sábado, 20 de abril de 2013

A Explosão da Violência em SP e o Mito da Maioridade Penal

Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas...

(Rosa de Hiroshima, Vinícius)

Na esteira de sua infindável crise de segurança pública, o estado de São Paulo viu-se nos últimos dias diante do debate de leis punitivas mais duras, sobretudo contra menores. O estopim foi  um latrocínio chocante: um jovem de 19 anos foi morto a sangue frio na entrada do prédio em que morava durante um assalto. Ele sequer reagiu. O responsável pelo crime é um menor de idade. O episódio foi o arremate terrível dessa nossa grande tragédia cotidiana. Mas há mais em torno disso tudo do que parece.

O governador Geraldo Alckmin, pressionado, respondeu dizendo ser favorável à redução da maioridade penal e, assim, recebeu amplo destaque na grande mídia: é tudo culpa da lei em abstrato, como se mudanças jurídicas, por elas mesmas, operassem transformações reais. Agora, ele recua, ameniza o posicionamento, mas foi ao Congresso propondo mais dureza contra menores infratores. A falta de políticas públicas, no entanto, não encontra espaço no mesmo noticiário.

Quando o ministro da justiça José Eduardo Cardozo fez referência à inconstitucionalidade da proposta de redução da maioridade penal, a mídia corporativa apresentou a declaração como se fosse opção política. Não é. A redução da maioridade penal é inconstitucional mesmo. O que Alckmin propôs é falso. Tanto que teve de voltar atrás. 

Mesmo um conservador como Michel Temer é capaz de imaginar a falácia por trás disso tudo:"Li hoje um argumento para reduzir a maioridade para 16 anos, mas, e daí, se o sujeito tem 15 anos e meio, e comete um crime, vamos reduzir para 15 anos? Não sei se é por aí a solução"


E nem ao menos em abstrato é válido: se a questão é punir, hoje, jovens condenados a "sanções sócio-educativas" recebem, na prática, um suplício tão ou mais pesado do que maiores de idade enviados para prisões convencionais -- quando sua internação deveria voltar-se para a reeducação e reinserção sociais. Ambas, no entanto, são pura punição. E não tornam nossa sociedade menos cruel.

Isto é, a proposta do governador é impossível de ser cumprida juridicamente e falaciosa materialmente: não é por falta de punição que jovens cometem infrações. E mesmo que fosse, ainda, ele teria de investir em uma estrutura de servidores para a área, coisa que a rigor não existe em área alguma do serviço público paulista. Recebe-se mal e as carreiras vão pior em toda parte da administração pública estadual. Para além de planos e projetos ruins, por certo, ainda faltaria quem os executasse.  

O fato é que a violência simplesmente explodiu no estado desde o ano passado. Mês a mês, a quantidade de crimes de todas as naturezas tem aumentado. O sucesso da política de paz armada foi posto em xeque. Essa política é o resultado da articulação entre uso massivo da polícia militar, ministério público inquisitorial, judiciário inclemente e sistema prisional infernal -- e relações obscuras e "pragmáticas" com organizações criminosas que mantêm domínio territorial nas áreas mais pobres do estado. 

Há uma dura e cruel ironia nisso tudo, para além do crime que motivou toda essa conversa: em nossa sociedade, jovens, sobretudo negros e pobres, são o grupo mais expostos à violência homicida. É o grupo mais vulnerável em termos de homicídios. E sofrem violência social e de Estado. São mortos em ações clandestinas ou mesmo oficiais. E, na contramão disso, não são os jovens a cometerem a maior parte dos crimes.

O corpo infantil do jovem é para onde é investido essa violência. Como sempre foi, sobretudo desde a Revolução Industrial. Há algo de perverso nisso.

Existe um contrassenso aí também a respeito das vitimas e autores. Independentemente da enorme carga trágica do crime em questão. Não se costuma pedir punições duras contra jovens ricos acusados de crimes contra pobres ou desvalidos. Tampouco em razão de crimes cometidos entre jovens da mesma classe. Mas as coisas mudam quando há vítima e autor correspondem, respectivamente, à camada média/alta e baixa da nossa sociedade.

Para piorar a situação, existe uma blindagem eleitoral do governo de São Paulo. Custe o que custar. Mesmo que isso signifique não enfrentar as causas da violência. E, em certa medida, fazer essa blindagem por meio de itens de consenso social, funciona: as pessoas têm medo da violência em cada esquina e reagem com o desejo de punição contra o outro, é quase automático. 

É até mais do que medo. É desespero. E é preciso segurança absoluta, total. Mas raramente os meios empregados correspondem à sua justificativa discursiva. A crise paulista tende a se arrastar e pode se agravar mais e mais. A aparente tranquilidade construída na última década repousa em areia movediça e enfrentar isso é, antes de mais nada, lutar contra os nossos próprios demônios interiores.




