sábado, 14 de dezembro de 2013

Marx Selvagem de Jean Tible: Selvagens do Mundo, Uni-vos!

Marx Selvagem, vetusta tese de doutorado de Jean Tible, finalmente deveio livro. Seu lançamento, no Teatro Oficina da trupe do antropofágico Zé Celso Martinez Corrêa, foi uma feliz escolha para uma obra desse naipe -- e tornou-se, no fim das contas, um verdadeiro acontecimento em Novembro último. Tible lançou um olhar sobre um Marx menor -- em contraste com um Marx grandioso, civilizado e arrogante -- que se revela, não por acaso, na virada dada pelo filósofo alemão na compreensão do colonialismo e das chamadas sociedades sem classes: isto é, quando Marx se livra, ou tenta se livrar, do  paradigma ilumino-modernista, algo que no plano conceitual se dá na forma de seu afastamento definitivo da filosofia da consciência hegeliana rumo a uma ontologia do sensível, no qual a temática da subjetividade torna-se horizonte visível.
A opção do autor pela problemática do pensamento marxiano face aos selvagens é uma curiosa, e pertinente, forma de abordar essa transição de Marx, justamente pelo significado disso no plano das lutas. A escolha de Tible, quando este poderia simplesmente optar por discutir os desdobramentos ontológicos desse processo, é reveladora do seu ímpeto político e iconoclasta. Em algo, ele ecoa o espírito de obras como Anomalia Selvagem de Toni Negri, isto é, fazer justiça com as próprias mãos contra a apropriação majoritária e civilizatória de um grande pensador -- no caso de Negri, Spinoza, enquanto aqui, Marx. É, pois, uma proposta original e audaciosa, que merece ser lida -- e, obviamente, deglutida da melhor forma.

Convém, a título de explicação, expor a maneira como essas "sociedades", esses selvagens todos, se articulariam no interior do pensamento marxiano, o que implica em questões importantes e delicadas no que toca à obra do filósofo alemão: (I) no plano dos conceitos, a afirmação de que o grau de abertura de Marx para a subjetividade, e consequentemente para as temáticas da filosofia contemporânea, é mesmo maior do que poderiam suportar, por exemplo, marxistas ortodoxos, modernistas e/ou iluministas -- como algum bolshevik genérico, Hobsbawn e/ou Elster; (II) no plano das lutas, trata-se de uma rearticulação da maneira como se toma o colonialismo, o capitalismo e formas de resistência, o que oporia Marx à sujeição incondicional ao processo civilizatório -- sujeição tal que não poucos marxistas se apegam e se apegaram, basta lembrar da União Soviética ou mesmo de um (ex?)trotskysta como Hitchens defendendo a Guerra do Iraque. Conceitos e lutas, nem preciso dizer, estão intimamente ligados na práxis marxista.

Logo, é evidente que Marx Selvagem põe o dedo na ferida de uma velha doxa do mundo intelectual: aquela que coloca em lados opostos do ringue "marxistas" e "antropólogos" -- em uma arenga interminável e sem solução. O motivo da querela é justamente a segunda razão acima apontada: Marx, segundo os "antropólogos", seria aliado da civilização e seu aparente radicalismo significaria, apenas e tão somente, uma variação possível dentro do paradigma organizativo judaico-cristão do ocidente -- mais ou menos aquilo que Pierre Clastres trouxe à baila em seu Sociedade contra o Estado. E que para alguns "marxistas" é isso mesmo: a história é linha reta determinada pelo o desenvolvimento dos meios de produção, o que exige um compromisso profundo com a "civilização" e seu avanço -- mesmo com certos, digamos, "sacrifícios" em nome do bem maior, sendo o comunismo, ele mesmo, apenas o estágio superior da civilização.

Pois bem, o livro de Tible é bom porque se livra dessas falácias, insere-se na alegremente na polêmica -- ainda que por ser um tese de doutorado, antes de um livro, carregue um estilo às vezes demasiado acadêmico, mais pesado do que uma obra com essa temática demanda. A obra em questão está articulada em três capítulos: o primeiro, sobre a relação de Marx e o colonialismo e a América Indígena, o segundo, a respeito da práxis antiestatal de Marx -- aproximando-o do Clastres que lhe criticou tão duramente -- e, por fim, o melhor e mais relevante capítulo: cosmologias, no qual Tible delinea o ponto de conexão entre Marx e o pensamento ameríndio -- aqui, na forma da antropologia reversa de Davi Copenawa --, o que é precisamente a relação entre a noção marxiana de fetiche da mercadoria e o de feitiço: os brancos civilizados, pois, não estão menos isentos de serem enfeitiçados, ao contrário, vivem imersos na atração fatal que nutrem por seus objetos técnicos, na medida em que lhe atribuem feições humanas -- no mesmo movimento em que desumanizam a si mesmos e aos outros, sendo que só a partir daí tais objetos devêm mercadoria.

