segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Réquiem para Mandela

"Nós adotamos a atitude de não violência só até o ponto em que as condições o permitiram. Quando as condições foram contrárias, abandonamos imediatamente a não violência e usamos os métodos ditados pelas condições"

Nelson Mandela

Faleceu, no último dia 5 de Dezembro, Nelson Mandela,  ex-presidente sul-africano, ícone internacional da luta contra a opressão e grande líder da luta contra o apartheid -- regime oficial de segregação étnica que perdurou por 44 anos, entre 1960 e 1994, em seu país. Mandela morreu aos 95 anos, 27 dos quais passados em uma prisão, em virtude da sua participação na luta armada contra aquele regime --  a prisão de Mandela aconteceu em 1963, em decorrência do Julgamento de Rivônia, sendo que ele só foi libertado em 1990, depois de muita pressão sobre o governo sul-africano.

Curioso notar a santificação que Mandela atingiu nos seus últimos anos de vida: de repente, Mandiba era unanimidade entre esquerda, direita, centro, gregos e troianos. Sua morte repercutiu pela mídia global e não houve quem, nos últimos dias, não se compadecesse de seu falecimento. A questão que se insurge é:  Como uma figura radical como Mandela, em um mundo como este,  pode tornar-se um herói?

Aí entram alguns detalhes importantes: Mandela participou com todo afinco da luta contra o Apartheid, quando criou e participou da organização guerrilheira Umkhonto we Sizwe -- "Lança de uma Nação" -- como resposta ao Massacre de Sharpeville,  aliou-se  ao movimento não-alinhado e flertou com o bloco soviético no contexto da Guerra Fria -- na medida em que o regime do Apartheid era apoiado pelo Ocidente -- e recusou, no decorrer de seu longo cárcere, inúmeras ofertas de libertação em troca de assumir uma posição contrária à luta armada. 

Uma vez liberto em 1990, foi eleito presidente da nova nação sul-africana em 1994, em um processo marcado pela fusão da bandeira da África do Sul nacional com a do CNA -- Congresso Nacional Africano, organização política negra da qual ele fez parte e que, desde 1912, empenhou-se na luta pela autonomia dos negros na África do Sul e na luta contra as variadas formas de segregação. A nova África do Sul, embora livre da segregação racial formal, ainda hoje apresenta das mais altas desigualdades sociais do mundo e o abismo entre brancos negros, e entre brancos, continua absurdo.

A questão inicial, portanto, possui dois eixos principais. Um deles é a maneira como a mídia global diluiu a biografia de Mandela, transformando-o em alguma espécie de pregador passivo e cândido, alguém que jamais se usou do "radicalismo" contra a ordem posta; o outro, o quanto que diz respeito aos mecanismos internos do racismo, expresso no contexto sul-africano do século passado na forma de apartheid. 

A pasteurização de Mandela é não só necessária como urgente. Os heróis do nosso tempo precisam ser, sobretudo, resignados face à ordem posta, seja ela qual for: a virtude é cumprir o dever para com o Estado, em um contexto de dívida infinita. Mandela teria sido bom graças ao fato de nunca ter cruzado esse limite. Daí, a omissão e as fraudes históricas praticadas em relação à sua biografia como bem demonstrou Idelber Avelar -- no entanto, é preciso ver que existem algumas nuances a mais nessa ressignificação do que o mero fato de Mandiba, em certo momento, ter se tornado "inatacável".

Mandela, de certa forma, deixou sua narrativa ser reescrita na gramática do poder constituído, relegando sua fúria revolucionária ao papel de mito fundador de uma nova ordem de paz. Se Mandela jamais leu o discurso que a mídia global lhe preparou, por outro lado, é preciso entender o que em seu discurso real tenha lhe valido tamanha leniência de setores tão atrozes: pois bem, a radicalidade de sua ação, embora jamais renegada, foi colocada por ele mesmo em um plano meramente retórico e virtual (no passado, mesmo que apresentado como necessidade), sendo que aquilo teve sentido prático e atual nos tempos da militância e, também, nos anos do cárcere. 

Ele fez isso em nome de uma governabilidade, da possibilidade de reconciliação nacional, mas essa astúcia lhe valeu mais a santificação do que a transformação sul-africana: a falta de coragem de buscar alternativas ao livre-mercado causou, por exemplo, uma insuficiência na reversão de desigualdades materiais, o que culmina com dados sociais muito negativos; a epidemia de HIV-AIDS não foi enfrentada, sendo uma das principais causas da expectativa de vida no país ter caído. 