10 comentários:

  1. Se a redução da maioridade penal é um desejo da maioria (já li que dá 90%) da sociedade então a constituição pode ser reformada.
    No Brasil poucos crimes são punidos, nossa polícia investigativa é um lixo. Dos que são punidos, muitos criminosos cumprem pena maior que a lei determina, e em prisões desumanas. Tudo isso está errado e precisa ser corrigido. Mas nada disso muda o fato de que uma pessoa pode matar outra e pegar condicional depois de 2,5 anos. Prisão é castigo e isolamento também.
    Concordo que a imprensa é podre, e a podridão fica mais fétida quando se põe a proteger um partido político, mas o rapaz que morreu não era rico, era de classe média baixa.

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    1. André, a Constituição não é reformada por conta do desejo momentâneo disso ou daquilo, mas pelos critérios nela estabelecidos. Nesse sentido, emenda irregular é possível no sentido fático e não jurídico. É indevido. No mais, não sei onde você tirou que poucos "crimes são punidos": se algo é considerado crime, isso é punido (crime é descrição de uma conduta mais sanção), e existem inúmeras condutas descritas como crime. E há muita gente na cadeia, sobretudo presos provisoriamente (isto é, sem sentença condenatória ainda). É só pesquisar os números. Tem resolvido? Eu duvido. E prisão tem sido apenas prisão e isolamento. Tanto que quem sai de lá costuma sair um tanto pior.

      No mais, eu não disse que o rapaz que morreu era rico, isso não está em nenhuma parte do meu texto. O ponto é outro. A questão é a relação vítima/agente. Se o homicida fosse o filho de um figurão, Alckmin proporia redução da maioridade penal? Eu nunca vi ele propondo isso nos crimes cometidos por menores de média ou alta renda. Eu nunca vi tamanha consternação em crimes violentíssimos cometidos contra pobres e negros.

      abraços

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    2. A constituição diz que todo o poder emana do povo e não dela mesma. Claro que não vai ficar emendando a constituição a cada campanha indignada do JN. Mas um desejo da maioria da população que se manifeste consistentemente ao longo do tempo, e que não seja do tipo que quer tirar direitos das minorias, tem toda a legitimidade para ser atendido.
      Os jornais costumam dizer que menos de 10% dos homicídios são esclarecidos. Mesmo que o número seja o dobro ou o triplo, e que muitos não sejam esclarecidos por terem sido praticados por policiais contra jovens pobres e negros, ainda dá para afirmar que há uma enorme impunidade no Brasil. Fora o fato de que em muitos crimes sequer são feitos BOs.
      Concordo que o sistema prisional é péssimo, mas um homicida sair da cadeia pior do que entrou 30 anos depois de ter entrado ainda é melhor do que sair pior do que entrou depois de 3 anos.
      Concordo que a atitude do governador foi altamente hipócrita, não estou defendendo ele. Mas a mesma lei que valeria para o assassino pobre do estudante de classe média, e para o assassino que atropelou aquela menina com o jet-ski uns tempos atrás. Claro que os hipócritas de sempre tentariam abrandar um destes casos, mas num segundo momento cabe aos eleitores escorraçar esse tipo de gente da política.
      Também não disse que você afirmou que o jovem assassinado era rico. Mas como esses dois pontos surgiram no texto, de forma distinta, acho que é bom reforçar a separação.

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    3. André: calma, não é bem assim. Existe uma coisa chamada "cláusula pétrea" e nem tudo pode ser emendado. Direitos individuais originários não podem ser retirados, por exemplo. Para além disso, um plebiscito que disponha sobre desconstituição de direitos é, em sua premissa, antidemocrático. É a lógica do linchamento.

      E punição -- oficial e extra-oficial -- o Brasil tem, sempre teve, é só fazer uma pesquisa histórica elementar: olhe a quantidade de gente jogada, enquanto presos provisórios, nas cadeias -- ou olhe os tantos suspeitos mortos por grupos de extermínio formados por policiais. Não é sociedade contra sociedade, é Estado contra a sociedade mesmo.

      Falar coisas como " mas um homicida sair da cadeia pior do que entrou 30 anos depois de ter entrado ainda é melhor do que sair pior do que entrou depois de 3 anos" é meio ilógico. Compactuar com um péssimo sistema prisional baseado uma noção transcendente de vingança não é menos violento do que os criminosos que você denuncia.