Sim, Marx, ao contrário de Engels, emergiu gradualmente do fetiche civilizatório e modernista. E é em torno disso que giro o primeiro capítulo do livro. E isso não é generosidade demasiada, uma apropriação arbitrária ou wishful thinking do autor de Marx Selvagem para com Marx: Tible demonstra isso com obstinação ao expor o giro marxiano em relação à questão colonial; o velho Marx possuía uma posição inicial sobre o imperialismo, segundo a qual o processo de colonização era visto como uma chance de povos como os indianos entrarem na História para, depois, chutarem os colonizadores britânicos, unindo-se aos trabalhadores do mundo num processo que desembocaria na revolução; isso muda, no entanto, quando Marx assume uma posição absolutamente hostil ao colonialismo, o qual passa a ser enxergado como mero meio de retroalimentação da máquina capitalista mundial: seria um dispositivo marcado pela dialética centro (progresso) e periferia (atraso), na qual os civilizados explorariam os selvagens e bárbaros, que lhes eram contemporâneos. A partir daí, a própria luta de classes tornaria-se uma modalidade da exploração geral, a qual em escala global era dada pelo processo de parasitagem do colonialismo.

Grande parte desse giro marxiano se dá em razão da leitura marxiana do antropólogo americano Lewis Henry Morgan: e a novidade que Morgan trouxe à antropologia foi de não apenas deixar de lado o discurso colonial-racista dos seus pares, mas também -- e sobretudo -- de afirmar que as as coletividades humanas selvagens não eram necessariamente piores. Ao contrário. Isto é, ainda há uma certa linearidade em Morgan -- como há em Marx --, mas o que certamente lhe fascinou em Marx foi que os selvagens não estão postos em uma condição hierarquicamente inferior aos civilizados, consistindo em formas diferentes de coexistência -- ambas sincrônicas, diga-se de passagem. Tible, aliás, é particularmente competente em demonstrar isso.

As coisas esquentam mesmo no segundo capítulo, quando Tible faz uma leitura do anti-estatalismo na obra de Marx e de Pierre Clastres, ousando estabelecer um ponto de conexão entre ambos -- o que, a um primeiro olhar, seria tarefa impossível. Pois bem, a hipótese que o autor traça é conectar a sociedade sem Estado de Marx a a sociedade contra o Estado de Clastres, encontrando um comum em meio à (aparente?) dissonância. Sim, ambos, Marx e Clastres, são pensadores anti-Estado. A partir daí, ele traça o anti-estatalismo na obra dos dois para, logo mais, promover o encontro entre eles. A transição revolucionária de Marx, o que há entre o Estado burguês e o comunismo, como o esconjuramento atual do Estado em Clastres?

E Tible faz bem isso ao nos lembrar que Marx não é Lassalle, para quem a ideia de um Estado popular e proletário já aparecia com O caminho: isto é, para Marx, o Estado não é solução, mas resultado funesto da sociedade de classes, o que pode ser definido na seguinte fórmula. A sociedade de classes é causa efetiva do Estado, pois este é o local por excelência, no qual a classe dominante reprime/media as tensões causadas pela resistência da(s) classe(s) dominadas. De tal forma, ao assumir a posição da classe trabalhadora como a classe revolucionária, ele acreditava que esta ao assumir o poder seria capaz de promover a universalização da qual os burgueses jamais seriam, ou foram, capazes: esta universalização levaria a uma sociedade sem classes, ao fim do capitalismo, e consequente esvaecimento gradual do Estado. Essa talvez seja a maior diferença entre Marx e Engels, uma vez que o segundo via o Estado como causa, ao menos relativa, uma vez que ele era instrumento de repressão nas mãos da classe dominante: no engelianismo, uma vez a revolução sobreviesse e a reação a esta cessasse, o Estado perderia utilidade.

