tudo faz disso uma economia. E tudo se aproveita na era da subsunção real, como nos lembra Negri, embora mesmo antes a máquina capitalista já fosse capaz de realizar esse tipo de síntese improvável -- a exemplo do belo post do Lucas Portela, linkado aí em cima, que dialoga com o meu post sobre privatização de prisões e já toca na questão da internação compulsória.

      E, naturalmente, o governo Haddad não admitiria um Nova Luz como o de Kassab, que era tanto mais uma obra de ficção que é forçoso crer que fosse uma plano real, mas talvez um ardil voltado a gerar expectativas e tendências de mercado. Haddad irá partir, como todo governo Lulista, para uma costura limite com o capital contra ele mesmo, o que é parte desse jogo louco do Lulismo que, no entanto, foi a única coisa na história deste país a ter gerado bolhas de oxigênio ou linhas de fuga ao funcionamento estatal-modernista -- pelo menos até a página 2. Conseguirá ter êxito Haddad, apreenderá a complexidade da situação? É difícil dizer. Mas o começo já está sendo bom.

      abração

      Excluir
  2. http://pedranocaminho.blogspot.com.br/2012/11/a-crackonha-tramoia-e-farsa.html

    ResponderExcluir
  3. O uso do termo "crackeiro" revela muita coisa, sobretudo, afinidades pontuais com valores, ideias, ideiais e praticas que o autor crítica. De fato, "pobres diabos" em busca de um "prazer".... Após anos de uso, estudos, pequisas e trabalho social, espanta-me tanto esclarecimento e objetividade sobre o que são os dependentes químicos usuários de crack para uma pretensa elite ilustrada - a esquerda e a direita! Nenhuma novidade: a esquerda indolente a reboque das consequencias e a nos explicar as causas e a boa burguesia profilatica da direita - autoritária - a excluir os efeitos colaterais do capital - por meio da internação, encarceramento e exterminio.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Não, Mario não confunda denotação com conotação para, de um interpretativismo de superfície, querer (re)descobrir a roda para dizer que eu não conclui o que, de fato, conclui -- e do que você não discorda, afinal. No tema em questão, apreender as nuances complexas do assunto não passa por se colocar além e acima da direita e da esquerda: é pensar a economia dos corpos -- e a economia dos corpos como microssistema da economia financeira --, os fetiches modernistas de uma esquerda que é esquerda, mas não devém esquerda (e por isso o é de modo fraco), da direita e tudo mais; mas uma coisa é certa: internação compulsória é o tipo da coisa que surge quando algum projeto de esquerda deu errado -- ou um de direita deu certo.

      Excluir
  4. A gente ouve tantos berrando pela internação compulsória que até parece que há locais para tratamento, redução de danos e internação voluntária em abundância, muito bem equipados e "desprezados" pelos dependentes de drogas. Não se consegue esconder que o verdadeiro objetivo é varrer "essa gente" pra debaixo do tapete ou pra um lugar bem longe onde sejam invisíveis. Resolver o problema? Aí ninguém quer, porque envolver tratar a questão com a abordagem da saúde pública e fazer isso é "ser frouxo" com o tráfico (lógica não é o forte em quem usa esse tipo de argumento).

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Pois é, mestre Patrick. O modo de retratar o crackeiro é, voltando ao que Lucas propôs, do endemoniado, do doente ou do criminoso, quando não os três ao mesmo tempo. Então, ele se torna causa de problemas (e não efeito ou, no máximo, catalisador, coisa que de fato ele pode ser) -- e causa não por seus atos, mas por sua própria condição de existência. A partir daí, não existe solução possível, exceto uma solução final ou o (pseudo) cinismo hipocondríaco do "é para o bem deles".

      abraços

      Excluir