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    4. Hugo, mesmo as cláusulas pétreas foram colocadas ali por pessoas que decidiram isso. Não são sagradas, podem ser alteradas. Além disso, eu não falei em plebiscito nem em desconstituição de direitos. Eu me referia à emendas constitucionais para uniformização de direitos. De modo a suavizar o degrau que existe entre pessoas com 17 anos e 11 meses e com 18 anos. A dureza da pena deveria ser gradativa.
      Só porque existe uma punição extra-oficial então não se pode estabelecer uma punição oficial adequada? Aí estaríamos apoiando a lógica da barbárie.
      No meu ponto de vista a cadeia deveria ter função de castigo, por isso a pena tem que ser proporcioal à ofensa, e 3 anos por um crime como assassinato é muito pouco. Também deveria haver uma tentativa de reeducação do preso, por isso a cadeia não poderia ser desumana e deveria oferecer possibilidade de estudo para os presos. E também deveria ter função de isolamento, mesmo que o preso não tenha sido recuperado, pelo tempo em que ele estiver preso não vai reincidir.

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    5. André, elas podem, faticamente, serem alteradas, mas não juridicamente. E nem se pensemos para além do Direito, na política, a partir de uma perspectiva democrática: deliberar plebiscitariamente, em caráter de exceção, sobre desconstituição de direitos não é democrático. E não resolve problemas, porque não há nenhum indicativo que relacione dureza na política jurídico-penal contra menores e tranquilidade social. Ao contrário. Países mais seguros são aqueles que procuram cuidar da educação de seus menores e, em casos problemáticos, ressocializa-los. A sua opinião pessoal sobre a função da pena não importa. No Brasil, pena não importa em castigo. Nem nenhum país do mundo que adota esse perspectiva é pacífico. Se alguém se move pela violência e pela vingança, nossa resposta não pode ser simétrica, sob pena de iniciarmos (ou continuarmos) uma guerra social da qual não podemos reclamar.

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    6. Enquanto não se iniciarem os debates no congresso não temos como adivinhar as deliberações serão feitas em caráter de exceção. Também não concordo que desconstituição de direitos seja automaticamente antidemocrático, ou quase toda reforma administrativa e previdenciária feita nos últimos anos seria. A minha opinião sobre as penas no Brasil não importa, mas a opinião de 80% da população deveria. Além disso, o Japão é razoavelmente pacífico e tem pena de morte, muitos países da Europa reduziram suas taxas de criminalidade antes de abolir a pena de morte. E, para que fique claro, eu não defendo a pena de morte, apenas usei como exemplo por se tratar de pena que implica em castigo.

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  2. "Concordo que o sistema prisional é péssimo, mas um homicida sair da cadeia pior do que entrou 30 anos depois de ter entrado ainda é melhor do que sair pior do que entrou depois de 3 anos."

    KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK

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    1. orra, foi mal, era pra ter ido junto com a resposta do André

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  3. Menoridade mental

    A redução da maioridade penal é uma farsa. Não apenas por causa dos resultados questionáveis no combate à criminalidade, das conseqüências sociais e estratégicas de se meter centenas de milhares de jovens no saturado sistema carcerário, nem mesmo pelo retrocesso que poderia causar no combate à exclusão e à marginalidade.

    A idéia é falaciosa porque pressupõe um problema inexistente. A explosão da violência que assombra o país tem origens institucionais: ela reflete a putrefação das estruturas públicas responsáveis pela segurança, em todos os níveis. A vergonha prisional, o banditismo e o despreparo das forças policiais, a lentidão e os disparates do Judiciário, o comércio clandestino de armamentos e a ruína dos projetos educativos estatais são causados por pessoas despreparadas, insensíveis e corruptas que recebem gordos salários das comunidades para protegê-las. Funcionários de carne e osso, com endereços e gabinetes conhecidos, donos de mandatos revogáveis a qualquer momento.

    Jogar a culpa numa entidade legal intangível reproduz o raciocínio fujão das autoridades incompetentes, que precisam de vilões externos para se livrar das cobranças inevitáveis. Sem essa fantasia hipócrita, ficaria mais fácil compreender que a Febem paulista (chamá-la de Fundação Casa não muda sua essência) já é a própria materialização do encarceramento brutal de adolescentes infratores. E ficaria mais fácil compreender que jogá-los nos campos de concentração reservados aos adultos só causaria a formação de novos exércitos de bandidos profissionais juvenis, treinados, violentos e irrecuperáveis.

    Soa previsível que o tema da maioridade penal tenha sido alimentado por Geraldo Alckmin, no ápice da sua desmoralização político-administrativa. Tampouco surpreende que a imprensa tucana recorra ao placebo legislativo para despersonalizar um escândalo que em outras civilizações (ah, os exemplos internacionais) teria levado a avalanches de cassações e indiciamentos.

    http://www.guilhermescalzilli.blogspot.com.br

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