Mas é nas polêmicas com Bakunin que chegamos ao ponto que interessa. No que se refere ao combate político-intelectual com o anarquista russo, Marx defende sempre uma transição revolucionária para a sociedade de classes -- e estatal -- e sociedade sem classes, por não acreditar na abolição estatal "por decreto" como defendida por Bakunin; no entanto, Bakunin da sua parte responde a Marx -- e não a nenhum marxista, contemporâneo ou futuro -- que a transição proposta culminaria na prevalência do Estado de um modo tão ou mais autoritário -- não é que Bakunin discordasse da libertação dos trabalhadores, mas sim de que a hegemonia proletária no Estado não seria capaz de gerar a liberação humana e que, ainda, entendia que o Estado gerava, ou sustentava, a sociedade de classes, logo, a sociedade sem Estado era condição prévia para a sociedade sem classes -- e não o contrário.

Tible, no entanto, poderia ter feito um esforço mais conceitual do que descritivo no que diz respeito à inversão Bakuniniana e suas implicações.  E poderia ter mergulhado com mais profundida na dicotomia marx-bakuniniana sobre a sociedade de classes e o Estado. Isso fica claro quando Tible prefere rebater a crítica de Bakunin ao estatismo colateral do plano de transição revolucionário de Marx, vejamos nós, pela exposição da falta de um plano de ação à proposta teórica de Bakunin, o que teria sido comprovado por seus fracassos práticos -- ou quando procurar explicar a certeza da antevisão (cruel? auspiciosa?) do anarquista, sobre o que seria a experiência histórica do "socialismo real", pelo viés de sua eventual razão em relação "a um certo marxismo já existente", e não em relação a conceitos marxianos efetivos. A crítica ao modo como a polêmica marx-bakuniniana foi pouco enfrentada consta do próprio posfácio e, convenhamos, é justa.

Quando trata de Clastres, Tible nos lembra que para o antropólogo francês, o Estado sempre existiu, mas nas sociedades indígenas existentes,  este era esconjurado por uma série de práticas que esvaziam o desenvolvimento do poder. Isto é, longe de Engels, que concebeu o Estado como evolução histórica da divisão do trabalho em As Origens da Família, da Propriedade Privada e do Trabalho, para Clastres o Estado estava posto desde sempre, mas práticas como o nomadismo e a relação entre a tribo e seus guerreiros e chefes, ele restava apenas latente. O que os povos estudados por Clastres nos apontavam era a possibilidade de esconjurarmos o Estado aqui-agora. Isso seria possível, pois os povos de Estado, já foram, algum dia sem Estado, não por falta de evolução, mas pelos agenciamentos coletivos que produziam, o que estaria à nossa mão aqui-agora -- e, sim, você há de ter lido algo do gênero, não por acaso, em Deleuze-Guattari. 

Mas Marx, em dado momento, já antevia as sociedades sem Estado existentes hoje como um símbolo do passado (europeu), mas, sobretudo, como flecha apontando para o comunismo do porvir. Eis o que seria o casamento (possível) entre a sociedade sem Estado e a sociedade contra o Estado, atadas por um fio vermelho. Mas Tible perdeu a oportunidade para adensar algo que ele mesmo suscitou, quando lembrou o comentário de Gustavo Barbosa sobre o contratualismo em Hobbes: faltou, entretanto, definir o que seria, ontologicamente, "sociedade", ou qual o motivo de naturalizarmos o termo como a própria essência da coletividade humana; se o próprio Marx via o contrato social como um mecanismo de expropriação, seria possível haver sociedade sem contrato social? E poderia haver sociedade -- A Sociedade --, sem haver um Estado para fazer valer -- à força, se necessário -- tal contrato? Como os selvagens, que em toda a literatura contratualista não travaram contrato social algum, poderiam constituir uma forma de sociedade?

São questão que ambos, Marx e Clastres, não enfrentaram a seu tempo, logo, Tible não teria obrigação, em tese, de fazê-lo descritivamente em um trabalho acadêmico. Mas poderia ter adensado a crítica nessa direção. Deleuze e Guattari, eles mesmo, acertaram ao falar, no Anti-Édipo, no acerto de Marx ao tratar a história como a história dos cortes e das contingências, mas apontavam que o pensador alemão errou ao fazer leitura da história como luta de classes -- quando isso pode se revelar apenas a história desde o advento da burguesia --, o que causava a ilusão de ótica de ver a burguesia, em algum momento, como realmente revolucionária -- o que implica em desconhecer os próprios descaminhos da revolução passada e, consequentemente, das revoluções futuras. Por outro lado, no entanto, D&G esvaziaram isso ao, em Mil Platôs, surgirem com a ideia da existência de um Estado, ou um fantasma estatal, que percorreria a história do humana. A própria noção de socius, já no Anti-Édipo, é parte dessa contradição em termos, uma vez que o pensamento social, ao contrário do que parece, é eminentemente burguês.

