Brendan Hoffman/Getty Images Via The Big Picture: Boston Globe |
A crise ucraniana ocupa as páginas, físicas ou virtuais, da mídia global. Manifestantes, quase sempre mascarados, foram às ruas em protestos radicalizados duramente reprimidos pelas forças de segurança daquele país. O resultado é chocante, inclusive visualmente, uma pilha de mortos e feridos, destruição e algo que vacila entre o fim do impasse da existência do país e o seu fracasso definitivo. No último final de semana, o presidente da república foi destituído pelo Parlamento após ter tentado, em vão, costurar um pacto de governabilidade com a antecipação das eleições -- além do mesmo parlamento ter libertado a oposicionista Yulia Timoshenko. O que diabos importa a situação da distante Ucrânia para o Brasil? Nada e tudo. Os resultados das manifestações ucranianas são apontados como exemplo para os rumos do que pode acontecer por aqui, no entanto, quais resultados são, realmente, esses, a despeito da captura política de lado a lado? Vamos, pois, por pontos.
1. Esse fenômeno está conectado aos recentes levantes globais ou é algo local?
O levante ucraniano é parte dessa onda iniciada na Primavera Árabe, na Tunísia, justamente porque reflete uma tendência global e local: a conjunção de uma população fortalecida pelo absurdo acesso à informação promovido pela Internet -- e a cultura que isso envolve -- contrastada com um cenário de incertezas para o futuro -- sobretudo os mais jovens -- e, de tal forma, forçada a agir dentro de cada contexto social e local. Essa revolta não poupou dos Estados Unidos à Rússia, do Brasil de Lula e Dilma ao Chile de Piñera. Mas ela se mostra, em cada lugar, na forma que o calo aperta para cada sociedade. É um levante que se volta a cobrar as promessas não cumpridas da modernidade.
2. Washington e Berlim conspiraram para a derrubada do presidente Yanukovich?
Sim, mas tanto quanto Moscou e seus aliados trabalharam para eleger, e manter, o agora ex-presidente no poder. De certa maneira, em toda parte os blocos políticos internos se apoiam em blocos de poder globais que são ajuntamentos, mais ou menos coesos, o que pode ser mais intenso em Estados mais problemáticos. Na Ucrânia, o Partido das Regiões, de Yanukovich é pró-Rússia -- e vice-versa -- enquanto a oposição -- formada por muitos ex-burocratas "comunistas" -- é apoiada sim pelos EUA. Mas isso não é que o determinou o fato de manifestações gigantescas e radicalizadas tenham acontecido no país. Existem demandas muito reais que se impuseram, e a multidão ucraniana joga com as armas que tem ao passo que os blocos de poder busca captura-las a seu favor -- num jogo onde as duas partes se usam mutuamente.
3. A queda de Yanukovich foi um golpe de Estado, deposição dentro da Lei ou um processo revolucionário?
O parlamento ucraniano, a Verkhovna Rada, democraticamente eleito antes dos fatos em questão, aprovou o impeachment do presidente da república em um momento no qual, aliás, ele havia perdido amplamente sua legitimidade: sem tropas defendendo sua residência e com os palácios e os manifestantes ocupando as ruas, não havia o que fazer. Embora a atual Constituição Ucraniana, datada de 1996, tenha sido radicalmente transformada com o tempo, da Revolução Laranja (2004) e, depois, com o retorno de Yanukovich (2010) para, pouco antes da queda do presidente, voltar aos termos de 2004, é fato que não parece haver dúvidas de que o Parlamento é competente para remover o presidente da república -- como se depreende do capítulo V da Constituição, o qual regula os poderes do presidente, sobretudo o artigo 111. De tal sorte, o ex-mandatário ucraniano foi julgado e destituído pelo seu juiz natural. Mas pode se dizer que houve cerceamento de defesa pela rapidez do julgamento -- que é sim político e judicial --, fato sobre o qual a Suprema Corte local, no entanto, detém a última palavra. A rigor, foi um procedimento, em abstrato, dentro da ordem posta, embora possa se dizer que houve erro, a ser avaliado pela Suprema Corte. Do ponto de vista, político mais prático, no entanto, não resta dúvida que ele perdeu o controle. Pior que isso, Yanukovich possivelmente cometeu crimes contra a humanidade. Mas, como sempre, o direito constituído se moveu de acordo com a constituição de direitos da multidão nas ruas.