Para se ter uma ideia, a expectativa de vida na África do Sul era de 60,54 anos em 1994, mas caiu para 52,62 anos em 2011 -- isto é, durante o tempo de governo da CNA de Mandela, correspondendo aos governos dele, de Thabo M'beki e de Jacob Zuma; só de 2006 para cá, houve alguma melhora nos índices, quando a taxa atingiu seu ponto mais baixo, pouco mais de 50 anos, subindo dois anos de lá até 2011. Antes, a expectativa de vida sul-africana registrou seu ápice em 1991, com uma média de 61,53 anos. Só para constar, a média de vida brasileira era, em 1991, de 66,73 anos, 67,94 em 1994, e  73,44 em 2011 -- isto é, o que era uma diferença de 5 anos a favor dos brasileiros, tornou-se mais de 20 anos.

Na África do Sul não houve sequer um esforço semelhante ao do Brasil, que mesmo movido pelos interesses dos laboratórios nacionais em vez de qualquer altruísmo, tocou a quebra de patentes dos medicamentos para o tratamento da AIDS e, por sua vez, construiu um programa de combate à doença. Esse exemplo ajuda a entender como Mandela permaneceu santificado: não feriu interesses, salvo para empreender conquistas formais. E também nos ajuda a passar para o segundo ponto, no que toca ao racismo de antes e o de hoje.

Ora essa, chegamos a um ponto espinhoso, tentar determinar o racismo em sentido conceitual, como modo de dominação, e nas condições sul-africanas. Racismo ou luta de classes, eis a questão? Ambos. O racismo só existe como armadilha para segregar determinadas camadas, cuja diferença biológica possa ser identificada, e, assim, conduzi-las aos piores postos na divisão do trabalho. E não é uma divisão do trabalho injusta, mas uma das formas de expressão da injustiça que é a divisão do trabalho. O negro é representado como pior, justamente para ocupar cargos piores, só que resignadamente. Racismo não pode ser visto como  problema moral, ele é problema econômico-político.

A construção de um racismo de Estado, estipulado por Lei, como o apartheid era um desastre. Mas certamente um desastre explicável pela história da África do Sul, um acidente histórico causado pela peculiar colonização holandesa na região; a presença de colonos vindos do campo no século 17, no que deveria ser apenas um empreendimento mercantil-colonial da Companhia das Índias Orientais, gerou uma aleatoriedade histórica: eram conservadores religiosos desterrados, por seu turno, em um ambiente hostil no qual disputavam terras com etnias tradicionais da região, enquanto, por outro lado, viam-se desde sempre acossados pelo imperialismo britânico -- e o povoamento do país por mão-de-obra indiana; a construção nacional sul-africana, portanto, se deu na forma de um arcaísmo brutal e foi o último grande agenciamento de castas do homem branco, posterior mesmo ao nazismo -- e ambos apenas reproduziram as experiências coloniais arianas no mundo oriental, incluso aí a própria Índia de tempos imemoráveis.

O liberalismo e a ordem política burguesa, com a igualdade formal e a gradativa conversão dos escravos negros em trabalhadores assalariados, deram conta já no século 19º de elaborar uma tecnologia espantosamente mais sofisticada no que tange à manutenção do racismo. Não há segregação legal-formal, mas sim indireta, cultural e psicossocial, efetivada pelo dispositivo econômico. Grandes estrelas negras das artes, dos esportes e mesmo da política não são desconhecidas mundo afora, mas isso não mudou substancialmente a situação do negro comum, apenas lhe deu a ilusão do "mérito" -- o que opera de modo reverso no imaginário comum, servindo como explicação da pobreza da maior parte dos negros não na forma de efeito da dominação, mas sim de culpa.

O esquema do apartheid só durou tanto na medida em que, vejam só, um estamento local específico se beneficiava do sistema e, estrategicamente, o mantinha servindo de tentáculo do trabalho sujo do Ocidente no continente africano durante a Guerra Fria. Internamente, a cooptação de lideranças tribais, a modulação da segregação conforme a brancura da pele, mantinha os oprimidos suficientemente divididos para que sua resistência não fosse suficiente. Os burocratas do Partido Nacional precisavam do apartheid, não a totalidade dos brancos de elite: quando esta viu modos melhores de manter sua hegemonia, avançou e repetiu a estratégia dos seus pares nas Américas.

Isso não torna, é óbvio, Mandela um idiota útil a serviço do domínio branco. Mas tampouco o torna uma mera vítima do falseamento histórico da mídia global. É preciso libertar Nelson Mandela, como nos lembra João Telésforo, mas isso só é possível por meio da experiência do Mandela menor: eu quero o Mandela iconoclasta e não o ícone universal; é preciso atualizar o discurso de Mandela como prática e mostrar o quão indigesto, para opressores e racistas, é a figura que eles tentam deglutir a todo custo. Não queremos, nem precisamos, do Mandela tolerante com o intolerável, mas do Mandela intolerante com o tolerado. 





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