Ainda que Marx e Clastres digam "sociedade" como expressão de qualquer coletividade humana, o fato de não esmiuçar o conteúdo específico do termo leva ao desconhecimento dos efeitos dessa naturalização. Não, os índios não vivem em sociedade por que não partilham um contrato, isto é, não vivem em regime negocial. O ócio, isto é, trabalhar para viver e não viver para trabalhar é o que -- acima de tudo -- distingue os índios de nós, pobres ricos ocidentais. Os selvagens não travam sociedades entre si, tampouco vivem sob a égide de A Sociedade -- portanto, do Estado. A dificuldade de Marx e Clastres em articular contrato social, sociedade e Estado, possuem um desdobramentos importantes. O que por trás da naturalidade, no sentido de normalidade, da sociedade é algo que poderia ter sido respondido. Entender a história para além dos termos em que seu deu a luta na sociedade hegemonizada pela burguesia exige, também, uma genealogia profunda do contratualismo.

O ponto forte do livro está mesmo no terceiro -- e último -- capítulo. Copenawa e Marx, separados por dois séculos -- e um imenso oceano -- de diferença, mas que veem na relação mágica -- e teológica -- dos homens com seus objetos a chave para a crítica à economia política e ao capitalismo. Assertiva perfeita de Tible. O liame da relação entre homem e mercadoria é, precisamente, afetivo, dada pelos efeitos reais de um discurso imaginário. É precisamente essa liame subjetivo que permitiu a virada do capitalismo industrial para o capitalismo financeiro e cognitivo. A mágica devém absoluta, justamente porque os objetos técnicos já eram laterais antes, até se tornarem quase que completamente obsoletos nos dias atuais: o que gera valor são conceitos, abstrações, marcas. 

E certíssima a crítica de Tible a Viveiros de Castro, alguém cujo ponto feliz de sua antropologia está em relacionar a metafísica deleuzo-guattariana -- que é sim marxista -- com uma pesquisa etnográfica densa -- e Viveiros concorda com o Marx da virada mais do que gostaria, e poderia admitir, como Tible felizmente demonstra. O que Tible não adensou, novamente, é que se Viveiros, via D&G, vê bem o erro marxiano (dar uma demasiada universalidade à história burguesa), por outro lado, novamente por meio dos dois, repetiram o erro de Marx ao dar, p.ex., uma existência extra-histórica na História ao Estado (sempre houve Estado), o que polui o pensamento de neblina na hora de destrinchar, e desmontar, dispositivos específicos  -- os quais estão a serviço da escravidão universal do regime do Capital.

Por fim, Marx Selvagem, que desemboca em Oswald no final, é uma obra divertida. Passa por muitos autores, questões e polêmicas caros ao pensamento-prática da esquerda atual. Mas importante de tudo, é a leitura correta de Marx presente no livro, ao levantar a bola para onde o pensador alemão mirava no século 19º, e não para o seu retrovisor, isto é, a própria tradição majoritária alemã. O Marx maior, felizmente, foi jogado na lata do lixo da História, primeiro com a queda do Muro de Berlim, depois com a crise do colaboracionismo de esquerda ao neoliberalismo, agora, mais do que nunca, é hora de pôr em prática um outro Marx, o que, a nosso ver, é imprescindível. Hoje, mais do que nunca, é o momento de bradar: Selvagens do Mundo, Uni-vos!


TIBLE, Jean. Marx Selvagem. São Paulo: Editora Annablume, 2013, 242 páginas.



segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Réquiem para Mandela

"Nós adotamos a atitude de não violência só até o ponto em que as condições o permitiram. Quando as condições foram contrárias, abandonamos imediatamente a não violência e usamos os métodos ditados pelas condições"

Nelson Mandela

Faleceu, no último dia 5 de Dezembro, Nelson Mandela,  ex-presidente sul-africano, ícone internacional da luta contra a opressão e grande líder da luta contra o apartheid -- regime oficial de segregação étnica que perdurou por 44 anos, entre 1960 e 1994, em seu país. Mandela morreu aos 95 anos, 27 dos quais passados em uma prisão, em virtude da sua participação na luta armada contra aquele regime --  a prisão de Mandela aconteceu em 1963, em decorrência do Julgamento de Rivônia, sendo que ele só foi libertado em 1990, depois de muita pressão sobre o governo sul-africano.