4. A aproximação, ou não, da Ucrânia em relação à União Europeia, pivô da crise, seria um bom negócio para os ucranianos?
Sim e não. O que os ucranianos querem, em um primeiro momento, é garantir sua autodeterminação que, possivelmente, está ameaçada pela Rússia. E autodeterminação, aqui, é tanto política quanto cultural. Nesse sentido, o distanciamento de Putin é visto com bons olhos pelos diferentes setores da sociedade local. Se a aproximação política e econômica com a União Europeia, para além de mitigar a influência de Moscou, daria certo, é difícil dizer. A crise dos países periféricos da Europa -- vide Grécia, Portugal e Espanha --, a crise do próprio modelo da União Europeia, nos levam a crer que talvez isso seja um sonho impossível para ambas as partes, isto é, que logo da cara seria muito remota a chance do bloco europeu assimilar o país, quanto mais lhe gerar algum benefício econômico -- e antes das coisas explodirem, gente que acompanha a sério a região apontava para isso --, mas é preciso botar no cálculo o avanço do autoritarismo na Rússia e os efeitos práticos disso na vida dos ucranianos.
5. A Ucrânia está dividida?
Sempre esteve. O lado oriental do país, mesmo dentre os falantes de ucraniano, vê sua relação de uma forma diferente com a Rússia do que o oeste. Só há uma solidez nacional no oeste do país. Ao longo do tempo, os ucranianos se aproximaram mais do ocidente ou do oriente conforme a situação. É um movimento pendular defensivo marcado pela necessidade de sobrevivência. Se o primeiro Estado russo foi construído em torno de Kiev, depois as contingências da história fizeram os ucranianos se afastarem dos russos, mirarem o ocidente, o que lhes valeu o domínio polonês na Idade Moderna. Depois, uma nova reaproximação com a Rússia, a União Soviética e uma difícil reconstrução como nação independente. O oeste, agora, é mais pró-Europa, o leste, pró-Rússia, muito embora ser pró-Rússia não se confunda com "pró-Putin", o que foi decisivo neste momento.
1. Esse fenômeno está conectado aos recentes levantes globais ou é algo local?
O levante ucraniano é parte dessa onda iniciada na Primavera Árabe, na Tunísia, justamente porque reflete uma tendência global e local: a conjunção de uma população fortalecida pelo absurdo acesso à informação promovido pela Internet -- e a cultura que isso envolve -- contrastada com um cenário de incertezas para o futuro -- sobretudo os mais jovens -- e, de tal forma, forçada a agir dentro de cada contexto social e local. Essa revolta não poupou dos Estados Unidos à Rússia, do Brasil de Lula e Dilma ao Chile de Piñera. Mas ela se mostra, em cada lugar, na forma que o calo aperta para cada sociedade. É um levante que se volta a cobrar as promessas não cumpridas da modernidade.
2. Washington e Berlim conspiraram para a derrubada do presidente Yanukovich?
Sim, mas tanto quanto Moscou e seus aliados trabalharam para eleger, e manter, o agora ex-presidente no poder. De certa maneira, em toda parte os blocos políticos internos se apoiam em blocos de poder globais que são ajuntamentos, mais ou menos coesos, o que pode ser mais intenso em Estados mais problemáticos. Na Ucrânia, o Partido das Regiões, de Yanukovich é pró-Rússia -- e vice-versa -- enquanto a oposição -- formada por muitos ex-burocratas "comunistas" -- é apoiada sim pelos EUA. Mas isso não é que o determinou o fato de manifestações gigantescas e radicalizadas tenham acontecido no país. Existem demandas muito reais que se impuseram, e a multidão ucraniana joga com as armas que tem ao passo que os blocos de poder busca captura-las a seu favor -- num jogo onde as duas partes se usam mutuamente.
