"O medo é de que isso nunca fosse parar. Se davam férias remuneradas aos operários, todos os privilégios burgueses estavam ameaçados. Os locais frequentados eram como questões de território. Se as empregadas vinham para as praias de Deauville era como se, de repente, voltássemos à era dos dinossauros. Era uma agressão. Pior do que os alemães. Pior do que os tanques alemães chegando na praia! Você entende? Era indescritível!"
(
Gilles Deleuze, in o
Abecedário, entrevista-documentário dada a
Claire Parnet).
O cenário de 2014 se desenha. O debate eleitoral já foi adiantado, embora não traga nada de, substancialmente, novo em relação a 2010. O mundo se agita: a Coreia do Norte balança a Ásia, Thatcher morreu depois de uma longa demência -- deixando reminiscências sobre o que o globo tornou-se. Aqui, o grande debate é qualquer coisa relacionada aos direitos civis, alguns avanços de lado, muita demagogia de outro -- o que dá mais votos, o setor da nossa sociedade que quer ser mais livre ou que quer que os outros sejam menos livres? Passado isso, temos a questão das domésticas, que ganharam, como já não era sem tempo, direitos trabalhistas semelhantes aos dos demais trabalhadores empregados.
Empregadas domésticas eram uma espécie em extinção. Sua função, uma versão moderna das escravas de dentro-de-casa, as mucamas, resistiram ao tempo e são uma expressão de como o capitalismo articula formas pré-capitalistas na sua atualidade. As melhoras sociais dos últimos anos, no entanto, produziram efeitos interessantes: a proporção de empregadas domésticas caiu fortemente, enquanto seus salários se elevaram em 86% entre 2006 e 2011. A queda aguda do desemprego, a recusa ao trabalho mais pesado e as novas condições da distribuição do trabalho no Brasil produziram não só uma onda de evasão do trabalho doméstico como uma tendência de alta nos ganhos -- pela expectativa de redução drástica na oferta dessa "mão-de-obra".
Uma medida como equiparar os direitos das domésticas aos demais empregados, olhado sob certo aspecto, não deixa de ser conservadora -- daí a apologia à medida por parte de figuras como Elio Gaspari e Delfim Netto --, uma vez que não deixa de garantir, no futuro, condições mais favoráveis para atrair, ou manter, mão-de-obra no setor. Acabar com o trabalho doméstico no Brasil de hoje seria apenas o caso de manter, inercialmente, os ganhos laborais gerais em alta, sem dar vantagens às domésticas, pois, assim, elas continuariam a deixar a profissão. Como sabemos, um direito trabalhista é uma complexidade pura: ao passo que tem uma natureza estabilizadora da ordem, pois oferece um quinhão maior aos trabalhadores para que mude tudo para nada mudar, por outro, os potencializa, permitindo que eles sejam capazes de exceder sua condição vil.
Os adeptos de um capitalismo científico -- mezzo-keynesiano, mezzo-positivista -- como Delfim acalentam, quem sabe, a possibilidade um capitalismo sem burguesia, administrado tecnicamente, com trabalhadores profissionais e sem arcaísmos. Não raro, eles se colocam em rota de colisão com os liberais por esse motivo. Como aqui.
Trata-se, também e sobretudo, de um tema incômodo que atinge em cheio o funcionamento da nossa sociedade. Pega tanto a herança dos tempos da escravidão, atravessa a questão de gênero e, de quebra, atinge o eixo dos discursos que dividem a nossa sociedade: tudo vira uma disputa entre "beneficiários" e "financiadores de benefícios", um discurso ao estilo dividir para conquistar a "classe média", tão não-proprietária quantos os trabalhadores e pobres, mas que precisa ser oposta a todos eles. Como se os tributos fabulosos pagos aos montes pela classe média fossem destinados a programas sociais -- e como sem os já existentes a situação não fosse pior. Mas esses setores médios, cujo estatuto social está em xeque, ficam ainda mais vulnerados.
Não à toa, mal aprovada a medida em questão -- por unanimidade, no Senado -- e a oposição liderada pelo PSDB já propôs a retirada do direitos, recém-conquistados, das domésticas. A empregada doméstica, uma herança própria à realidade colonial, patriarcal e escravocrata fundante do Brasil. Novamente, o argumento que vem à tona é o do risco de demissão em massa, não muito diferente daquele usado quando do fim da escravidão: o que será dos negros? Assim como uma série de questões que criam paralelos interessantes entre a abolição da escravatura e a laborização das domésticas como observa o professor Souto Maior.
A presença de uma empregada doméstica é algo de bastante profundo no ocidente. Como observa Agamben, os gregos reservavam a Casa, oikia, para a sua existência biológica, isto é, para as relações de produção, reprodução e autoprodução, onde um chefe de família, um despotes, era soberano diante de sua mulher, seus filhos e escravos; a cidade, a pólis, era o local de encontro desse despotes desinvestido de seu mando, no papel de cidadão, politikón, igual aos demais e cioso de alianças e acordos, o que abria espaço para a vida subjetiva, artística. Daí "economia", produzia-se em Casa: vivia-se de fato no ambiente doméstico e de direito fora dela, na praça pública.
O que complica essa coisa é quando a produção sai da Casa e se espraia. Aí, morre a mera possibilidade da antiga economia e entra em cena a economia política. Foucault acerta mais do que Agamben ao falar de uma biopolítica apenas na modernidade, haja vista que só na modernidade a produção deixa de ser doméstica, desconfinando a vida em seu aspecto animal. A economia, que era por natureza doméstica, torna-se da, na e pela cidade, feita muitas vezes sob um teto privado, mas não mais em torno da família ou da Casa.
A economia política é, portanto, uma tensão extrema: de um lado a produção põe-se sob um processo de humanização, do outro, a vida política é animalizada. De toda sorte, a produção deixa a dimensão da filiação e toma outro caráter. A produção torna-se humana, o que demanda uma política que invista sobre as formas de vida (uma biopolítica). O que é um processo curioso e (aparentemente) contraditório em termos, mas cujo mistério se desfaz quando lembramos, graças a Marx, que o homem, em sua autofundação, na verdade não cria o homem, nem a cultura, mas o animal e a natureza. A saída da produção da Casa para a Cidade é o seu fluir ontológico, a retenção e confinamento, estes sim, eram antinaturais.
O dizer de quem a doméstica era quase de família, e que sua condição é irredutível a de trabalhadora, é menos do que uma constatação de sua atividade, mantendo as atividades do lar, e mais da relação mantida entre a família e a doméstica, conforme amparado até bem pouco pela Constituição. Uma confusão entre vida biologicamente considerada e trabalho, algo que só poderia ser concebido em um arcaísmo pré-capitalista: mas como a família não é mais unidade de produção, a sustentação material da empregada se mantinha nos ganhos oriundos da relação capitalista na qual os membros da família se inseriam.
A situação era pré-capitalista no capitalismo. Ao mesmo tempo que é impossível uma sociedade livre ter gente que faça os trabalhos domésticos para os outros -- e quem faz os trabalhos domésticos de mesmo quem é pago para fazer para outrem? A insustentável leveza da semi-servidão, na falta de possibilidade de uma servidão perfeita, tornaram a situação anterior insustentável. Os efeitos antropológicos disso repercutirão no pleito do ano que vem, sem dúvida alguma.