Curioso notar a santificação que Mandela atingiu nos seus últimos anos de vida: de repente, Mandiba era unanimidade entre esquerda, direita, centro, gregos e troianos. Sua morte repercutiu pela mídia global e não houve quem, nos últimos dias, não se compadecesse de seu falecimento. A questão que se insurge é:  Como uma figura radical como Mandela, em um mundo como este,  pode tornar-se um herói?

Aí entram alguns detalhes importantes: Mandela participou com todo afinco da luta contra o Apartheid, quando criou e participou da organização guerrilheira Umkhonto we Sizwe -- "Lança de uma Nação" -- como resposta ao Massacre de Sharpeville,  aliou-se  ao movimento não-alinhado e flertou com o bloco soviético no contexto da Guerra Fria -- na medida em que o regime do Apartheid era apoiado pelo Ocidente -- e recusou, no decorrer de seu longo cárcere, inúmeras ofertas de libertação em troca de assumir uma posição contrária à luta armada. 

Uma vez liberto em 1990, foi eleito presidente da nova nação sul-africana em 1994, em um processo marcado pela fusão da bandeira da África do Sul nacional com a do CNA -- Congresso Nacional Africano, organização política negra da qual ele fez parte e que, desde 1912, empenhou-se na luta pela autonomia dos negros na África do Sul e na luta contra as variadas formas de segregação. A nova África do Sul, embora livre da segregação racial formal, ainda hoje apresenta das mais altas desigualdades sociais do mundo e o abismo entre brancos negros, e entre brancos, continua absurdo.

A questão inicial, portanto, possui dois eixos principais. Um deles é a maneira como a mídia global diluiu a biografia de Mandela, transformando-o em alguma espécie de pregador passivo e cândido, alguém que jamais se usou do "radicalismo" contra a ordem posta; o outro, o quanto que diz respeito aos mecanismos internos do racismo, expresso no contexto sul-africano do século passado na forma de apartheid. 

A pasteurização de Mandela é não só necessária como urgente. Os heróis do nosso tempo precisam ser, sobretudo, resignados face à ordem posta, seja ela qual for: a virtude é cumprir o dever para com o Estado, em um contexto de dívida infinita. Mandela teria sido bom graças ao fato de nunca ter cruzado esse limite. Daí, a omissão e as fraudes históricas praticadas em relação à sua biografia como bem demonstrou Idelber Avelar -- no entanto, é preciso ver que existem algumas nuances a mais nessa ressignificação do que o mero fato de Mandiba, em certo momento, ter se tornado "inatacável".

Mandela, de certa forma, deixou sua narrativa ser reescrita na gramática do poder constituído, relegando sua fúria revolucionária ao papel de mito fundador de uma nova ordem de paz. Se Mandela jamais leu o discurso que a mídia global lhe preparou, por outro lado, é preciso entender o que em seu discurso real tenha lhe valido tamanha leniência de setores tão atrozes: pois bem, a radicalidade de sua ação, embora jamais renegada, foi colocada por ele mesmo em um plano meramente retórico e virtual (no passado, mesmo que apresentado como necessidade), sendo que aquilo teve sentido prático e atual nos tempos da militância e, também, nos anos do cárcere. 

Ele fez isso em nome de uma governabilidade, da possibilidade de reconciliação nacional, mas essa astúcia lhe valeu mais a santificação do que a transformação sul-africana: a falta de coragem de buscar alternativas ao livre-mercado causou, por exemplo, uma insuficiência na reversão de desigualdades materiais, o que culmina com dados sociais muito negativos; a epidemia de HIV-AIDS não foi enfrentada, sendo uma das principais causas da expectativa de vida no país ter caído. 

Para se ter uma ideia, a expectativa de vida na África do Sul era de 60,54 anos em 1994, mas caiu para 52,62 anos em 2011 -- isto é, durante o tempo de governo da CNA de Mandela, correspondendo aos governos dele, de Thabo M'beki e de Jacob Zuma; só de 2006 para cá, houve alguma melhora nos índices, quando a taxa atingiu seu ponto mais baixo, pouco mais de 50 anos, subindo dois anos de lá até 2011. Antes, a expectativa de vida sul-africana registrou seu ápice em 1991, com uma média de 61,53 anos. Só para constar, a média de vida brasileira era, em 1991, de 66,73 anos, 67,94 em 1994, e  73,44 em 2011 -- isto é, o que era uma diferença de 5 anos a favor dos brasileiros, tornou-se mais de 20 anos.