3. A queda de Yanukovich foi um golpe de Estado, deposição dentro da Lei ou um processo revolucionário?
O parlamento ucraniano, a Verkhovna Rada, democraticamente eleito antes dos fatos em questão, aprovou o impeachment do presidente da república em um momento no qual, aliás, ele havia perdido amplamente sua legitimidade: sem tropas defendendo sua residência e com os palácios e os manifestantes ocupando as ruas, não havia o que fazer. Embora a atual Constituição Ucraniana, datada de 1996, tenha sido radicalmente transformada com o tempo, da Revolução Laranja (2004) e, depois, com o retorno de Yanukovich (2010) para, pouco antes da queda do presidente, voltar aos termos de 2004, é fato que não parece haver dúvidas de que o Parlamento é competente para remover o presidente da república -- como se depreende do capítulo V da Constituição, o qual regula os poderes do presidente, sobretudo o artigo 111. De tal sorte, o ex-mandatário ucraniano foi julgado e destituído pelo seu juiz natural. Mas pode se dizer que houve cerceamento de defesa pela rapidez do julgamento -- que é sim político e judicial --, fato sobre o qual a Suprema Corte local, no entanto, detém a última palavra. A rigor, foi um procedimento, em abstrato, dentro da ordem posta, embora possa se dizer que houve erro, a ser avaliado pela Suprema Corte. Do ponto de vista, político mais prático, no entanto, não resta dúvida que ele perdeu o controle. Pior que isso, Yanukovich possivelmente cometeu crimes contra a humanidade. Mas, como sempre, o direito constituído se moveu de acordo com a constituição de direitos da multidão nas ruas.
4. A aproximação, ou não, da Ucrânia em relação à União Europeia, pivô da crise, seria um bom negócio para os ucranianos?
Sim e não. O que os ucranianos querem, em um primeiro momento, é garantir sua autodeterminação que, possivelmente, está ameaçada pela Rússia. E autodeterminação, aqui, é tanto política quanto cultural. Nesse sentido, o distanciamento de Putin é visto com bons olhos pelos diferentes setores da sociedade local. Se a aproximação política e econômica com a União Europeia, para além de mitigar a influência de Moscou, daria certo, é difícil dizer. A crise dos países periféricos da Europa -- vide Grécia, Portugal e Espanha --, a crise do próprio modelo da União Europeia, nos levam a crer que talvez isso seja um sonho impossível para ambas as partes, isto é, que logo da cara seria muito remota a chance do bloco europeu assimilar o país, quanto mais lhe gerar algum benefício econômico -- e antes das coisas explodirem, gente que acompanha a sério a região apontava para isso --, mas é preciso botar no cálculo o avanço do autoritarismo na Rússia e os efeitos práticos disso na vida dos ucranianos.
5. A Ucrânia está dividida?
Sempre esteve. O lado oriental do país, mesmo dentre os falantes de ucraniano, vê sua relação de uma forma diferente com a Rússia do que o oeste. Só há uma solidez nacional no oeste do país. Ao longo do tempo, os ucranianos se aproximaram mais do ocidente ou do oriente conforme a situação. É um movimento pendular defensivo marcado pela necessidade de sobrevivência. Se o primeiro Estado russo foi construído em torno de Kiev, depois as contingências da história fizeram os ucranianos se afastarem dos russos, mirarem o ocidente, o que lhes valeu o domínio polonês na Idade Moderna. Depois, uma nova reaproximação com a Rússia, a União Soviética e uma difícil reconstrução como nação independente. O oeste, agora, é mais pró-Europa, o leste, pró-Rússia, muito embora ser pró-Rússia não se confunda com "pró-Putin", o que foi decisivo neste momento.