Na África do Sul não houve sequer um esforço semelhante ao do Brasil, que mesmo movido pelos interesses dos laboratórios nacionais em vez de qualquer altruísmo, tocou a quebra de patentes dos medicamentos para o tratamento da AIDS e, por sua vez, construiu um programa de combate à doença. Esse exemplo ajuda a entender como Mandela permaneceu santificado: não feriu interesses, salvo para empreender conquistas formais. E também nos ajuda a passar para o segundo ponto, no que toca ao racismo de antes e o de hoje.

Ora essa, chegamos a um ponto espinhoso, tentar determinar o racismo em sentido conceitual, como modo de dominação, e nas condições sul-africanas. Racismo ou luta de classes, eis a questão? Ambos. O racismo só existe como armadilha para segregar determinadas camadas, cuja diferença biológica possa ser identificada, e, assim, conduzi-las aos piores postos na divisão do trabalho. E não é uma divisão do trabalho injusta, mas uma das formas de expressão da injustiça que é a divisão do trabalho. O negro é representado como pior, justamente para ocupar cargos piores, só que resignadamente. Racismo não pode ser visto como  problema moral, ele é problema econômico-político.

A construção de um racismo de Estado, estipulado por Lei, como o apartheid era um desastre. Mas certamente um desastre explicável pela história da África do Sul, um acidente histórico causado pela peculiar colonização holandesa na região; a presença de colonos vindos do campo no século 17, no que deveria ser apenas um empreendimento mercantil-colonial da Companhia das Índias Orientais, gerou uma aleatoriedade histórica: eram conservadores religiosos desterrados, por seu turno, em um ambiente hostil no qual disputavam terras com etnias tradicionais da região, enquanto, por outro lado, viam-se desde sempre acossados pelo imperialismo britânico -- e o povoamento do país por mão-de-obra indiana; a construção nacional sul-africana, portanto, se deu na forma de um arcaísmo brutal e foi o último grande agenciamento de castas do homem branco, posterior mesmo ao nazismo -- e ambos apenas reproduziram as experiências coloniais arianas no mundo oriental, incluso aí a própria Índia de tempos imemoráveis.

O liberalismo e a ordem política burguesa, com a igualdade formal e a gradativa conversão dos escravos negros em trabalhadores assalariados, deram conta já no século 19º de elaborar uma tecnologia espantosamente mais sofisticada no que tange à manutenção do racismo. Não há segregação legal-formal, mas sim indireta, cultural e psicossocial, efetivada pelo dispositivo econômico. Grandes estrelas negras das artes, dos esportes e mesmo da política não são desconhecidas mundo afora, mas isso não mudou substancialmente a situação do negro comum, apenas lhe deu a ilusão do "mérito" -- o que opera de modo reverso no imaginário comum, servindo como explicação da pobreza da maior parte dos negros não na forma de efeito da dominação, mas sim de culpa.

O esquema do apartheid só durou tanto na medida em que, vejam só, um estamento local específico se beneficiava do sistema e, estrategicamente, o mantinha servindo de tentáculo do trabalho sujo do Ocidente no continente africano durante a Guerra Fria. Internamente, a cooptação de lideranças tribais, a modulação da segregação conforme a brancura da pele, mantinha os oprimidos suficientemente divididos para que sua resistência não fosse suficiente. Os burocratas do Partido Nacional precisavam do apartheid, não a totalidade dos brancos de elite: quando esta viu modos melhores de manter sua hegemonia, avançou e repetiu a estratégia dos seus pares nas Américas.

Isso não torna, é óbvio, Mandela um idiota útil a serviço do domínio branco. Mas tampouco o torna uma mera vítima do falseamento histórico da mídia global. É preciso libertar Nelson Mandela, como nos lembra João Telésforo, mas isso só é possível por meio da experiência do Mandela menor: eu quero o Mandela iconoclasta e não o ícone universal; é preciso atualizar o discurso de Mandela como prática e mostrar o quão indigesto, para opressores e racistas, é a figura que eles tentam deglutir a todo custo. Não queremos, nem precisamos, do Mandela tolerante com o intolerável, mas do Mandela intolerante com o tolerado.