6. O que tem a ver a herança Soviética, sobretudo a questão nacional, e a atual crise?
Rosa Luxemburgo, em um de seus textos clássicos, A Revolução Russa, aponta o equívoco da estratégia leninista em insuflar o nacionalismo ucraniano com o intuito de derrubar o Tsar, o que lhe custaria caro mais adiante. Evidentemente, Rosa falava não afirmação da diferença nacional e cultural ucraniana, mas de um movimento extremista local. Ela acertou e a soma disso com a política de homogeneização, e russificação, da União Soviética quando do Stalinismo levou a um combate inevitável e inclemente no qual milhões de inocentes pereceram direta ou indiretamente. o nacionalismo ucraniano sempre caminhou entre a (necessária) afirmação da diferença cultural local, mas, por outro lado, numa variação negativa, ele também aparece, ou varia, como forma de criar uma unidade falsa que naturaliza a opressão interna em nome de inimigos externos. Não há como analisar de forma maniqueísta a questão. Mas o fracasso da política soviética de nacionalidades, um dos compromissos étnicos fundamentais e fundantes da União Soviética, foi decisiva para construir o atual quadro de tensão lá e em outros países da região: da homogeneização à força que começou em Stalin resultou o extremismo nacionalista como reação. Entre Stalin e os nacionalistas locais, os ucranianos ficam entre os dois golens de Lenin
7. A União Soviética era anti-ucraniana?
Não, a União Soviética chegou a ser governada por ucranianos -- Nikita Khrushchov e Leonid Brezhnev --, o que houve é que, colateralmente, a política de homogeneização russa -- levada a cabo, vejamos só, por um georgiano como Stalin -- e o autoritarismo que valia contra qualquer variante ideológica e cultural vitimou profundamente o povo ucraniano. Em duas situações trágicas isso foi evidente, a primeira no chamado Holomodor, a peste de fome causada pela estatização stalinista da agricultura e, depois, pelo desastre nuclear de Chernobyl, causado pela incompetência de uma já decadente União Soviética em lidar com o acidente. Há um uso, pela Ucrânia independente, de colocar isso nos termos de um declarado e específico anti-ucranianismo pelo poder soviético, o que não aconteceu propriamente.
8. A extrema-direita ucraniana tem, agora, o controle da situação?
Não propriamente. O nacionalismo, por n razões, é fortíssimo na Ucrânia. Mas não é ela que, sozinha, determinou ou motivou todo o conjunto de manifestações. Inclusive porque é um movimento que cresceu, sobretudo, por conta da resistência popular à violência policial e militar e que defende, ainda que de maneira ingênua, os valores do europeísmo -- o que tem determinado processos regulares de direito nos procedimentos postos em prática. Mesmo em um cenário que as coisas mudem, é altamente improvável que a ultra-direita tome o poder e consiga mantê-lo. O novo governo, inclusive, terá de moderar suas posições para que o país não se divida. Muito mais grave, nesse aspecto, é a situação de um país como a Hungria, o qual aconteceu dentro de um processo eleitoral regular.
9. O que isso diz para a Rússia?
A Rússia, em tese, tem se recuperado do duro processo que foi da estagnação soviética à reabertura, mas, ao mesmo tempo, o avanço gradual do autoritarismo de Putin lhe é um problema interno. A crise ucraniana faz com que a questão cruze suas fronteiras. As demandas por democratização chegam à região. Isso ajuda ao imperialismo americano? Talvez, mas é ridículo, em pleno século 21º, que em nome da contenção à conduta americana, que se tolere abusos autoritários em nome disso, inclusive porque eles não só são desnecessários como, aliás, fortalecem a posição intervencionista americana pelo globo, uma vez que permite apresentar tropas como legítimas defensoras da liberdade. Difícil é crer, num primeiro momento, que possa haver uma junção entre os movimentos russos e ucranianos, o que é ruim, mas também não quer dizer que isso não possa acontecer.
10. A crise ucraniana diz o que para o Brasil?
Que existe uma demanda global por mudanças, que essa multidão permanente, constituinte da grande rede de produção, sobretudo seus jovens, não é capaz de aceitar, conformadamente, um futuro qualquer, mas que ela luta de acordo com as contingências que lhe cercam: não esperem um coerência ou uma fidelidade "ideológica" tal como compreendida no século 20º. Mais ainda, que respostas repressivas para essas demandas é o caminho para um desastre, muito embora esse confronto seja melhor do que a manutenção inercial de um regime de força. Falar em como manifestações levam, necessariamente, ao fascismo é de um raciocínio limítrofe. A aceitação bovina de uma doutrina de segurança, repressão e leis de exceção certamente são mais perigosos em matéria de fascismo.